Luz

 Bom dia!
Esse foi um dos primeiros contos que li, fiquei encantada que acabei transformando essa leitura em um prazer constante.
Se o amor fosse assim, acho que as pessoas conseguiriam encarar uma relação bem melhor, mas as vezes nos esquecemos que existem brigas, opiniões contrarias e até mesmo um tempo em que precisamos ficar só, não por falta de amor, mas para entender o que nos faz querer lutar todos os dias para ficar com a mesma pessoa.

Boa Leitura.
Drika

Esse conto também pode ser lido no site Livre Arbitrio.. a Autora é Ninã.


CAPÍTULO 01
[30/07/10]

EU

Nasci numa manhã bela de Dezembro, 2ª quinzena começando, ar quente, com o sol já alto às 7:30. Foi em casa mesmo, como eram os partos nos lugares distantes de tudo...quase morri...mas penso que tinha uns deveres a cumprir, então decidi sobreviver. Chamaram-me Ana, simples como nossa vida. Pena que, pelo parto complicado, uma lesão se fez, deixando uma seqüela na minha córnea.

Passei a infância como toda criança simples que vive no interior...pé no chão...mergulhos no Rio...brincadeiras e brigas com meus irmãos (éramos 4...2 homens, 2 mulheres)...vida fácil e difícil quando tínhamos que comer angu salgado no almoço e doce no jantar, por causa do mês que teimava em continuar depois que o salário de Papai já tinha ido embora. As coisas ficaram melhores com o tempo.

Meus Pais...gente humilde, mas de almas essencialmente nobres...daquelas pessoas em cujo olhar se pode observar a limpidez que somente a dignidade traz ao Homem. Deram-me muito Amor e a sapiência de apreciar a generosidade com que nos brindam diariamente as coisas simples, que realmente importam.

Até a puberdade, meu problema de visão não incomodou muito...enxergava um pouco embaçado e precisei usar óculos de correção após os 10 anos...nada que prejudicasse minha graciosidade faceira de morena mestiça (desculpem a falta de modéstia!). Cabelos lisos e longos, pele morena, estatura mediana e peso dentro da tabela...mas acho que o melhor são os olhos, grandes e negros, bem como o sorriso, que fica entre o inocente e sapeca...bem, assim os meninos começaram a dizer quando cheguei aos 15, 16 anos!

Foi nessa época que um incidente fez com que a lesão da córnea se agravasse. Uma brincadeira entre colegas...uma bolada no rosto...e tudo ficou escuro inesperadamente! Doeu muito! A bolada? Não! Doeu mais o pavor de não ver mais as coisas do dia-a-dia que eu tanto amava! O sol nascer e se pôr...o Rio descendo pela pedra e formando uma cachoeira cristalina...o rosto da minha Mãe quando meu Pai elogiava seu coque bem feito...os olhos de Papai brilharem e quase uma lágrima cair ao ouvir “Viola Enluarada”...o semblante de meus amigos a rirem um dos outros pelas bobagens que só os adolescentes entendem e acham graça...Ah! Tanta coisa eu deixaria de apreciar com o Sentido que sempre me foi mais caro! E assim foi por alguns anos.

Com a perda da visão, tive que me adaptar aos detalhes de uma rotina nova e dolorosa por si mesma. Contei com a benção de ter uma família maravilhosa que me ajudou a ser independente e exigir dos outros, respeito e não piedade. Todos tivemos que mudar para a cidade grande, a fim de tornar meus estudos viáveis. Formei-me em Direito com muito sacrifício; mas não de minha parte, e sim de minha família que renunciou seu bem-estar interiorano, para dar-me a oportunidade de ser alguém normal, com uma profissão e que por acaso não possui 5 sentidos como a maioria.

Na faculdade reencontrei um colega do 1º grau, Alberto, que sempre foi “caidinho” por mim, e que era também muito olhado (eu ainda enxergava e muito bem!). Ele fez questão de me ajudar durante todo o curso e nos formamos juntos. Nem é preciso dizer que nos apaixonamos e um ano após terminada a Universidade, nos casamos. Voltamos a morar em nossa cidade Natal, uma pequena cidade grande, com 250.000 habitantes. Ele arrumou um excelente emprego numa multinacional como Advogado para assuntos tributários; e eu decidi abrir um escritório com uma amiga de faculdade, Márcia, que cansada da cidade Grande, resolveu tentar a sorte no interior. E que sorte ela deu! Casou-se um ano depois de instalada, com um próspero comerciante local, um boa-praça chamado Carlos.

A vida transcorria bem! Engravidei, trouxe ao mundo um lindo garotinho chamado Flávio, que deu um sentido todo especial a minha existência. Minha falta de visão nunca foi problema para cuidar de meu filho e ele cresceu sem sentir que eu não o via com os olhos do rosto, pois eu o enxergava com os olhos da alma. Tinha um relacionamento estável e tranqüilo com meu marido. Confesso que após o nascimento do Flavinho, nossa vida sexual ficou um pouco monótona, não sei se é comum entre os casais, mas esse fato não comprometeu nossa relação e terminamos por dar mais valor ao companheirismo e parceria na vida, que aos desejos efêmeros. Bem, pelo menos era assim que imaginávamos, ou pelo menos, que eu pensava ser.

Por conta do meu problema de visão, sempre tive um oftalmologista que acompanhou toda a trajetória de minha doença e sofreu muito comigo e com os meus, quando deixei de enxergar. O Dr. Olavo...homem bom, excelente profissional, que ficou amigo de todos nós e nunca deixou de ter e dar esperanças de que minha cegueira seria temporária, pois na fé “cega” em sua Profissão, ele nunca deixou de acreditar que a reversão da cegueira seria possível. Essa esperança eu guardava bem escondidinha num canto em mim, pois o medo da decepção de algo pouco provável nunca se realizar, tornava-me aparentemente mais cética e resignada...mas era só no exterior. Na minha escuridão solitária, eu rezava todas as noites, para que a Luz voltasse aos meus olhos, para que eu pudesse voltar a olhar tudo aquilo que havia guardado na memória...a natureza, os rostos, as cores, os olhos alheios, as emoções que eles nos revelam...sentia muita falta disso!
Dr. Olavo me dizia, que um transplante de córnea, com os medicamentos corretos e algumas técnicas que recuperação, poderiam me devolver a visão. Porém os tais medicamentos ainda estavam sendo pesquisados e não era permitida a sua utilização, por isso o transplante para o meu caso ainda era algo ineficaz...como eu ainda era jovem, poderia esperar um pouco mais para que essas pesquisas tivessem um final feliz, para alegria de todos que tinham o mesmo problema que eu.

Havia uma peculiaridade no meu trabalho, por causa da falta de visão. Eu sempre tinha que ter um Estagiário em Direito, me acompanhando nas atividades do Escritório, especialmente no Fórum, nos Cartórios e nas Audiências. Eles tinham que ler ou escanear (para que mais tarde o computador lesse para mim) os processos, dependendo de cada situação. Isso me obrigava a ter sempre alguém de confiança e eficiente, para manter o nome e a credibilidade do meu Escritório, construído ao longo do tempo. Eu tinha me tornado uma excelente profissional, na área Civil, de Família e trabalhista, e possuía o dom que minha falta de visão só fez aperfeiçoar, a Oratória. Defendia meus clientes e meu ponto de vista com fibra e um “plus” que a falta de um sentido faz por incrementar os outros. O uso de óculos escuros, ajudava a cobrir qualquer travo de insegurança que por ínfima possibilidade pudesse vir um dia a me acometer. Meus Estagiários costumavam se tornar bons profissionais, pois realmente aprendiam o que é exercer o Direito de maneira honesta, digna e eficaz. Meu Escritório acabou por ser cobiçado entre os Estudantes de Direito que buscavam realmente aprender a profissão. Dois desses Estagiários, Denise e Fábio, mais tarde tornaram-se sócios do Escritório, que a cada nova ação ganha, continuava a sua trajetória de expansão.


Capítulo 2: O ENCONTRO

[31/07/10]

Quase dez anos havia se passado desde o casamento e o inicio da vida profissional. Eu, Ana, 33 anos, tinha tudo o que uma mulher sonha desde criança...uma família bonita e saudável, felizes...uma profissão gratificante, que realizava uma vocação e trazia um excelente retorno financeiro. Mas havia algo! Uma inquietude, algo que nunca se completava! Como aqueles lindos Quebra-Cabeças de mil peças, que ficam com uma faltando, trazendo o incômodo nervoso a quem o monta. Estranha e engraçada essa natureza eternamente insatisfeita do ser humano! Seria o problema com a falta de visão? Talvez, mas sabia que não era isso exatamente. O que faltava??? Era algo além, mas não sabia o que, ainda não sabia!

O começo do Ano é sempre meio turbulento no Escritório, as ações parecem duplicar, pois todos decidem passar a vida a limpo. O trabalho fica mais pesado, e justamente nessa época minha fiel escudeira Janine, resolve ir morar com o namorado em outra cidade e transferir-se de Faculdade! Meu Deus, o que faço?! Ela podia ter avisado no final do Ano Passado! Assim, eu poderia ter me preparado com antecedência e tentado selecionar alguém. Pôxa, tudo complicou! Logo agora, nesses meses de começo de ano, quando tudo é tão estafante! Preciso de alguém urgente!

Após uma consulta de rotina com Dr. Olavo, fiz um comentário sobre o que se passava no Escritório, sem minha Assistente...eu podia contar com outros três Estagiários que nós tínhamos, mas quem ficava ao meu lado tinha que ser Especial. Era necessário agilidade de raciocínio, ser excelente aluno e estar nos últimos períodos da Faculdade, estar sempre disponível para pequenas viagens a trabalho, saber dirigir, e por fim, não ser complacente comigo...irrita-me por demais, essa gente que deixa transparecer na voz uma piedade a qual eu não faço jus. Preciso de alguém eficiente, seguro e que não seja idiotamente benevolente, achando que está sendo generoso com a ceguinha. Quero alguém firme, que se dirija a mim como uma pessoa comum e profissional respeitável que sou.
Senti na voz do Dr. Olavo que ele teve um lampejo, após o comentário. Me disse que sua filha mais nova, Lívia, estava no 7º período da faculdade e sonhava há muito tempo em Estagiar no meu Escritório, no entanto, ele nunca havia pensado em me pedir, pois achava que poderia estar extrapolando nossa amizade, ao me pôr em uma situação em que talvez tivesse que rejeitar sua filha por não se encaixar nos meus parâmetros, por algum motivo.
Eu não conhecia Lívia. Dr. Olavo não costumava freqüentar minha casa e nem eu a dele, tínhamos uma amizade profunda pelos anos de confiança e respeito, mas por algum motivo, acabamos sempre nos limitando a encontros profissionais e nunca sociais. Já tinha encontrado com ele, a mulher e as filhas, Lívia e Laura, mas não lembro da voz delas, sinceramente. Laura, a mais velha das filhas, fazia medicina na cidade grande. Lívia decidira por ficar e seguir uma carreira completamente diferente da do Pai, para a qual julgava ter muita vocação.

Sabendo disso, falei ao Dr. Olavo:

_ Doutor, diga a Lívia para ir ao meu Escritório amanhã às 10 da manhã. Gostaria de conversar com ela um pouco. Não prometo nada, OK?! Porque se ela não tiver todos os requisitos que procuro, não vai ser por ser sua filha que vou contratar ela. Gosto muito do Senhor, mas preciso de alguém que supra minhas necessidades profissionais e não vou ser boazinha com ela só por ser sua filha.

_ Hahahaha! Eu entendo Ana! Direta como sempre! Fique tranqüila, Lívia é muito pé no chão e eu vou fazer questão de dizer a ela, que não terá nenhum privilégio por ser minha filha.

No dia seguinte, às 9:50 da manhã, lá estava Lívia sendo anunciada pela Secretária:

_ Dra. Ana, a Srta. Lívia já chegou!
_ Obrigada Lúcia, mande a moça entrar.

A porta se abriu e em seguida um leve perfume cítrico com um pouco de floral fez presença no ambiente. A porta foi fechada e ouvi os passos suaves de Lívia se aproximar. Como sempre faço, estendi a mão para que Lívia se apresentasse antes de dar tempo para que ficasse constrangida pela minha cegueira. Ela a apertou firme, mas com delicadeza, mostrando no toque um pouco do seu jeito de fazer as coisas. Primeira impressão já foi boa!

_ Muito prazer Lívia!
_ O prazer é todo meu, Dra. Ana!

A voz do outro lado era suave, mas levemente rouca...demonstrava uma certa ansiedade...natural...

_ Sou cliente do seu Pai há muitos anos. Ele deve ter falado isso pra você. E deve ter dito também que estou precisando muito de uma Assistente, mas apesar da urgência, não vou selecionar alguém que não se enquadre no que busco. Meu trabalho é levado muitíssimo a sério por mim. Mexo com a vida de muita gente e não posso correr o risco de ter ao meu lado alguém que não tenha a competência necessária para o cargo. Eu pago bem, para alguém que ainda não se formou, mas exijo muito também, inclusive excelentes notas na faculdade. Costumo viajar a trabalho, mas sempre para as cidades vizinhas e nunca mais que um ou dois dias, por isso, não costuma atrapalhar a faculdade.

Tomei um gole de água...do outro lado, não se ouvia nem a respiração da moça...

_ Dois de meus antigos Assistentes, são hoje, meus sócios! Isso mostra que escolho sempre os melhores e se eles aprendem a lição direitinho, são muito bem recompensados. Exijo alguém que dirija, nem preciso dizer porque! O carro é o meu mesmo. Tenho um motorista, o Antonio, que me leva aos lugares, mas quando se trata de negócios, eu prefiro que esteja somente eu e meu Assistente, para temos mais liberdade de conversarmos sobre as causas, sem ferir o sigilo.

Nossa! Parecia que a menina estava morta! Eu não ouvia ela respirar! Só sentia o seu perfume gostoso e nenhum outro ruído além da minha voz. As pessoas costumam dizer interjeições quando falam comigo, do tipo: “hum,hum”, “Sei”, “Entendo”. Ela estava absolutamente muda. Será que desmaiou de nervosismo? Hahahaha.

_ Quero alguém que goste de ler, que esteja sempre disponível quando eu precisar e que acima de tudo seja fiel às nossas causas e a mim, é claro! Bem, depois dessa explanação toda sobre o que busco, vamos às perguntas...primeiro, você tem algum problema em falar em público ou fica embaraçada facilmente? Ainda não ouvi direito a sua voz. Lembre-se que sou cega, não posso ver seu rosto, isso deveria tornar as coisas mais fáceis pra você, não acha?

Nessa hora, ouvi uma risadinha de leve, com um certo tom de ironia...

_ Dra. Ana, com todo respeito que a Sra. como pessoa e como profissional, que admiro muito, merece, eu só estou tendo oportunidade de falar agora. Estava ouvindo com bastante atenção tudo o que a Sra. busca, pois quero demais essa chance e não pretendo deixá-la escapar!
_ Não tenho problema algum em falar, seja em público ou com alguém como a Sra., por exemplo. Gosto do Direito e quero muito aprender pra ser uma profissional brilhante e correta, como ouço dizer que a Sra. é, mas que só vou poder constatar se é verdadeira a afirmação, conhecendo-a melhor.
_ Sei dirigir muito bem. Minhas notas na faculdade estão entre as melhores da turma, posso provar isso. Estudo Direito por vocação. E estou, à partir de agora, a sua disposição, se assim a Sra. quiser.

Tudo foi dito num fôlego só, mas com clareza e segurança. Tenho que confessar que gostei do tom da voz de Lívia, do modo como se dirigiu a mim e como falou na hora em que deveria dizer algo que importasse. Sua voz era firme e educada, mas deixava transparecer uma emoção meio contida. Essas coisas que só apurando bem o sentido, dão pra perceber. Eu estava gostando, mas precisava saber mais:

_ Me diga uma coisa, Lívia... como é sua vida pessoal? Com os colegas de faculdade, família, amigos, namorado...me fale um pouco mais de você...como você acha que essas pessoas te vêem? O que enxergam em você quando te olham?

Fez-se um silêncio profundo! Durou uns 10 segundos, mas pareceu um tempo enorme. Lívia deu um longo suspiro e disse:

_ Eu me faço essa pergunta quase todos os dias! Como será que as pessoas com quem convivo me enxergam? Não sei ao certo. Talvez elas me vejam somente do jeito que deixo transparecer. Às vezes penso, que nem eu ainda me vi direito. As coisas da nossa rotina costumam embaçar muito nossa visão física. Acho que alguém cego como a Sra., talvez veja nas pessoas aquilo que quem usa todos os seus sentidos não consiga ver. É verdade que quando perdemos um sentido os outros 4 ficam mais apurados?

Eu sorri, voltei-me para a direção em que vinha aquela voz boa de se ouvir...

_ Não apenas os outros 4 ficam mais apurados, mas o que chamamos de 6º sentido também se faz presente em muitas situações. Só devemos saber usá-lo e perceber aquilo que ele nos diz...e sabe o que o meu está dizendo agora?

_O que?

_ Que talvez valha a pena fazer uma experiência de três meses com você e ver no que dá. Esse meu sentido é muito apurado e não costuma falhar comigo. Quer começar agora?


CAPITULO 3

[01/08/10]
LÍVIA

Lívia não cabia em si de tanta contentação. Ficou por alguns segundos estática digerindo o que acabara de ouvir. A Dra. Ana Mendes, que tanto admirava, deu-lhe um voto de confiança e a aceitou como Estagiária e sua Assistente Pessoal! E o incrível é que tudo foi tão rápido! Óbvio que para Lívia pareceu uma eternidade, o nervosismo, a ansiedade, pareciam não deixá-la raciocinar com clareza, mas parece que deu tudo certo no final. É fato que seria só uma experiência, mas eram três meses! Os três meses mais importantes de sua vida até então, e se desdobraria em mil para que esses três meses se prolongassem pelo tempo que fosse necessário ao seu aprendizado e quem sabe, poderia vir a ser um dia, também sócia do Escritório de Ana Mendes. Parecia um sonho e Lívia não pretendia acordar tão cedo desse torpor gostoso.

Lembrou-se da primeira vez em que vira a Dra. Ana. Devia ter uns 6 ou 7 anos e ela já era uma moça uns 10 a 12 anos mais velha. Seu Pai já havia feito comentários em casa sobre o caso de Ana e numa manhã, estavam na praça principal da cidade assistindo à festa da Padroeira quando aquela bela moça passou. Na sua inocência infantil não sabia explicar o encantamento que aquela figura lhe causou...fixava sem parar o seu rosto e seu jeito de mover-se, como que se seu olhar estivesse pregado àquela menina grande e a todos os seus movimentos. Era incrível a beleza daqueles olhos grandes e negros, de cílios espessos, que teimavam em mirar o vazio, quando tinha tanta coisa a ver. Não entendia como não havia luz neles, se eram na verdade puro brilho! Porque não se voltavam pra mim? “ Quando Papai parou para falar com ela e sua família, que estavam na cidade justamente para a festa, fiquei ao lado dela hipnotizada como um mosquitinho de verão em torno da lâmpada. Não conseguia desgrudar os olhos das suas feições e do seu sorriso de satisfação em falar com meu Pai...lembro quando ele nos apresentou a eles e ela docemente tocou nos cabelos de minha irmã e depois nos meus...deslizou os dedos levemente pela minha face e sorriu dizendo:

_ Que lindas meninas, Doutor! Parabéns! Sua família reflete o Senhor!

Incrível como depois de tantos anos, ainda lembrava e podia até mesmo sentir de novo, aquele toque tão suave em seus cabelos e pele. Foi pura ternura que gravou na memória daquela menininha a beleza de um momento.”
Não houve um ruído sequer vindo de Lívia...lembrava de ter ficado desconcertada e agarrou-se ao braço do Pai, com os olhos fixos na moça...será que se ela pudesse olhar nos olhos daquela menininha de volta, esta teria sustentado seu olhar tão brilhante?!

À partir daquele encontro Lívia costumava seguir Ana com os olhos sempre que a via, fosse na Rua, num evento social qualquer, no Rio divertindo-se com os irmãos e com o namoradinho. Era só avistar Ana em algum lugar e Lívia não mais podia tirar os olhos dela! Ficava admirando seu jeito de andar meio titubeante, ora com o cão guia de nome Fred, ora apenas com a bengala, ou então com alguém ao lado. Adorava observar seus gestos suaves e o modo como mantinha a cabeça sempre erguida e o queixo levemente levantado, tornando sua aparente fragilidade, um mito. Tornava-se Altiva e vivaz, com os ouvidos sempre ligados a qualquer som ou movimento, parecendo um Predador atento aos meneios de suas presas. Adorava notar essa dubiedade nela... frágil e perspicaz ao mesmo tempo!

O tempo foi passando, Dra. Ana e a família costumavam vir para a cidade duas vezes ao mês ou quando havia algum evento na cidade. Fizeram questão de manter a casa da família, pois logo que Ana terminasse seus estudos, a idéia era de que todos voltassem à moram na sua cidade Natal, todos que quisessem, é claro. E era nessas vezes que Lívia sonhava em voltar a ver Ana, mesmo que de longe. Nunca conseguiu aproximar-se e falar com ela. Dizer que era aquela menininha, filha do Doutor Olavo, que um dia suas mãos delicadas tinham afagado gentilmente e que desde então passara a admirar seu jeito de ser. Sempre ficava de longe, olhando até que a silhueta de Ana sumisse de suas vistas, ou então quando alguém a flagrava nesse olhar tão insistente. Ficava rubra, desconcertada, e abaixava o olhar disfarçando seu embaraço.

Um dia, soube que Ana iria se casar! Sim, casar com aquele tal namoradinho que não desgrudava dela, e assim foi...foram todos convidados para a bela festa, que acabou sendo o grande acontecimento da cidade na época. Doutor Olavo e família foram à Festa, porém Lívia não quis comparecer à badalação. Apenas fez questão de admirar de longe quando Ana chegou na Igreja de noiva...Linda! Parecia uma Fada no meio de um bando de Elfos! E do outro lado da Rua, Lívia olhava embevecida para aquela bela mulher, que se tornava ainda mais bonita e encantadora, pelo fato de não ter noção da sua beleza e do efeito que causava nas pessoas à sua volta.
Não soube definir dentro de si, porque fora acometida por uma melancolia profunda no dia do casamento de Ana. Era como se ela estivesse prestes a ser maculada na sua Perfeição por permitir que alguém compartilhasse seu Encantamento; e isso deixou Lívia muito triste por algum tempo.

Mas a vida segue seu curso, como o Rio que corta a nossa cidade. Com ou sem pedras pelo caminho, ele invariavelmente segue adiante. Lívia cresceu e tornou-se também uma bela moça. Aos 14 anos, seus cabelos cor de mel, exatamente da cor de seus olhos, começaram a atrair a atenção dos meninos mais que o normal. Era alta, de corpo esguio e andava com leveza. Ela era descolada e popular na escola e todas queriam ser amigas ou então como ela. Algumas meninas copiavam seu corte de cabelo moderno, suas roupas fora do comum pra cidade pequena e seu gestual peculiar. Tinha o dom de falar aos outros, adquirido com os muitos debates em casa com o Pai médico e a Mãe, Lúcia, Psicóloga; bem, como as horas que gastava todas as noites, mergulhada em seus livros. Ah, amava os livros! Adorava transportar-se para aqueles mundos tão diferentes e fazer parte das tramas. Tomou gosto pela Poesia, mas também pela história e sociologia. Por ser de uma família abastada, desde cedo viajou muito e conheceu cidades no Brasil, EUA e Europa. Isso ajudou e muito o seu enriquecimento cultural e fez com que pudesse comparar mundos tão díspares. Desde o 2º grau, já sabia que cursaria Direito na faculdade. Pensava que era para poder tentar utilizar um pouco a máquina Estatal em favor dos menos favorecidos pela Justiça...mas sempre que tentava convencer-se disso, vinha à sua mente a imagem de Ana, advogada jovem com uma carreira promissora e que superara suas dificuldades com o brilhantismo de seu intelecto e uma perseverança fora do comum. Queria ser como ela! Queria um dia poder aprender com ela! Estar ao lado dela!
Pensava: “Um dia ainda vou ter a oportunidade de me fazer notar por ela, e nesse dia, não vou perder minha chance! Quero trabalhar, estar no mesmo ambiente todos os dias e poder conhecê-la melhor, para confirmar ou então desconstruir a imagem que fiz dela.”

No segundo grau, foram tantos os namoricos, que Lívia, não fosse por sua segurança e jeito firme de ser, poderia ter ficado mal afamada pela cidade. Mas a verdade é que as meninas queriam ser como ela, viver tudo o que ela se permitia, sem pudores ou repressão. Aos 16 falou francamente com a Mãe que queria perder a virgindade com o namorado (na época, Eduardo), e que por isso precisava ir ao Ginecologista pra não correr o risco de uma gravidez indesejada.
Sempre foi assim, dizia o que pensava e não tinha falsos moralismos. Não fazia gênero, apenas era desse jeito que pensava viver melhor.
Engraçado que quem visse Lívia segura de si, com seu jeito firme, seu humor sagaz e inteligência acima da média, jamais imaginaria seu encantamento com Dra. Ana. O mesmo encantamento infantil daquele dia na praça, que mesmo após tanto tempo, não havia perdido sua força.

Aos 18 anos, foi Estudar na nova Universidade que instalou-se na cidade alguns anos antes. Lá teve encontros, desencontros e muitas experiências de vida, sexuais, emotivas. Experimentou o que achou que devia e descartou o que não valia a pena. Apaixonou-se, e por ele (Ricardo) teve sua primeira experiência com outra mulher. Foi para realizar uma fantasia do namorado, topou transar a três. Não gostou muito de ter que beijar outra mulher, mas adorou quando ela lhe fez um sexo oral enquanto seu namorado a penetrava. Repetiu a experiência algumas outras vezes, com mulheres diferentes e o namorado, mas logo que acabou o Romance entre os dois, acabou-se também o tesão em “Mènages a trois” e nada ficou pelas mulheres.
Não se imaginava namorando e tendo uma vida a dois com outra mulher. Na verdade, também não pensava em se casar com um Homem, talvez ir morar junto se gostasse muito, mas casamento tradicional definitivamente não estava em seus planos. Não se via na mesma situação que Ana, vestida como uma Fada pronta pra receber um Homem no altar e fazer votos de fidelidade e Amor eternos. Queria um relacionamento leve, sem tantos protocolos e compromissos rigorosos. Além do mais era ainda muito jovem e queria mesmo era namorar bastante até se fixar em alguém. Gostava de sexo, nunca teve problemas nessa área, pois sempre teve conversas claras com sua Mãe, e a irmã mais velha também ajudava bastante. Por isso, tinha uma vida sexualmente saudável e ativa, sem problemas com tabus ou repressões. Dormia freqüentemente na casa do namorado ( o atual era Caio), ou ele na sua; tinham uma relação boa, leve e sem cobranças...é fato que não havia grandes Paixões entre ambos, pelo menos não da parte da moça, mas era algo satisfatório para o momento, agradava aos dois.

De vez em quando, acontecia de ver Dra. Ana com o marido e o filhinho. Nessas horas, sentia algo muito estranho que não conseguia definir ao certo...era um misto de ternura e inveja... ternura por ver como ela parecia feliz com a família...inveja por não fazer parte dela. Era tão esquisito esse sentimento, que fazia Lívia sentir-se mal e querer afastar prontamente o pensamento. Um dia ao avistar Dra. Ana, Lívia estava de mãos dadas com Caio e sem querer apertou com força sua mão. Caio perguntou o que tinha acontecido, se ela levou algum susto e foi um custo disfarçar e fingir que tinha sido uma bobagem qualquer.

Ainda faltavam 3 períodos para sua formatura, mas Lívia sempre manteve notas excelentes e sabia que colaria grau com honras. Poderia arranjar Estágio em qualquer bom Escritório ou Empresa, mas cobiçava apenas um...o Escritório da Dra. Ana. Naquela noite, quando seu Pai falou no jantar, que Ana buscava uma nova Assistente, não se conteve de tanta felicidade, a ansiedade que sentia transparecia no seu semblante e ela não conseguiu disfarçar toda a excitação de ter sua tão sonhada oportunidade com a querida Dra. Ana! Não dormiu a noite toda, ficava repassando mentalmente todas as possibilidades de diálogo entre as duas. Todas as perguntas que poderiam ser feitas, todas as respostas que “deveriam” ser dadas. Nossa, que tortura!

E tudo saiu completamente diferente do que imaginou! Quando chegou ao Escritório, quase não conseguia fazer sua voz sair de tanta ansiedade. Após o anúncio de sua chegada pela Secretária, o interfone reproduziu no viva a voz aquele som que ainda vivia em sua lembrança desde criança. Quando entrou na sala, viu Ana de pé virando-se lentamente com um sorriso no rosto e estendendo a mão para um cumprimento. Por um ínfimo segundo pensou que ela olhava diretamente para os seus olhos, como se pudesse enxergar e perceber a confusão que causava na moça à sua frente. Mas foi só impressão! Ela estendeu a mão para que Lívia a tocasse e ela soubesse exatamente para onde deveria olhar. Começou falar num tom grave e sério, que demonstrava ser de suma importância aquele momento. Lívia não conseguia nem respirar! Suas pernas estavam tão bambas que ela postou-se num determinado lugar e de lá não saiu mais até que fosse dispensada. Quando Lívia teve que falar, respirou fundo e pediu aos Céus que a ajudasse a manter a voz firme, sem titubear ou mostrar vacilação. Não podia correr o risco de perder aquela chance, queria muito estar ao lado daquela mulher que por tantos anos povoou seus pensamentos, enchendo seu coração de sentimentos, muitas vezes confusos, mas principalmente de admiração e ternura.
E assim foi...Lívia conseguiu a oportunidade que tanto sonhara e agora iria poder constatar se de fato Ana era alguém especial como ela sempre imaginou, ou se apenas uma mulher que superou suas dificuldades e deveria servir como um bom exemplo a todos. Será que aquela Imagem de um ser incomum era somente fruto da imaginação de Lívia? “Se for, será muito bom assim, pois aí eu destruiria de vez essa idealização que criei e poderia enxergá-la como alguém comum, sem mistérios ou algo que a tornasse tão especial pra mim. Muitas vezes, esses pensamentos e principalmente o que sinto e não encontro explicação plausível, me incomodam muito! Quero desfazer essa imagem! Que seja desmistificada, se assim tiver que ser!” – Pensou Lívia

Capítulo 4: O CONVÍVIO COMEÇA...
[02/08/10]

Lívia concordou em começar imediatamente, estava tão ansiosa por aquela oportunidade que não se oporia a nada que Ana lhe pedisse, também não havia porque se opor. Queria estar ali mais que tudo...nada do que fazia dava mais prazer a ela que estar ali naquele escritório, ao lado da Dra. Ana, prestes a começar sua vida profissional da maneira que sempre sonhara.
Pediu para ligar pra casa e avisar a todos que já estava trabalhando, o que foi feito com imenso prazer saltando pela sua voz, mal disfarçando a emoção quando a Mãe atendeu o telefone:

- Mãe, vou ficar por aqui no Escritório mesmo. Acabei de ser contratada por um período de 3 meses e estou felicíssima por isso.

- Filha, que ótima notícia! Vou ligar pro seu Pai contando a novidade...mas me diga como foi a entrevista?

- Conto tudo quando chegar em casa...um beijo...tchau!

Ana chamou Lúcia e pediu que Lívia deixasse com ela toda a documentação necessária pra sua contratação temporária. Não podia mais perder tempo com protocolos. Teria uma pequena viagem de 150 km a fazer na 4ª feira e precisava que Lívia estivesse ao seu lado no Fórum da cidade. Começou por mostrar a Lívia como deveriam estar juntas na maior parte do tempo:

- Lívia, primeiro de tudo, quero que você comece a se familiarizar com a rotina e com os pequenos detalhes da vida de alguém como eu, cega. Apesar de ser bastante independente em praticamente todos os aspectos da vida de uma pessoa comum, eu tenho algumas peculiaridades que outros não necessitam tanto. Uma delas é que você acostume-se a dizer algumas interjeições quando eu terminar de dizer algo, porque senão não vou saber se você estará voltada pra mim ou não. E espero que você esteja sempre atenta a qualquer coisa que eu diga, Ok?! Já que não vou poder ler no seu olhar isso.

Lívia deu uma risadinha e pensou: “Como se eu pudesse desviar minha atenção dela, da sua voz, dos seus olhos, da sua boca...”. Disse:

- Sim, Dra. Ana. Pode ficar tranqüila que não costumo dispersar minha atenção quando algo me interessa muito.

- Aí é que está! Quero sua atenção inclusive quando o assunto não a interessar muito!
Risos.

- Não se preocupe, Doutora . Estarei sempre atenta a tudo que me disser – disse com gravidade.

Ana continuou:

- Outra coisa importante é o contato físico. É fundamental pra mim que eu saiba reconhecer tudo relacionado ao seu aspecto físico, desde sua forma até detalhes como o cheiro e o som dos seus passos. Pode parecer estranho, mas eu preciso ter e sentir segurança em quem irá estar comigo mais tempo que minha própria família e isso, eu só consigo sentir conhecendo bem quem está perto de mim, fisicamente. Assim, eu consigo perceber pelos gestos, pelo suor nas mãos, pelos passos, até mesmo pelo cheiro, o que se passa com a outra pessoa. Todos os meus Assistentes passaram por isso e acho que não constrangi ninguém.

- Como assim? Desculpe, mas não compreendi direito!

- É simples – Ana levantou-se e começou a aproximar-se de Lívia. Ana conseguia movimentar-se no escritório com a mesma desenvoltura de alguém que enxergasse. Chegou perto da cadeira onde ela estava e tateando o espaldar, alcançou os ombros de Lívia. Segurou-os e fez com que ela se levantasse. Lívia era alguns centímetros mais alta que Ana.

_ Eu preciso saber como você é fisicamente. Por exemplo, já sei que você deve ser uns 6 a 8 centímetros mais alta que eu. – Disse passando os dedos sobre a cabeça de Lívia e depois deslizando a mão espalmada pra baixo até sua própria cabeça. – Sei que você é alguém que cuida bem da pele, do asseio pessoal e gosta de cheiros delicadamente cítricos ou florais.

Começou a passar os dedos delicadamente pelo rosto de Lívia. Fez o contorno da face, seguiu pelas sobrancelhas, deslizou os polegares sobre elas e desceu até os olhos, tocou o nariz, sentiu sua forma, com os quatro dedos de cada mão tocou as faces, o queixo e chegou até a boca, onde fez o contorno com o polegar e o indicador, percebendo sua forma e textura. Falou:

- Que cor são seus olhos e cabelos?

A resposta demorou um pouco a vir a Ana preocupou-se.

- Desculpe Lívia, mas estou constrangendo você?

Lívia suspirou e disse:

- Não, de jeito nenhum. Só fiquei um pouco nervosa com a inspeção. É novidade pra mim! Cor de mel. Ambos são cor de mel.

A voz de Lívia parecia levemente embargada, como se estivesse incomodada com o jeito que Ana tinha de “enxergar” fisicamente as pessoas. Ana resolveu, então, passar a varredura tátil direto pelos braços até o pé, como que medindo mentalmente a moça.

- Pronto! Não precisa ficar mais constrangida. Acabei minha inspeção física. Já sei que você é alta, magra, mas tem braços e pernas fortes. Faz algum esporte?

- Costumo correr ao longo das margens do Rio. Há uma espécie de pista lá perto. Próxima à trilha.

- Muito bem, eu também gosto de correr, mas só me aventuro à minha esteira elétrica, em casa! Você deve ser muito bonita, Lívia. Pude “ver” pelos seus traços. Tem uma pele ótima e ter olhos e cabelos cor de mel naturalmente, é uma raridade! Deve ser muito paquerada pelos rapazes. Tem namorado?

- Sim, tenho. Caio é como se chama.

- E vocês se dão bem?

- Sim, eu gosto dele. É uma relação tranqüila.

- Que bom! Quando se vai bem na vida pessoal, as coisas parecem mais fáceis também em outros aspectos, como o profissional. Só espero que você não esteja fazendo planos pra se casar logo, pois não quero perder outra assistente em tão pouco tempo.

- Não! Não pretendo me casar! – Disse Lívia num tom firme, que Ana já estava começando a reconhecer.

- Porque não? Você é tão jovem ainda, como pode ter certeza disso? Um dia irá se apaixonar de verdade e aí, tudo o que irá querer é estar junto da pessoa amada, casar-se, formar uma família.

Lívia foi contundente:

- Não preciso me casar no papel pra ter tudo isso. Se amar alguém de verdade um dia, pode ser que eu queira. Mas primeiro preciso acreditar nessas coisas, e isso, eu ainda não consegui até hoje.

Ana riu, meio que complacente com o que ouvira:

- Ah, criança! Você ainda é muito menina pra desacreditar. Ainda tem muito tempo pra descobrir essas emoções todas. Mas, o importante é crer sempre nas possibilidades de acontecer o Amor a qualquer momento em nossas vidas. Acho que manter essa crença é fundamental pra podermos perceber e reconhecer o Amor quando ele surgir. Além de não nos tornarmos amargos com a falta de fé nele.

Lívia pigarreou. Esse discurso sobre o Amor a incomodava e não queria discutir seu ceticismo com Dra. Ana. Ficava parecendo uma criança idiota que não sabe nada da vida e quer parecer inteligente negando suas emoções. “Droga! Que culpa tinha de nunca ter amado antes? Nunca sentira aquelas emoções que os livros, as novelas e os filmes retratam por nenhum de seus namorados. E não tinha que se sentir culpada por isso! Adorava poesia, emocionava-se com cenas ou narrativas sobre o Amor, mas nunca sentira de verdade aquela emoção tão propalada por aí. Também não queria saber se uma dia sentiria algo assim ou não. Não se preocupava, nem pensava sobre isso. E agora vinha essa Doutora “pretensão” querer ditar regras sobre o Amor pra ela!” – não entendia porque estava tão irritada com todo aquele discurso da Dra. Ana, mas o fato é que estava irritadíssima e isso transpareceu em sua voz quando falou:

- É Doutora, talvez eu seja mesmo muito criança pra esses sentimentos. Mas acho que o que nos interessa no momento é se vou ser competente na minha função. E nisso eu posso garantir que serei adulta e bastante responsável, pois vou fazer algo que gosto e quero muito aprender.

Ana percebeu que a conversa tomara um rumo diferente que não agradou nem um pouco sua interlocutora, voltou ao tema profissional:

- Outra coisa importante Lívia, é que você saiba como me conduzir nos lugares públicos. Eu adoro andar sozinha pela cidade de vez em quando, e uso meu cão-guia, o Fred, nesses momentos. Mas nas idas ao Fórum, nas audiências, nas viagens a outras cidades, não posso levar o cão, então meu Assistente tem que saber me conduzir sem me atrapalhar, entendeu? Vou lhe mostrar...

Ana aproximou-se de Lívia e pegou em seu braço direito, dizendo:

- Gosto que me conduzam pelo lado esquerdo, pois sou destra e quero ter a mão direita livre pra qualquer coisa. – E começou a caminhar pelo escritório, mostrando a Lívia como esta deveria levá-la.

- Eu seguro em seu braço e não você o meu. Só preciso sentir sua direção e acompanhá-la. Não seja complacente comigo sem necessidade. Isso é algo que me irrita muito!

Ana continuou, andando pela sala segurando o braço de Lívia:

- Quando formos ao Fórum, preciso que leia ou escaneie os processos pra mim, nas audiência preciso que me diga ao ouvido toda a movimentação em volta. Como está o semblante do Juiz, dos “ex adversus” e seus Patronos, fazer um resumo de toda a história e me deixar a par de todos os detalhes antes da audiência.

Parou de andar e virou-se na direção de Lívia:

- Nossa convivência será diária. Com o tempo vou passar a conhecer como está seu temperamento só pelo som dos seus passos. Eu preciso confiar em quem está ao meu lado e se esta confiança não se estabelecer com o tempo, está findo o nosso contrato, entendeu? Detesto “puxa-saquismos” ou “pajelança”. Se você me admira, ótimo! Mas não permita que isso influencie sua capacidade de analisar os casos com imparcialidade e cautela. Quero alguém que consiga ver o que não posso e que me transmita isso de modo claro e sem rodeios. Um exemplo disso, é quando se olha nos olhos de um cliente pra saber se o que diz é verdade ou não. Não tenho como fazer isso, e a voz, às vezes engana os ouvidos não muito atentos. Como já disse antes, você terá que ser fiel às nossas causas, mas principalmente fiel a mim. Se você não sentir honestidade em algum candidato a cliente, quero que seja clara e objetiva sempre comigo; que me dê sua avaliação do caso pra que eu possa decidir se aceito ou não. Bem, vamos começar com as coisas práticas...

Ana dirigiu-se à porta e, puxando Lívia pelo braço começou a mostrá-la todo o escritório, apresentando-a a todos que ali trabalhavam, desde os sócios até a faxineira.

- Pessoal, essa é Lívia. À partir de hoje ela será minha Luz aqui no Escritório, será meus olhos para aquilo que eu não posso enxergar. Por favor, colaborem todos com ela da mesma forma que fazem comigo. Pra começar, Fábio e Denise, passem pra Lívia as cópias dos dois processos que iremos fazer Audiência em “Campo Lindo” na 4ª feira, preciso que ela esteja totalmente inteirada do que se trata, pra termos sucesso logo na primeira. Vamos propor um acordo. Não pretendo voltar por lá tão cedo.

Lívia cumprimentou a todos com simpatia e foi bem recebida também. Gostou do ambiente, parecia que todos trabalhavam ali com prazer. Ana continuou levando Lívia pelo braço...

- Aqui será sua sala, será contígua a minha, pra qualquer eventualidade você estar logo ao meu lado, não há porta, somente esta divisória. Não iremos ter segredos profissionais, por isso não preciso estar isolada de ninguém. E quando quiser privacidade pra falar algo ao telefone ou com alguém, vou pedir que você saia.

- Entendi!

- Agora vamos ao trabalho, comece lendo os processos e todas as dúvidas que por ventura surjam, resolveremos juntas.

Ana deixou Lívia sozinha e foi para a sala ao lado. Começou dando vários telefonemas e depois foi fazer suas petições no computador, especial para cegos. Lívia começou a ler os processos, mas perdeu-se em outros pensamentos...
“ Meu Deus! O que aconteceu comigo quando ela me tocou? Que reação doida foi aquela! Fiquei totalmente lívida, não conseguia mexer um músculo nem pensar em nada; só naqueles dedos deslizando pela minha pele, tocando de leve, em alguns momentos mais forte, como que pra gravar o que era sentido. E o pior foi quando ela começou a falar de Amor...será que ela percebeu o quanto fiquei desconcertada e irritada com tudo aquilo? Tive vontade de sair correndo e sumir dali. Me senti tão pequena, tão boba!”

Lívia não entendia sua reação aos toques de Dra. Ana, menos ainda se ela falava de sentimentos mais íntimos. Sentia-se tola com suas teorias a tanto tempo formuladas, que lhe pareciam tão seguras e verdadeiras. “Como ela estaria me vendo agora? Será que como uma menina idiotinha, cheia de arrogância, com certezas absolutas sobre tudo? Tomara que não, porque naquele momento sentia um monte de coisas, menos segurança e certeza. Eram emoções aos borbotões, coisas que desconhecia e que tinha até medo de pensar...” .
Voltou-se para a leitura dos processos e afastou aqueles pensamentos estranhos. Tinha que dar muita atenção aquilo que realmente importava naquele momento, o trabalho. Esse era o seu propósito e nada poderia desviá-la dele.

Ana, em sua sala, também pensava sobre a nova Assistente: “Ela tem algo que me intriga! Não é exatamente em relação a confiança ou a sua capacidade no trabalho. Mas algo no ar, que não consigo explicar, só sentir! Foi como seu leve tremor quando a toquei, senti sua boca mexer, como se quisesse dizer algo...senti seu nervosismo no ar. Claro que é normal esse nervosismo, afinal ela veio para uma entrevista e acaba ficando pra trabalhar. Mas tem algo além disso...com o tempo, descubro o que é...o que importa é que gostei do seu jeito firme, sem muito “rapa-pés”, preciso de alguém assim por aqui. Nada de puxa-saco ao meu redor! Tenho horror a essa gente!”
Ana voltou-se ao trabalho e esqueceu por ora sua Assistente. Quando Lívia terminou de analisar os processos, reuniram-se para discutir sobre eles e o dia transcorreu sem que se dessem conta.

O dia seguinte foi muito agitado por conta dos preparativos pra viagem e relatórios sobre os processos. Na 4ª feira Lívia chegou pontualmente as 7:00 horas na casa de Ana para que fossem para “Campo Lindo”. Foi atendida pelo Marido dela, Alberto, que foi gentil, porém seco, como costumava ser com estranhos. Disse que Ana já estava descendo e deixou Lívia na sala sozinha esperando. Ana desceu as escadas num Tailler verde-água acinturado que deixava suas curvas bem definidas, além de ter um decote que fazia a imaginação flutuar, porém nada que fosse vulgar ou fora do decoro das dependências Judiciais. Lívia sentiu seu coração acelerar diante da visão daquela mulher, mas não entendeu porque aquela reação do seu corpo. “Porque fico nervosa e incomodada diante da beleza dela? Não entendo! Parece que volto a ser aquela criancinha boba fascinada pelo brilho de um olhar sem luz!”

- Bom dia Lívia. Espero não ter feito você esperar muito, é que a arrumadeira trocou meus Taillers de lugar e não estava conseguindo encontrar este. Como está minha maquiagem? Não quero nada extravagante demais. O Juiz daquela Comarca é muito austero. Não posso parecer vulgar de jeito nenhum.

- A Senhora está linda, Doutora. Não se preocupe, jamais pareceria vulgar! – disse isso com o coração batendo forte e dirigindo-se na direção de Ana para que ela pegasse seu braço. "Como ela consegue se maquiar tão bem sem se ver no espelho?". Nesse instante, Alberto apareceu e despedindo-se de Ana com um selinho de leve disse:

- Tenha um bom dia, querida! Veja se come direito, você está emagrecendo e não gosto de mulher magra demais. Sabe disso! – Tirou o braço de Lívia e postou-se no seu lugar, levou a mulher até o carro e recomendou pra motorista:

- Cuidado hein menina! Dirija com atenção e não desvie os olhos da estrada, nada de atender o celular. A Ana faz isso.

Lívia não gostou do modo como Alberto falava com ela. Parecia um Comandante do Exército pra um subordinado. Era autoritário demais e tratava Ana como um trofeu. “Ridículo!”

Ana foi a viagem toda conversando bastante com Lívia. Falaram sobre trabalho, a faculdade, como eram os professores, quais matérias Lívia mais gostava, em que área pretendia seguir carreira e várias outras coisas mais banais. Não tocaram em assunto pessoal. Na audiência Lívia ficou um pouco apreensiva quando se viu diante do Juiz, pela primeira vez não apenas assistindo à Audiência, mas efetivamente participando dela. Ana sentiu sua vibração e disse-lhe no ouvido, transmitindo-lhe calma: “ Fique tranqüila, meu bem! Ele é apenas alguém que analisa o que ouve. Nós colocamos as cartas na mesa. Nas primeiras Audiências, você só irá me auxiliar fazendo um resumo de tudo o que vê e lê. Quando estiver mais preparada e segura, também poderá fazer suas alegações. Por enquanto, apenas observe!”

E foi o que Lívia fez...observou! Ficou olhando e admirando o modo seguro como Ana defendia a causa de seu cliente. O seu jeito de postar-se em direção ao Juiz e falar como se estivesse olhando diretamente nos olhos dele, coisa que os óculos escuros escondiam. Todos na sala também a olhavam como que hipnotizados por sua elegância feminina e contundência com as palavras. Ana discorria sobre os fatos transmitindo verdade, de maneira linear e calma. Conseguia atrair e manter a atenção de todos como uma atriz num monólogo interessante. Nem é preciso dizer que tudo saiu como ela planejou e Lívia teve sua primeira grande aula de como se exerce o Direito na prática.

Voltaram pra casa já era noite. Ana dormiu um pouco durante a viagem. A princípio parecia que ela fazia tudo muito naturalmente, sem grandes esforços, mas era óbvio que toda aquela postura e exibição de segurança, tinha seu desgaste físico e mental. Lívia dirigia pensando em tudo o que vira durante as duas Audiências, no almoço que tiveram entre uma e outra, nas conversas...mas seus pensamentos eram invariavelmente invadidos por outros nada convencionais...lembrava sua boca dizendo todas aquelas palavras; o movimento de suas mãos finas e de dedos longos em gestos delicados; o modo como afastava os cabelos que teimavam em cair pela face; o sorriso de satisfação com as causas ganhas; o jeito de comer, de falar, de andar; o toque, ah, aquele toque que queimava em sua pele, que fazia arrepiar sem querer!
“Não, não, não! Isso é muito doideira! Que pensamentos são esses? Eu devo tá ficando maluca mesmo! Deve ser o estresse emocional de uma novidade em minha vida. Estresse bom, por sinal!”

Deixou Ana em casa, estacionou o carro e foi embora pra sua casa a pé. Adorava caminhadas, principalmente quando estava confusa, querendo entender ou até mesmo esquecer algo.
Chegou em casa contando animadamente as novidades, estava excitada, feliz com tudo o que estava acontecendo, não iria permitir que esses pensamentos estranhos, incômodos, estragassem sua alegria.
Na cama demorou a dormir, ficou pensando nos acontecimentos do dia e eles voltaram a assombrá-la...os pensamentos incômodos! Rolou umas duas horas até conseguir dormir de vez. A última coisa que pensou antes de adormecer foi: “Doutora Ana, porque você me parece tão especial? Que pensamentos são esses que me deixam tão aflita? Ah, deve ser admiração pelo que ela é! Eu não tenho ídolos e talvez eu tenha mitificado demais a imagem dela, por isso essas emoções tão confusas! Mas e se toda essa idealização for aos poucos se confirmando verdadeira? Se esse sentimento de admiração e encantamento continuar me perseguindo?” – Dormiu. Com a frase “ Estou Encantada” ronronando em sua mente.


Capítulo 5: VIDAS PARALELAS...



[03/08/10]

- Flavio, querido! Saia da piscina, você vai ficar resfriado assim! Já está na hora de almoçarmos, venha tomar banho!

- Ah, mãe! Deixa mais um pouquinho, vai! Já tô sabendo nadar que nem um peixe, olha só! Sem bóia, Mãe!

- Eu não tô vendo, mas pelo barulho, tá parecendo um Golfinho! Venha logo, porque sem comida o Golfinho afunda!

- Saia já dessa piscina, Flávio! Obedeça sua Mãe! Ela já sabe que você já está nadando sem bóia. Agora venha comer!

Alberto era sempre mais rígido com Flávio. Ana preferia conversar, mimar o filho, já que ficava pouco com ele. Era nos finais de semana que mais curtia seu lindo menino, que estava para completar 6 anos no mês próximo. Alberto tinha um ar um tanto altivo demais com o filho, gostava de mostrar sua autoridade de Pai, que Ana achava desnecessária. Claro que ele amava o filho, mas não o acarinhava, nem fazia dengos como Ana adorava fazer. Talvez fosse ciúme por ter que disputar a atenção da mulher com o filho. Desde o seu nascimento, sentia que Ana não era mais sua apenas e isso o irritava. Essa competição por atenção com o próprio filho era muito desgastante e injusta afinal. Era muito auto centrado e gostava de atenção exclusiva. Fora criado assim pela Mãe e achava injusto que seu filho o tivesse roubado a mulher.
“O fato é que depois de tantos anos juntos, o casamento perde mesmo o seu encanto” – pensava Alberto – “Ainda amo minha mulher, a acho linda, gostosa, mas o tesão se perdeu com o tempo. Que uma boa novidade seria uma tentação, isso seria! Adoraria ter uma pequena aventura, sem compromissos, com alguma Ninfetinha desavisada. Acho até que isso traria um incremento ao meu casamento. Uma apimentada na relação!” – Alberto continuou com suas conjecturas meio cafajestes, mas que pareciam muito naturais para um homem àquela altura de sua vida. Chega uma fase em que esse tipo de questionamento vem para alguns, outros preferem pensar a dois e não a três.

Ana também achava que o casamento passava por um momento delicado. “Talvez fosse a tão falada crise dos 10 anos que já se aproximava” – Pensava. Mas ela imaginava uma solução diferente: “Uma segunda Lua-de-mel, poderia ser uma boa solução. Não viajamos juntos somente nós dois há muito tempo. E quem sabe, alguns dias sem nossos problemas, trabalho, sem a rotina fatídica, sem criança por perto, poderia renovar nossa relação. Trazer mais tesão mesmo pro casamento, tá tudo tão morno e sem graça. Mas ainda amo meu marido e quero muito salvar nossa vida de casal.”

- Beto, porque não tiramos umas férias e fazemos uma viagem pra um lugar bem especial, só nós dois? Acho que umas duas semanas ou três seria perfeito! Eu posso deixar o escritório com os outros sócios, tenho mais 3 afinal e tenho certeza que alguns dias não iriam afetar nossas causas. Ainda mais agora, que tenho uma Assistente que mostra muito interesse em aprender. Tenho certeza que ela deixaria tudo organizado com muito jeito. Vamos?

- Tá louca, Ana! Logo agora que meu chefe vai tirar férias depois de uns 10 anos! Vou substituí-lo e não posso me ausentar de jeito nenhum. Além do mais, fui promovido a Diretor Jurídico da Empresa e não posso nem pensar em tirar férias pelos próximos 12 meses. Me dê um tempo, tá! Já chega o estresse que vivo no trabalho, não me cobre coisas que não posso fazer agora!

Ana nada disse. Sentiu-se muito triste pelo fato de não ter sido bem compreendida. Queria mostrar ao marido o quanto estava empenhada em tirar o casamento da rotina, em tentar fazer renascer a vontade que tinham em estar juntos, em fazer Amor...mas ele não captou nada e ainda ficou irritado com a proposta. Desistiu desanimada. Não via perspectiva em melhorar a situação por ora. Então que assim ficasse, já estavam acomodados mesmo!

Voltou sua atenção ao filho querido, ele sim lhe dava prazer com sua risadinha infantil, sempre alegre e carinhoso. Sabia que a Mãe adorava ser tocada por ele, com suas mãozinhas pequenas e delicadas e também adorava ser acarinhado por ela. Aprendera que a melhor forma de demonstrar seu afeto era através do toque e muitas vezes fechava os olhos para sentir como era o mundo em que sua Mãe vivia. Nessas horas, tocava seu rosto para senti-lo da maneira que ela o sentia e saber como ela o enxergava. Gostava muito de se transportar para o universo escuro e saber como sua mãezinha andava pela casa sem esbarrar nos móveis, como arrumava seu prato de comida, como ajeitava as coisas em casa sem poder vê-las. Era pequeno, mas compreendia perfeitamente bem as dificuldades e os obstáculos diários que sua Mãe tinha que transpor para levar uma vida normal. Muitas vezes até esquecia que ela não podia ver, e mostrava a ela os desenhos que gostava de fazer, os deveres de casa e as fotos que o Pai tirava dele e da família. Era engraçado como ela sempre sorria e pegava nos papéis como se pudesse realmente enxergá-los. Aprendeu na escola fazer desenhos com texturas, para que sua Mãe realmente pudesse vê-los. Fazia o mar com ondas em relevo de cola e areia de verdade colada ao papel. Casinhas com palitinhos de sorvete e bandeirinhas de verdade. Tudo para que a Mãe pudesse “ver” aquilo que ele fazia pra ela com tanto gosto. E ela retribuía com gestos de Amor e palavras de incentivo. “Pena que Papai não seja como ela! Anda sempre brabo e irritado comigo ou com alguma coisa. Não ligo, ele é bobo e chato! Mas gosto dele mesmo assim.” – Pensava o pequeno.

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Lívia gostava de passar os finais de semana curtindo suas coisas em seu pequeno mundinho chamado Quarto! Claro que adorava também aproveitar o dia ao ar livre ou sair à noite pra papear com os amigos, namorar, dançar. Mas aquele pequeno canto de sua casa, continha tudo que era importante pra ela em sua nova fase: o computador, os livros, os papeis de estudo, suas anotações e principalmente, seus pensamentos. Andava muito introspectiva mesmo, apesar de ser extrovertida e nem um pouco tímida, estava vivendo um período de muito silêncio e auto-análise. O pior de tudo é que quanto mais pensava, menos respostas lógicas encontrava para os sentimentos que vinham aflorando ultimamente. Admirava Dra. Ana, seu jeito em lidar com suas dificuldades, com o trabalho, com os clientes, os sócios, os empregados, o modo como a tratava sempre com cortesia e educação; seus olhos como brilhavam quando contava alguma gracinha que o filho tinha dito. Era uma mulher fantástica e despertava em Lívia sentimentos que ela desconhecia até então. Nunca havia admirado ninguém assim, amava seus Pais, adorava a irmã, teve vários professores, namorados, mas ninguém nunca despertara em Lívia tamanho interesse e admiração quanto Ana. O pior era a confusão de sentimentos, não apenas admiração, mas algo mais forte que a fazia ter vontade de ficar com Ana além do normal. Queria estar perto dela nas horas vagas, nos momentos de lazer, nos finais de semana. Era o primeiro final de semana depois de ter começado no novo Estágio e percebia que o que mais desejava era que chegasse logo a 2ª feira para voltar ao Escritório. Antes, seu dia preferido era a 6ª feira, pois sabia que poderia sair, aproveitar a noite à vontade, farrear bastante, e teria o sábado e domingo para fazer nada e tudo ao mesmo tempo. Agora, este final de semana parecia tão sem graça. Caio logo chegaria para que pudessem almoçar e passar juntos o resto do dia. Gostava dele, o sexo era bom e achava até que era esse detalhe que os mantinha juntos ainda. Nunca havia amado nenhum namorado, pelo menos não como se lê nos livros e na poesia. O que a ligava a eles era puramente a parte física, enquanto a vida sexual fosse boa e quente, ela os aturava, quando começava a esfriar, pronto! Já perdia o interesse e passava a buscar novos amores. Era frívola, sim! Mas não julgava ser culpada disso. Eram assim que as coisas se apresentavam a ela, que tudo se passava em sua mente e em seu coração. Não ficaria com ninguém por compaixão. Acabou o tesão, acabou a relação, sem conversa fiada ou “mas” e “porquês”. Não tinha paciência para sentimentalismos tolos e não iria fingir para agradar a ninguém. Achava por demais piegas esses sofrimentos e dores que as pessoas diziam sentir por Amor. O Amor deveria ser simples assim: sentiu, viveu, acabou, morreu, tchau! Sem devaneios desnecessários que tornavam as coisas tão risíveis!

E por falar em risível, havia coisa mais ridícula que esse seu encantamento pela Dra. Cega? Uma mulher que só possuía de diferente, uma cegueira que a tornava mais obstinada para sobreviver num mundo competitivo e predador como o nosso. Era isso! Admirava apenas sua perseverança em ultrapassar os obstáculos que se apresentavam em sua vida. Só isso! Sim, também a achava bonita, mas nada excepcional! “Aposto que alguns meses de convivência e toda essa admiração cai por terra! Daqui a pouco já vou estar achando ela uma chata de galochas, a beleza não verei mais, por se tornar comum pra mim, e vou acostumar com seu jeito. Com o tempo, tudo perde o seu encanto! É só deixar que ele passe e afastar os pensamentos incômodos quando eles chegarem. Não vou permitir que meu final de semana fique comprometido pensando no trabalho e na Dra. Ana Mendes. Que se dane tudo e vamos à diversão!!!”
Saiu e foi encontrar Caio para curtirem juntos aquele sábado de sol e muito calor.

No domingo Lívia acordou cedo e foi correr na trilha do Rio, como adorava fazer. No mesmo momento, Ana corria em sua esteira em casa. Gostavam da mesma atividade física, mas era tão diversa a forma como a praticavam. Lívia podia sentir o ar fresco da manhã, ouvir o Rio correr um pouco menos que ela, sentir o cheiro verde da mata ao redor e, vez por outra, parar no meio do caminho pra admirar algum pássaro mais exótico ou uma cotia correr entre os arbustos. Já Ana, em sua esteira, ouvia música e usava sua imaginação para trazer pra si todo o mundo que Lívia tinha e muitas vezes não se apercebia. As lembranças que Ana tinha de como era a natureza, a cor do céu num dia úmido e quente como aquele, os pássaros multicoloridos, as orquídeas grudadas nas árvores em sua forma e beleza ímpares. Sim, trazia tudo para sua mente e as transformavam em imagens ao longo do caminho que imaginava percorrer em sua esteira.
Eram vidas paralelas, cada qual com suas emoções próprias e modos únicos de ver e sentir. Ambas passavam por mudanças, nos sentimentos que até então eram bem conhecidos e definidos em cada uma. Mas que de alguma forma se convergiam mais adiante, por um capricho do destino ou brincadeira de Deus com seus pequenos Títeres de carne.


Capítulo 6: NOVOS SENTIMENTOS EM ANA...

[04/08/10]


O tempo transcorria sem grandes intempéries. Ana já desistira da idéia de umas férias, ainda mais, nova lua-de-mel. Todo o romantismo que ainda podia ter, ruiu com as palavras ásperas de Alberto naquela manhã de sábado e podia sentir que a relação entre ambos, tornava-se cada dia mais distante. Ana decidiu voltar-se ainda mais para o trabalho e nas horas vagas, dava mais atenção ao filho e às suas pequenas coisas. Eram o seu grande divertimento, seu prazer.

No Escritório Ana passou a reconhecer em Lívia uma grande companheira. Ela era sempre muito atenciosa, eficiente no trabalho e era incrível a rapidez com que aprendia os trâmites de um processo, como fazer as petições para cada caso, os Recursos, Agravos. Lívia era de uma habilidade sem igual. Realizava seu trabalho como se já estivesse formada e Ana admirava muito sua aptidão para a matéria. Não havia dúvida que Lívia preenchia todos os requisitos para um dia tornar-se sócia do Escritório, se assim quisesse, ou então iria se tornar uma grande concorrente, pois era por demais eficiente em tudo que fazia.

Dia após dia, Ana aprendia um pouco mais sobre a personalidade e o jeito intrigantes de Lívia. Tinha vezes que chegava ao Escritório falante, com um tom alegre na voz, era calma e muito gentil com Ana; por outras, era um pouco mais arredia, ficava quieta, quase não falava a parecia submersa em seu mundo particular; nesses dias, quase não tocava Ana, só quando estritamente necessário. E isso incomodava um pouco Ana, pois parecia que vinha dela a causa do mal estar de Lívia. Queria entender o que a fazia ficar desse jeito. Porque esses paradoxos no jeito de lidar com ela. Com o trabalho não podia reclamar, pois Lívia era sempre muito boa no que fazia, estivesse com o humor que fosse. Mas gostava muito quando ela era meiga, gentil; gostava do seu jeito de tocá-la com delicadeza e ao mesmo tempo firme, para lhe dar segurança; adorava seu perfume cítrico, sempre o mesmo, e sua voz transmitia verdade e confiança que tranqüilizava Ana.
Sabia respeitar os momentos de introspecção de Lívia, estava disposta e descobrir porque, mas sem ser inconveniente com questionários tolos. Esses momentos também não eram tão ruins assim, fazia com que Ana também se voltasse um pouco mais pra si e para seus próprios questionamentos. Além disso, as vezes em que Lívia estava bem humorada eram bem mais que seus momentos de quietude.

- Lívia, venha cá, por favor! Vamos conversar um pouco. – Chamou Ana.

Lívia saiu de trás da divisória que separava suas salas e sentou-se na cadeira de frente pra Ana. Ela estava num dia leve!

- Diga, Doutora! Alguma nova tarefa?

- Não sei. Vai depender da sua resposta. Sabe que dia é hoje? – Perguntou Ana.

- Não. É alguma data especial que deveria lembrar? Xiiiiii...acho que dei algum furo!

Ana riu do tom falsamente preocupado de Lívia. Já sabia reconhecer quando ela era sarcástica.

- Hoje faz três meses que você está aqui conosco. E quero saber se é do seu interesse continuar com a gente ou não. Gostaria muito de efetivá-la se assim for o seu desejo. Adoro o seu trabalho e o modo como nos damos bem. Só preciso saber se você também pensa assim.

Formou-se um silêncio longo, meio perturbador. Lívia não conseguiria articular a voz sem tremer, por isso ficou calada por mais tempo pra se refazer. “ Esperei tanto por esse dia! Contei cada minuto e hoje fiquei toda a manhã esperando ela me chamar. É bom demais ouvir isso dela!” . Respirou profundamente e falou:

- Dra. Ana, sabe que adoro estar aqui com a Senhora. Nesses três meses aqui aprendi mais que os primeiros 2 anos de faculdade. Tudo o que mais queria ouvir, a Senhora me disse agora. Quero muito ser efetivada sim, e só tenho uma coisa a pedir....

- Diga, querida.

- Vamos almoçar no Alfredo para comemorar, e por hoje a conta é minha. Por favor!

Ana riu, estava feliz com a alegria impressa na voz de Lívia. Gostava muito de estar com ela, da sua companhia, de trabalharem juntas e o que mais queria era efetivá-la logo, para dar-lhe mais segurança e motivação no trabalho. Ela merecia isso e muito mais, pela sua eficiência. Além do mais tratava Ana com tanta devoção e carinho que se pudesse, levaria Lívia pra sua casa. Engraçado, como até nessas horas, Lívia pensava em Ana. Ela havia comentado que “Alfredo” era o seu restaurante favorito. Uma típica cantina Italiana, com pratos da “Mamma” e música Napolitana ao fundo, bem suave. As mesas cobertas com aquelas toalhas quadriculadas de branco e vermelho e todos os detalhes de uma perfeita taberna de Nápoles. Esses detalhes não eram vistos por Ana, mas eram sentidos no clima criado para deixar o lugar com a cara da Itália.
O Almoço transcorria num clima tão ameno e alegre, que Ana e Lívia não se preocupavam com o passar das horas. Pediram antepastos, prato principal, vinho tinto e sobremesa. Tudo regado a uma conversa gostosa, que variava o tema entre o que gostavam ou não de fazer, livros prediletos, a dificuldade em conseguir títulos em braile, a facilidade que o computador trouxe pra vida de Ana, as corridas que as deixavam em formas perfeitas...era um papo tão gostoso, sem temas pesados, sem preocupações...ambas discorriam sobre o que mais dava prazer a cada uma e as coisas e pessoas maçantes que faziam com que as boas parecessem melhores ainda! Riam muito uma da outra. Ana achava graça da entonação na voz de Lívia ao falar de alguém ou algo desagradável e imaginava como devia ser seu rosto, imaginava feições delicadas e caretas engraçadíssimas. “Lívia era muito espirituosa.” Pensava Ana.
Lívia não tirava os olhos de Ana. Era linda a sua expressão de felicidade...sua risada quando Lívia fazia alguma graça...seu jeito de tocá-la no braço enquanto ria de suas piadas bobas. “Ana era brilho puro! Incrível como alguém que não via podia exalar tanto brilho pelos poros, pelos olhos, pelo sorriso...tem coisa mais bela do que ela nesse momento de relaxamento e diversão? Ela fica ainda mais linda sem aquela ruguinha de preocupação entre as sobrancelhas...com o semblante leve, risonho...Linda demais!!!”

O almoço acabou e decidiram ir até o Rio à pé, caminhar pela margem e desgastar a orgia gastronômica que se permitiram fazer. Na verdade, queriam desfrutar da companhia uma da outra mais tempo ainda. Não queriam que aquela tarde agradável acabasse e, como não tinham nenhum compromisso, resolveram prolongar o prazer que sentiam em estar juntas algumas horas mais.

- Dra. Ana....

Ana interrompeu Lívia dizendo:

- Quando estivermos a sós, pode me chamar só de Ana, Lívia. Nós já estamos juntas o dia-a-dia há três meses, e não precisamos dessa formalidade toda quando não houver outras pessoas a nossa volta.

Lívia estava um pouco desconcertada, mas feliz pela intimidade que compartilhavam.

- Tá bom! Ana...eu queria dizer que adorei nosso almoço. Estou muito feliz em continuar o trabalho junto de você e acho que vou ser uma excelente profissional mirando-me no seu exemplo de conduta e ética.

- Ora Lívia, deixa de rapapés...conduta, ética? Que palavras formais são essas? Obrigada, pelos confetes, no fundo eu adoro! Sou meio Narcisista mesmo. Apesar de não poder me apaixonar pelo meu próprio reflexo como Narciso. Hahahaha.

Ana segurou as mãos de Lívia, depois aproximou o rosto e beijou a face de Lívia...

- Eu também adorei nosso almoço e quis fazer essa caminhada, não apenas pra desgastar toda aquela comilança, mas para estar um pouco mais com você. Adoro sua companhia e os momentos que passamos juntas, no trabalho e mais ainda agora, fora dele.
Ana passou a mão próximo ao nariz de Lívia e imaginando onde estariam seus olhos, olhou profundamente nos de Lívia; deu um sorriso lindo e disse:

- Acho que se você não quisesse mais ficar no Escritório, eu estaria mais perdida que cego em tiroteio. Não deveria te dizer isso, porque você já é convencida e vai ficar mais ainda...mas se você não quisesse ficar, eu sentiria mais falta que de qualquer outra pessoa ali e qualquer outro Assistente que eu tenha tido até hoje. Gosto de você mais que profissionalmente. Te adoro como amiga e quero que nossa parceria seja por muito tempo.

Os olhos de Lívia ficaram marejados. Sorte sua Ana não poder ver! Lívia segurou a mão de Ana e começaram a caminhada assim, de mãos dadas, como velhas companheiras. Era essa a sensação que tinham...que eram companheiras de longa data.

- Já que gosta tanto de correr, porque não venha correr comigo aqui na trilha do Rio? Eu acordo cedo e poderia passar na sua casa, trazê-la pra cá. Aposto como seria bem melhor que correr naquela esteira da sua casa. Você vai poder sentir o cheiro bom das árvores, ouvir o canto dos pássaros, o Rio batendo nas pedras da margem. Diga que sim e amanhã mesmo começaremos.

- Sim, querida. Claro que sim, eu esperava há muito esse seu convite, mas tinha medo de ser um estorvo para a sua corrida. Tenho um bom preparo físico, mas vou ter que aprender a correr nesse novo caminho e posso tropeçar muito até conhecê-lo bem. Você terá paciência?

Lívia riu, era tudo o que queria há muito tempo também...

- Claro que vou ter paciência! Além do mais será uma ótima oportunidade de me vingar das suas maldades comigo lá no Escritório. Quando você for má, eu ponho o pé na frente e digo que foi uma pedra...hahahha.

Ana riu:

-Você que é uma menina muito má! Pobre Caio, deve sofrer muito nas suas mãos.

Lívia ficou séria. Havia terminado com Caio uma semana antes e não disse nada a Ana, não sabia porque. Pensava até que poderia voltar pra ele a qualquer momento, afinal ele insistia muito e ligava pra ela todos os dias. Lívia não tinha ninguém mesmo, porque então desmanchara com Caio que era tão legal? Era como se ele atrapalhasse seus pensamentos...estava querendo muito ficar só, com seus pensamentos, com suas novas tarefas e Caio sempre vinha tirá-la dos seus devaneios, cobrando carinho, atenção...estava farta de ter que dividir seu tempo. Mas tinha que confessar que sentia falta do sexo...será que eu poderia ter uma amizade colorida com ele?

- Nós não estamos mais juntos...mas também ainda não nos desligamos de vez...é meio complicado.

- Quer falar sobre isso? Pensei que gostasse dele.

- Gosto, mas não é aquela Paixão! Não quero falar sobre isso.

- Ok! Nada de estragarmos nosso fim de tarde com conversa chata. Me mostre a trilha onde terei que correr.

Lívia caminhou com Ana por toda a trilha ao longo do Rio, deveria ter uns 4 km de extensão, que formava um circulo ligando dois municípios. Lívia costumava correr o percurso ida e volta o que totalizava uns 8 quilômetros diários, fora mais 1 km, no mínimo que teriam que percorrer da casa de Ana até o começo da trilha; e Ana não se assustou. Estava empolgada com a possibilidade de um contato maior com a natureza que tanto amava e ainda estava na sua mente bem viva. E Lívia, aquele menina tão adorável, iria proporcionar esses momentos mágicos a ela.

- Obrigada, minha Luz! – Disse Ana beijando a mão de Lívia que ainda segurava.

- Luz? – questionou Lívia, com emoção.

- Sim, minha Luz! Você é minha Luz no trabalho, nas Audiências, nos caminhos que percorremos juntas nas cidades que temos que visitar...agora você será também minha Luz para as coisas que me dão prazer, como a corrida nesse lugar tão aprazível e a companhia agradável para um almoço gostoso, regado a um bom vinho, no velho e querido “Alfredo”.

Lívia emudeceu! O toque, o beijo suave por cima de seus dedos, aquelas mãos que não queriam largar as suas, aquele sorriso que iluminava tudo...
“Meu Deus! Que era aquilo! Não posso pensar nisso...não posso pensar!”

As mãos não se largaram até o carro. Lívia deixou Ana em casa. Já era por volta de 7 da noite e a empregada veio recebê-la com Flávio pulando no colo dela. Alberto chegou na porta, mas virou as costas logo que viu Lívia. “Não vou muito com a cara daquela garota! Ela até que é gostosinha, daria uns pegas nela se não fosse tão próxima de Ana, mas aí já seria risco demais! Não valia a pena, era muito antipática, e olhava pra ele com uma cara de poucos amigos. Que se danasse, não gostava dela também!”
Ana aproximou-se de Lívia, com Flávio no colo e a abraçou com o menino entre ambas...todos riram muito e Ana falou:

- Novamente obrigada pela tarde agradabilíssima que tivemos. Adorei cada minuto da nossa conversa e também dos silêncios que dividimos. Você é muito especial, Lívia. Tenho inveja do privilegiado que irá desfrutar da sua companhia neste final de semana.

- O privilegiado talvez seja meu computador e os livros. Pedi a Caio que me desse um tempo. Estou meio cansada dele. É péssimo dizer isso desse jeito tão cru, mas é a verdade.

Lívia beijou Ana na face, beijou também o pequeno Flavinho, que tanto gostava, e disse:

- O privilégio foi todo meu, Dra. Ana. Nem senti o tempo passar e agora estou aqui, doida pra temos outras tardes como essa. Obrigada pelo dia maravilhoso!

Virou-se e foi embora. No carro, um sorriso bobo teimava em não deixar sua boca. “Ela também aprecia a minha companhia como eu gosto da dela! Isso é muito bom! Eu não sinto sozinha”

Em casa, Ana ocupou-se com Flávio até tarde. No jantar não conversava muito com Alberto, também não sentia vontade de compartilhar com ele os momentos agradáveis que tivera com Lívia durante a tarde.
“Engraçado como se sentia mais próxima de uma menina que conhecia há apenas três meses, que com seu marido, com o qual dividia a mesma casa e a vida por 10 anos! Era uma pena que tudo estivesse tomando esse caminho, mas sempre que tentava encontrar uma solução, Alberto a rechaçava com alguma desculpa ou muxoxo. Estava cansando!”

Ana foi dormir...seus pensamentos estavam tão acelerados que demorou a pegar no sono...pensava muito em Lívia, na sua delicadeza com ela, na preocupação que demonstrava com seu bem estar, com as coisas que a agradavam...de dois em dois dias colocava flores frescas em cima de sua mesa, sabia que Ana adorava flores...mesmo sem poder vê-las, adorava sentir o perfume, a textura, o frescor delas...Lívia tinha todo esse cuidado e prestava sempre atenção nos detalhes do que Ana apreciava ou não. Aquela tarde tinha sido especial sim! Tinha aproximado as duas de um jeito que Ana nunca fora com ninguém. Sentia vontade de contar pra ela todas as coisas que vivera, todas os seus prazeres, todas as suas dores...tinha vontade de não largar sua mão, de convidá-la a entrar em casa e passar o resto da noite com aquela conversa gostosa, tomando mais vinho, brincando com Flávio...e claro, mandar que Alberto se desintegrasse por umas 200 semanas... “Que horror pensar assim, mas que vou fazer? Gosto muito mais de estar junto de Lívia que dele. Ele não liga quando começo a contar sobre minhas coisas, minha vida no trabalho, com as outras pessoas...está sempre desinteressado! Já Lívia presta atenção em tudo que digo...está sempre ligada e interessada naquilo que irá me agradar...faz questão de me fazer sentir bem...é muito prazeroso estar ao lado dela...há muito tempo não sentia alguém tão próximo, aliás, acho que nunca tive alguém que me fosse tão próximo, que me entendesse tão bem...”. Adormeceu com os pensamentos naquela menina delicada, de toque suave e firme, cheiro bom de fruta cítrica com flores do campo, risada fácil e gostosa de se ouvir, voz de contralto e um jeito todo especial de lidar com ela. “ Eu gosto tanto da Lívia....ela é tão especial pra mim...quero ela sempre comigo...sinto demais a falta dela nos fins de semana....ainda bem que iremos correr juntas, assim, mesmo nos finais de semana poderemos estar juntas...junto...comigo...Lívia...Luz”. Sonhou! Era um sonho bom e Lívia estava nele. Mas quando acordou, já não lembrava mais como tinha sido.


Capítulo 7: A PERCEPÇÃO DOS NOVOS SENTIMENTOS



[05/08/10]

Era uma manhã linda, com céu azul, sem nuvens, ar fresco e úmido. Perfeito para uma corrida na beira do Rio! Ana estava pronta e um pouco ansiosa quando Lívia chegou, não via a hora de começar logo suas corridas, da maneira que sempre sonhou, próxima à natureza, ouvindo o barulho do Rio, sentindo o ar fresco...era disso que precisava para renovar suas energias!
Alberto desceu as escadas e estranhou Ana com calças jogging, camiseta e tênis, indo em direção à porta da saída tão cedo:

- Pra onde você está indo a essa hora da manhã? E sem o Fred? – Perguntou

- Estou indo correr na trilha do Rio, eu comentei com você ontem sobre essa minha nova atividade, mas você não deve ter prestado a mínima atenção, como sempre, né Beto? – Respondeu Ana, com impaciência.

- É, agora eu lembro, mas com quem você vai?

- Com a Lívia.

Alberto fez um muxoxo de desagrado. “Que puxa-saco essa garota! Deve tá doida pra ser logo efetivada e um dia poder tornar-se sócia de Ana. Só pode ser interesse mesmo!”

- Acho essa sua Assistente uma antipática! Não sei como você gosta tanto dela e tem saco pra ficar com ela tanto tempo! Ah, por falar em coisa chata, amanhã estarei viajando pra São Paulo, só volto na 6ª feira.

- Ok, Beto. Vou pedir a Cininha que faça sua mala. Quando Flavinho acordar, peça que ela dê o café da manhã pra ele. Volto antes do meio-dia pra almoçarmos. Tchau!

Saiu e Lívia já estava de pé junto à porta, segurou Ana pelo braço a falou entusiasmadamente:

- Preparada pra suar essa camiseta? Não vou poupá-la por ser deficiente ouviu Doutora?! Não tenho pena, pois sei que está em plena forma e tem fôlego suficiente pra no mínimo uns 8 quilômetros.

Ana pegou no braço de Lívia e riu empolgada:

- Você não tem idéia da vontade que estou de irmos logo pra essa corrida. Cheguei a sonhar esta noite!

A corrida foi mais que Ana esperava! Ela não podia ver, mas tinha de volta todo aquele ar que só podia sentir. Era o frescor da manhã que entrava pelas suas narinas e trazia de volta a cor do dia, o cheiro de verde, a umidade do Rio pelo ar, os barulhos que a natureza produzia...os passos sorrateiros dos pequenos animais, o vôo dos pássaros, o bater de asas e seus cantos, o tilintar dos galhos e folhas das inúmeras árvores ao longo do caminho...era tudo o que Ana precisava pra começar bem um dia, ainda mais ao lado de uma ótima companhia. E ela fez com que Lívia soubesse disso por todo o tempo que passaram juntas a correr...era um toque, um sorriso, um comentário de jubilo, tudo transbordava em Ana prazer por estar ali; e Lívia sentia-se imensamente gratificada por estar proporcionando esse pequeno deleite pra Ana. Lívia era muito cuidadosa com ela, prestando atenção aos obstáculos no caminho, fazendo com que Ana passasse a conhecê-los bem. Deu-lhe a exata dimensão da trilha e deixou que ela seguisse seus próprios instintos, mas sempre guiada pela mão macia de Lívia.
Durante a corrida conversaram pouco e sobre coisas amenas, estavam mais interessadas em sentirem o ambiente em volta. Lívia aprendeu com Ana a ter uma noção diferente daquela que seus olhos lhe davam, passou a prestar mais atenção naquilo que seus olhos não podiam ver, como os sons por entre as árvores, nos arbustos, da água batendo nas pedras da margem, nos cheiros que a natureza produzia. Estava tendo uma percepção diferente das coisas, daquilo que era tão comum em sua vida e que agora, parecia ter outro brilho, outro colorido. Mais ainda, percebia Ana ao seu lado, com seu jeito suave, deslumbrada pela nova experiência esportiva; que apertava sua mão sem querer quando sentia algo diferente no ar, um novo cheiro, um novo som.
Ana sentia o ambiente a sua volta como uma criança descobrindo o mundo...era tudo tão gostoso de sentir. “ Ainda mais com Lívia ao meu lado. Adoro estar tendo essa experiência segurando a mão dela, com ela ao meu lado podendo me transmitir tudo que não posso ver, mas deixando também que eu sinta por mim mesma, sem interferências! Ela é sábia, sem saber! Tem uma sensibilidade pras coisas, fora do comum!”
Quando a corrida terminou, resolveram parar e beber algo que providencialmente Lívia trouxera, como sempre fazia, sentaram numa pedra e Ana disse:

- Adorei a corrida, Lívia! Repôs minhas energias e estou me sentindo muito mais viva, mais elétrica. Obrigada por mais uma experiência agradável. Quero que essas corridas se tornem freqüentes, se isso não for te atrapalhar, é claro!

- Claro que não irá me atrapalhar. Pelo contrário, adoro ter uma companhia pras minhas corridas matinais. Ninguém que conheço tem coragem pra acordar cedo e vir encarar uns 8 a 10 quilômetros de corrida. Só não venho quando saio à noite e vou dormir muito tarde, mas se quiser, umas 4 vezes por semana pelo menos eu venho correr. - Disse Lívia animada.

- Quero vir sim, sempre que você puder e quiser ir me buscar. Podemos combinar sempre no dia anterior. – Ana estava muito empolgada.

- Fique tranqüila que não deixarei de chamá-la, é um grande prazer ter você como companhia. Posso contar um segredo? – Perguntou Lívia.

- Claro. – disse Ana com curiosidade.

- Eu nunca gostei muito de correr com alguém ao meu lado, porque as pessoas sempre acham que devem ficar batendo papo por toda a corrida, e teimam em ficar tagarelando um monte de bobagens que raramente me interessam; que acabo perdendo o fôlego antes do final e ainda por cima fico entediada. – Suspirou e suavizou o tom de voz – Mas com você é diferente. Gosta de estar quieta como eu, apreciar o ambiente, sentir o caminho...e quando falamos, é algo que nos faz bem. Por isso gosto tanto da sua companhia, e não quero deixar de tê-la nas minhas corridas. Tá combinado então?

Ana sentiu o coração um pouco apertado com as palavras de Lívia. Não entendia o porquê, mas o fato é que estava com o peito doendo um pouco...estranho...tinha gostado tanto de ouvir aquilo e ao mesmo tempo sentia uma leve dor que não tinha explicação. Falou baixinho:

- Estamos combinadas sim, sempre que você quiser.

E levantou-se pra irem embora. Lívia notou a leve tristeza que acometeu Ana de repente e perguntou:

- O que houve? Algo errado? Eu disse que não gostava de companhia de gente chata, mas de você eu gosto, ouviu direito o que eu disse? – estava preocupada em ter sido mal interpretada.

Ana segurou a mão de Lívia e a ajudou a levantar-se, virou-se em sua direção e disse:

- Não minha querida. Fique tranqüila, entendi perfeitamente seu comentário. Não estou triste, só preocupada com algumas coisas em casa. – Disse Ana tentando disfarçar e continuou:

- Às vezes penso o que pode ser pior, alguém nunca ter enxergado antes ou ter enxergado algum dia e perder a visão como em meu caso?! Eu sei exatamente a forma de tudo, as cores estão vivas em minha memória e quando sonho, eles tem forma, conteúdo e rostos dos quais me lembro perfeitamente bem. Dói não ver o rosto do meu filhinho, mas eu o tenho em minha mente nas formas que eu imagino, e o vejo da maneira que me parece ser. - deu uma pausa e suspirou profundamente: - sabe que conheci Alberto quando ainda enxergava, na adolescência; e o reencontrei anos depois, na faculdade. Eu tenho em minha memória aquele rosto de criança ainda. Claro que consigo formar uma idéia do que ele é hoje como homem, mas ainda vejo o sorriso e o olhar infantil dele e muitas vezes eles não combinam com as palavras e com o modo de agir do Homem de hoje. – Sua voz imprimia melancolia e Lívia perguntou interessada:

- Vocês estão em crise?

Ana deu um sorriso amarelo:

- Comum em todos os casais que estão juntos há tanto tempo.

Lívia comentou:

- Acho que quando há um Amor sólido, essas crises vêm e vão com a mesma facilidade e ele permanece lá, inabalável em sua estrutura. Elas não maculam sua rigidez e ele fica ainda mais forte depois.

Ana sorriu estranhando o comentário de Lívia:

- Engraçado ouvir isso de você que parece ser tão instável com seus Amores.

Lívia retrucou um tanto irritada:

- Dra. Ana, eu não sou contra o Amor, pelo contrário, acredito nele e peço a Deus que um dia me conceda a graça de senti-lo em toda sua plenitude. Não é porque nunca senti, que vou desacreditar um sentimento. Não tenho culpa de nunca ter vivido um grande Amor e não posso ser rotulada de volúvel por causa disso. Estou tentando...

Ana ficou sem graça com seu comentário leviano:

- Desculpe, Lívia. Não quis dizer que você é volúvel. Não posso realmente julgar seus sentimentos. Um dia você irá amar sim, pois me parece ter uma grande capacidade pra isso. Capacidade de Amar e despertar um grande Amor em alguém. Desculpe novamente. – disse com a cabeça baixa e um nó na garganta, o mesmo que não se desfizera quando Lívia elogiou sua companhia durante a corrida.

Lívia decidiu ficar calada, sentiu que havia algo no ar, ele se tornara mais pesado. Levou Ana para casa. Despediram-se e cada qual foi tratar de suas vidas. Ana foi dar atenção ao filho e preparar-se para o almoço. Lívia foi pra casa tomar banho e esperar Caio aparecer. O dia transcorreria bem, rotineiramente bem.

Algo tinha mudado dentro de Ana. Ela não sabia dizer o que exatamente, mas seu peito estava com uma leve opressão. “O que houve comigo? Porque aquelas palavras gentis de Lívia me tocaram desse jeito? Porque senti vontade de abraçá-la e beijá-la com força? Meu Deus, o que está acontecendo comigo? Eu não sinto desejo por mulheres, nunca senti. Que loucura é essa de querer estar ao lado dela todo o tempo.”
Ana estava angustiada e na tentativa de racionalizar seus novos sentimentos, mais se emaranhava nos “porquês” dessa sua nova percepção.
“Lívia é uma menina, devo estar confundindo a atenção que ela me dá, com sentimentos esdrúxulos. Ainda mais agora que Alberto está tão distante de mim. Claro, é isso! Estou carente de atenção, de alguém que seja companheiro, e como ela está ao meu lado todo o tempo, estou transferindo essa minha carência pra ela. Grande tolice! Tenho que aprender a lidar com isso e desfazer esses sentimentos tolos que estão me invadindo vez em quando!”

Ana não entendia como gostava mais do toque de Lívia que de qualquer outra pessoa até então. Não queria nunca largar sua mão, seu braço e sentia sempre uma vontade absurda de cheirar seu pescoço... “Ah, aquele perfume gostoso!”... “Que idiotice, Ana! Tem tanto perfume bom por aí, tanta gente cheirosa, porque essa obsessão com o cheiro de Lívia?! Já até sonhei com esse cheiro e uma dança, sim nós dançávamos uma música bem suave e eu sentia o cheiro dela o tempo todo, com minhas narinas grudadas em seu pescoço, próximo do ouvido. Imagino seu rosto e até o vejo em meus sonhos! Pare de pensar, Ana! Isso é a maior Loucura que já sentiu, não tem propósito! Esqueça esses sentimentos! Abafe-os urgente!!!”

Ana estava por demais incomodada com os novos sentimentos que lhe apavoravam. Estava explicada toda aquela opressão que sentia no peito, a melancolia...eram esses sentimentos estúpidos que vinha cultivando inconscientemente por Lívia...algo que não poderia nunca ter sido sequer imaginado, que dirá sentido!
Aqueles sentimentos traziam angústia e dor pra Ana. E o final de semana transcorreu com a habitual tranqüilidade aparente, mas só Ana sabia o turbilhão de novas emoções que a acometiam por dentro. Só Ana brigava contra si mesma desesperadamente pra entender e fugir daquilo tudo. “Não faz sentido isso. Não pode fazer. Tenho que ser racional e dominar essa estupidez! Não vou permitir que minhas carências acabem com uma bela amizade, com algo que me faz muito bem! Simplesmente, tenho que domar esses sentimentos estranhos, só isso! Não quero mais pensar, não vou mais pensar sobre isso!”
Mas o caminho para dominar seus pensamentos seria muito árduo, muito mais difícil que os obstáculos diários que enfrentava na rua, no trabalho, na vida... mas era perseverante, saberia como conduzir essas emoções loucas, saberia como segurá-las nem que fosse num lugar dentro de si, que nem ela alcançava. “ Iria dominá-las sim, a qualquer custo! Mas não se privaria da companhia de Lívia! Ah, isso não!”

Lívia passou o final de semana como sempre fazia, mergulhada em suas anotações, nos livros, e com Caio à noite, pra relaxar. Sim, parecia muito animal que assim fosse, mas Lívia queria Caio só pelo sexo...adorava transar com ele e no final do gozo, pedir que ele chegasse um pouco pra lá, sem muitos abraços e beijos, pois estava cansada ou tinha que estudar ou terminar um trabalho. Caio sentia que ela não o amava, mas gostava demais de Lívia e enquanto ela o quisesse daquele jeito, ele a teria da maneira que fosse.

Lívia passou o final de semana pensando em Ana, como sempre! Pensava que o tempo iria desconstruir a imagem que criara da Dra. Ana Mendes. Achava que todo aquele encantamento cairia por terra em alguns dias. Mas o que estava acontecendo era totalmente fora do que Lívia imaginava ou pelo menos, queria que acontecesse. Após três meses de convívio, Lívia admirava e gostava ainda mais de Ana. Muito mais do que gostaria que fosse, muito mais que sua racionalidade deveria permitir que fosse. Aquele convívio diário, aquele proximidade, só fez com que Lívia gostasse ainda mais de Ana, e o pior de tudo, gostasse de um jeito que não queria admitir nem para sua própria consciência. Tinha vontade de fugir de si mesma, de voltar a ser aquela velha Lívia “sem coração”, que não se importava muito com esse negócio de sentimento, de desejo, de Amor...ultimamente vinha pensando nisso mais que o normal e ficava muito incomodada com essas suas sentimentalidades idiotas. “ Será que virei uma dessas tolas românticas, que vivem criando fantasias melosas com Príncipes Encantados? Pior ainda, com uma Princesa Encantada! Que idiotice! Era só o que me faltava, ficar romantizando coisas com minha chefe. Tô fora! Não vou permitir isso! Adoro estar ao lado dela, mas gosto muito da minha vida do jeito que ela está também! Não quero me meter numa confusão com mulher casada e ainda por cima cega. Vão dizer que me aproveitei do fato dela ser deficiente pra seduzi-la, essas coisas...” – continuou suas conjecturas: “Além disso, ela não demonstra o menor interesse por mim, que não seja profissional e de amizade. Não posso ficar viajando numa história que é só minha! E quem disse que gosto de mulher? Já transei com algumas sim, mas sempre a três e porque Ricardo gostava, não eu! Xô com esses pensamentos pra lá! Não quero saber disso, não sou Lésbica, porque ficar criando fantasias com uma mulher então?!”
Mas se existe algo que domina o ser humano, são seus próprios pensamentos. Por mais que tentemos nos livrar deles, nos alijarmos de suas inconveniências, lá estão eles, insistentes, sempre nos cutucando com algo novo ou com os velhos detalhes. É uma tortura não ter domínio sobre sua própria mente. E eles seguem... impassíveis, soberanos... sobre nós!

Dormiu com um livro de Fernando Pessoa caindo pelas suas mãos...na cabeça martelava os versos da primeira estrofe do poema que lera antes da doce inconsciência de Morpheu:
" Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."




Capítulo 8: AS MONTANHAS


[06/08/10]



Quando Ana levantou-se na 2ª feira, Alberto já havia saído e lembrou-se, então, que ele só voltaria na 6ª feira de São Paulo. Não sabia explicar porque, mas sentia um certo alívio com a ausência do marido naquela semana. Era como se pudesse sentir o olhar dele a invadindo e isso a perturbaria ainda mais nos seus conflitos internos. Aqueles sentimentos novos e tão estranhos martelavam assiduamente em sua cabeça e não precisava naquele momento da inquisição silenciosa do olhar de Alberto sobre si, mesmo não podendo vê-lo.
Ana arrumou-se e foi esperar Lívia buscá-la, no dia seguinte teriam uma pequena viagem a fazer para uma cidade vizinha, e havia muito trabalho pela frente durante todo o dia para aprontar as petições e a documentação necessária para a Audiência.

Lívia chegou e quando Ana tocou em seu braço para caminharem em direção ao carro, notou algo diferente...Ana não se voltou em direção a Lívia como sempre fazia com aquele sorriso alegre e o toque meio que aleatório...havia uma tensão qualquer, ela estava mais séria que de costume, baixou os olhos quando Lívia se aproximou e pegou em seu braço com mãos firmes e mais intensamente que o normal. Ana estava diferente, um novo clima havia se instalado e Lívia não conseguia perceber o que exatamente. Mas sentiu seu coração bater mais fora do ritmo, ficou meio apressado, como que fugindo daquilo que ela estava sentindo com aquele toque tão firme que chegava a doer um pouco. Quando Lívia sentou Ana no banco do carona, ela segurou seu braço e disse com a voz meio entrecortada:

- Eu gosto muito de trabalhar com você, Lívia. Adorei nossa corrida e quero muito que vire uma gostosa rotina também. Que nossos problemas pessoais nunca venham a interferir ou estragar nosso companheirismo, tá bom?!

Lívia acho estranho o comentário e a insegurança que Ana parecia estar sentindo, era como se ela tivesse medo que Lívia pudesse ir embora por algum motivo, como se ela fosse correr dali...

- Eu também adoro os momentos que passamos juntas, seja no trabalho, no lazer, o que for...por que essa tensão? Não pretendo fazer como Janine. Não vou me casar tão cedo! Talvez nunca!

Bateu a porta e tomou a direção do automóvel. Ana foi calada e assim permaneceu por todo o dia. Era como se estivesse muito concentrada com seus próprios pensamentos. Lívia transmitiu a Ana os dados do processo que iriam ter Audiência no dia seguinte e as petições que seriam atravessadas nele, os cálculos feitos pelo contador, a contestação da parte contrária, todos os detalhes que seriam muito importantes para sua réplica...Ana parecia ouvir tudo, mas Lívia sentia que ela muitas vezes não estava ali. Incrível como aprendera a conhecer as reações daquela mulher, como lia em seus olhos cegos seus conflitos, como reconhecia quando ela se ausentava e ficava em seu lugar apenas um espectro dizendo: “Sei...ranran...entendi...tá ótimo!”
Ana definitivamente não estava ali e Lívia queria muito ir até ela, saber o que a estava incomodando. “ Apostava que era aquele marido idiota dela, que se achava o máximo da gostosura e não dava à mulher a atenção que ela merecia. Ah, como queria ter a sorte daquele imbecil e poder desfrutar da companhia de Ana todo o tempo! Não deixaria que aquela ruguinha entre as sobrancelhas endurecessem sua fisionomia, como agora...”

- Ana, desculpe a minha intromissão, mas notei que você esteve distante o dia todo, e isso não é comum. Parece muito preocupada com alguma coisa. Posso ajudar?

Lívia tinha baixado no colo uns papeis que estava tentando ler para Ana há quase meia hora e era a terceira vez que ela pedia pra repetir, pois não tinha entendido alguma parte.
Ana pareceu meio desconcertada com a pergunta e disfarçou...

- Não Lívia. Você não pode me ajudar. São coisas minhas, que só eu mesma posso resolver.

Ana foi curta e meio seca, não queria prolongar aquela conversa com Lívia. Não podia dizer nada, pois nem ela mesma saberia definir o que estava sentindo. O Porquê dos seus pensamentos tão conflituosos, dos sentimentos estranhos... “Chega, Ana! Concentre-se!” – Pensou. E assim passou a agir pelo resto do dia...sempre que um pensamento ou sentimento esquisito se aproximava, gritava pra si mesma que ele se afastasse. “ Concentração!!!”
A estratégia funcionou e Ana conseguiu terminar o trabalho junto com Lívia, para que tudo corresse ao seu contento no dia seguinte.
Lívia respeitou a introspecção de Ana naquele dia e não tocou mais no assunto.

No dia seguinte, foi buscar Ana em casa bem cedo, teriam que viajar por 180 km até Campos do Jordão, onde teriam a audiência, que caso fosse ganha, traria bons lucros para o Escritório. Ana havia dito que Lívia começaria a receber comissões sobre as causas ganhas em que atuasse, pois sua dedicação era total e merecia ter seu esforço bem recompensado. Estava empolgada com a nova perspectiva de ter seu trabalho reconhecido e ver o resultado financeiro disso.

Chegaram cedo a cidade, o Fórum só abriria às 10:00 h., Ana e Lívia então resolveram sentar em um dos cafés da cidade e tomar um bom café da manhã, daqueles que só se encontram na serra. A manhã estava linda, o sol já vinha alto àquela hora, mas a temperatura estava bem amena, devia estar uns 20° C e Lívia comentou:

_ Nossa, pelo clima que está agora, imagino que à noite deva fazer uns 10° C ou menos, hein?! Hummmm...um friozinho bem gostoso pra se curtir em boa companhia, em frente a uma lareira com uma bela taça de bordeaux e um queijinho brie derretido....rsrsrs.

- Pelo jeito você sabe apreciar muito bem as coisas boas da vida. Nunca duvidei disso, pelo seu modo de viver. – Ana levantou o rosto em direção ao céu como se quisesse captar para si todo o sol do dia e continuou:

- Acho que o mais difícil de se conseguir é uma boa companhia...o bordeaux e o queijo brie qualquer boa “pâtisserie” possui...a lareira, uma pousadinha aconchegante também tem...já a boa companhia...é muito difícil ter o que se quer ou contentar-se com o que se tem.

Lívia virou-se e disse gracejando:
- Por acaso a Dra. Ana cobiça algo ou alguém que não está ao seu alcance? Pensei que tivesse tudo!

Ana ficou muito desconcertada, pigarreou e levantou-se da cadeira, puxou sua bengala e disse pra Lívia:

- Conversa sem pé nem cabeça! Pague logo esta conta e vamos ao trabalho, a audiência será a primeira e não quero ficar por aqui além do necessário, temos muito a fazer no Escritório.

Lívia ficou sem graça, pagou a conta e deixou que Ana a segurasse para irem em direção ao Fórum. Lívia já havia estado em Campos do Jordão antes, mas era a primeira vez que notava como eram agradáveis os cafés em volta da praça, as casas de chocolates, os canteiros com aquelas flores multicoloridas em torno dos bancos, as árvores de “maples” da bandeira do Canadá, as pessoas elegantes que circulavam pela cidade, o teleférico, o vai e vem dos turistas...sim, era um lugar muito agradável, mais ainda quando a noite chegava. “Que pena que não estarei aqui pra curtir a noite. Adoraria tomar um vinho e comer um fondue em frente a lareira com esta Doutora mau-humor” – Pensou.

A Audiência estava marcada para as 11:00 h., mas algo parecia estar errado, já eram 14:00 h. e o Juiz não chegava. O Secretário vinha a cada meia hora justificar o atraso do Magistrado para as partes, e a espera se prolongava. Até que o advogado da parte contrária reclamou que não poderia mais esperar, pois tinha outra Audiência e já eram quase 15:00 h., nesse momento o Juiz chega e explica aos presentes o porquê da sua demora, dizendo que teve um problema doméstico sério e não pôde chegar antes; e que ante a impossibilidade da realização da Audiência naquele dia, em vista do outro advogado ter outra Audiência, adiaria aquela para o dia seguinte às 14:00 h..
Ana ficou muito irritada com todo aquele inconveniente, mas nada podia fazer, afinal o Magistrado é que deveria decidir quando a Audiência ocorreria e dependia dele para ver resolvida logo aquela lide. Conformou-se e começou a pensar logo o que deveria fazer então. Não estava disposta a viajar quase 3 horas de volta pra casa e no dia seguinte ter que refazer todo o caminho. Pensou e decidiu por ficar na cidade. Alberto estava viajando mesmo e sua única preocupação era o pequeno Flávio. Ligou pra casa, fez recomendações várias para Cininha. Ligou para a Mãe pedindo que ela dormisse na sua casa pra não deixar o pequeno só com a empregada. Gostava muito de Cininha e confiava nela, mas não queria que Flávio se sentisse sozinho quando a Mãe precisasse viajar, afinal Alberto também estava fora. Resolveu tudo por telefone e virando-se para Lívia, disse:

- Agora vamos em busca de um hotel pra ficarmos até amanhã. Isso estava totalmente fora dos meus planos, mas já que não temos outra alternativa senão esperar até amanhã, que pelo menos possamos aproveitar o que essa cidade tem de bom! Conhece Campos do Jordão?

- Sim conheço, mas já não venho a esta cidade há uns 8 anos. Meu Pai nos trouxe umas três vezes em feriados prolongados. Lembro que eu e minha irmã nos divertíamos muito nos Hotéis-Fazenda da região. Mas confesso que hoje olhei para a cidade com outros olhos...notei coisas que a infância não deixa a gente perceber...

- Como o que?

- Não sei exatamente o que é. Talvez o clima de sedução da cidade, todas essas flores, o charme das construções em estilo suíço, a magia no ar...sei lá...você conheceu a cidade quando ainda enxergava?

Ana baixou os olhos tristes

- Não. Vim a esta cidade algumas vezes, pois Alberto adora a sofisticação daqui, os restaurantes caros, os concertos elegantes do festival de Inverno, mas já estava casada. Pra ser sincera, o único clima que sinto aqui é de frivolidade, cada um querendo mostrar ser mais rico ou importante que o outro. Alberto adora essas festas, os encontros com seus amigos metidos a ricos. Eu prefiro sentar numa chocolateria e tomar um bom chocolate quente com a barra derretendo dentro da caneca...hummmm, já provou?

Lívia riu divertida:

- Não. Mas acho que teremos tempo suficiente pra tomarmos esse tal chocolate que deve ter umas 2.000 calorias deliciosamente desculpadas.

E seguiram sorrindo em direção ao carro. Passaram o resto da tarde rodando pelos hotéis mais conhecidos da cidade tentando uma suíte. Mas havia um festival de música acontecendo na cidade e, apesar de ser uma segunda-feira, os turistas lotaram os principais hotéis e pousadas da região. Ana e Lívia já estavam cansadas de tanto rodar e telefonar tentando vaga e já haviam quase desistindo e indo dormir em qualquer pousadinha disponível, quando alguém falou sobre uma pequena pousada no alto de um monte em uma cidadezinha vizinha a Campos do Jordão, chamada Santo Antonio do Pinhal. O local era muito próximo a Campos do Jordão, apenas uns 15 minutos de carro e poderiam descansar num lugar aprazível e por um preço excelente.
Ana já estava exausta e resolveu que deveriam tentar ver a tal pousada. Seguiram pela estrada principal e mais ou menos 15 minutos depois avistaram a placa de entrada da pequena cidade. Era um local bem simples, com pousadas pequenas e aconchegantes e aquela morosidade que só o interior do mundo conhece . Seguiram as instruções e pegaram uma estradinha de terra que ia montanha acima, parecendo levar até o topo do monte mais alto da cidadela. Quando chegaram ao fim da estrada, abriu-se uma clareira que tinha ao centro uma bela casa em estilo colonial Germânico. Eram tantas as flores por todos os lados, árvores de maples, pinheirinhos de Natal, pedras pintadas de branco, bancos em volta dos jardins que se espalhavam por toda a área, que pareciam ter saído de um conto de Andersen. Pelas encostas da área de uns dois hectares, havia chalés de madeira, com aqueles telhados que chegam quase ao chão. O espaço entre eles era de uns 50 metros mais ou menos, o que garantia uma privacidade fora do comum para pousadas do tipo. O local era simplesmente lindo e aquelas casinhas de madeira pareciam de brinquedo, eram como casinhas de boneca da qual ninguém quer sair. Um rapaz jovem, magro e com cara de Italiano, aproximou-se e deu as boas vindas a ambas, logo que pararam o carro. Fez questão de mostrar todo o local em volta e a vista deslumbrante que se tinha do alto daquela montanha mágica. Disse que havia somente um chalé disponível, que os outros 11 estavam ocupados com as pessoas que vieram para o Festival, mas que era um chalé muito charmoso e que ambas dariam graças a Deus pelo Juiz ter adiado a Audiência. Todos riram muito e foram ver o tal chalé. “Que lindo!” Pensou Lívia, quando entrou. Ela queria tanto poder passar para Ana toda a emoção do que ela podia ver, da beleza daquele local. Ana apertou o braço de Lívia e foi como se percebesse a intenção dela e pediu no seu ouvido:

- Diga pra mim o que você vê. Todos os detalhes, por favor!

Lívia segurou a mão de Ana e começou a relatar o que via:

“Tudo é tão lindinho, Ana. O chalé é dividido em uma pequena ante sala, onde há dois pufes de couro em volta de uma mesa baixa, como aquelas japonesas.” – Andou pelo ambiente carregando Ana pela mão – “Aqui chegamos numa cozinha estilo americana, ela tem uma abertura com um pequeno bar que dá para a grande suíte. Há a porta do banheiro, aqui no lado esquerdo, onde se tem uma banheira de hidromassagem e uma ducha que deve ser deliciosa, com toalhas bem branquinhas e felpudas esperando a gente” – Ana ria de Lívia e segurava firme sua mão – “ A suíte tem uma enorme cama de casal, onde cabe pelo menos um casal com 150 quilos cada. Do lado direito da cama há uma varandinha super charmosa, onde tem uma rede e a vista...ah, a vista é deslumbrante Ana! O Sol está se pondo, são quase 7 horas e pode-se ver todas as montanhas dessa região de Campos do Jordão e adjacências, está tudo de uma cor meio laranja e o céu ficando azul rei...respire, sinta o cheiro que essa montanha nos trás...” – Ana respirou profundamente e foi como se estivesse vendo todos os detalhes que Lívia lhe contava, via o céu avermelhado nas extremidades próximas aos montes, a cordilheira descortinando pelo vale ao fundo, imaginou as flores descendo pela encosta, com cores múltiplas e balançado com aquela brisa fria da noite que chegava.

Lívia trouxe Ana de volta para o quarto e mostrou ao lado da varanda, a lareira que contava com toras de madeira para várias noites de frio e um “mexedor” de cobre para espalhar as brasas. Fez com que ela tocasse o contorno de pedra da lareira e sentando no confortável sofá em frente a lareira, disse ao rapaz que as observava:

- Esse chalé é encantador...aliás, todo o lugar é encantador...estou me sentindo como numa história infantil e vou dormir numa casinha de bonecas...se você assim quiser Ana.

Ana virou-se em direção ao rapaz de pé ao lado da varanda e disse:

- Ficaremos por uma noite. Pela descrição que ela fez, esse local merece se aproveitado por uma noite e meio dia que seja. – e virando-se pra Lívia completou: - E não pense que estamos de férias viu mocinha? Só ficaremos por ser mais cômodo e menos cansativo...mas já que estamos aqui...faça do limão uma limonada!

- E que deliciosa limonada será essa – disse Lívia levantando-se, rodopiou e abriu os braços – melhor ainda, vou aproveitar esse limão pra fazer é uma caipirinha! Já que minha chefe concordou, ficaremos com ele. – Disse virando-se para o rapaz, que entregou as chaves a Lívia e saiu dizendo:

- Amanhã o café é das 7:00 às 10:00, se quiserem jantar, hoje teremos uma noite especial. Virá um Cantor ótimo aqui da região, que canta MPB, música internacional e um pop romântico que agrada muito aos casais. O cardápio principal é o fondue de carne, queijo e chocolate, mas também preparamos um ótimo Mignon se for o caso. Temos uma excelente adega, mas também preparamos caipirinhas se for o caso. – Disse piscando o olho para Lívia - e tenho certeza que vocês irão aproveitar muito a noite e o dia amanhã. Qualquer coisa que precisarem, é só interfonar para a sede. O jantar irá começar em uma hora, mas ficaremos até a meia-noite hoje. Sabe como é, segunda-feira...

Retirou-se e deixou as duas.

Lívia suspirou e continuou olhando o local em volta, não se cansava de admirar aquela coisinha singela que era o chalé com toda a decoração suave no seu interior e aquela vista deslumbrante do lado de fora. Levantou Ana segurando-a pela mão e continuou mostrando a ela todos os detalhes do local. Vez ou outra fazia com que ela tocasse os objetos, a cortininha romântica da pequena janela de madeira ao lado lareira. Dizia a ela a cor de todas as coisas e a forma. Queria que ela pudesse ver tudo o mais próximo possível da realidade, pra que sentisse toda a alegria que ela, Lívia, estava sentindo naquele momento, por ver tanta beleza a sua volta.

Depois da inspeção geral, Ana virou-se para Lívia e disse:

- Sabe que não temos roupa pra trocar, lembrou-se disso?

- Xiii, é mesmo! Teremos que ir com essas mesmas roupas amanhã para a audiência. Será que elas agüentarão até lá? E o cheiro? – Lívia riu de si mesma e completou – pelo menos não precisaremos dormir com elas, temos roupão de banho pra nós duas aqui, disse mostrando-os a Ana.

Ana aproximou-se de Lívia e pegou um dos roupões que estava em sua mão. Era incrível a capacidade dela de perceber os objetos, as pessoas, as distâncias:

- Me leve até o banheiro. Ligue a água quente e traga minha bolsa, pelo menos meus artigos de “toillete” eu trago sempre comigo nas viagens. Vou tomar um banho bem relaxante e vamos ao jantar, estou morrendo de fome! E louca de vontade de provar o tal bordeaux que você comentou pela manhã lembra? Será que eles tem algum por aqui?

Lívia fez o que Ana pediu e ficou indecisa se deixava ela sozinha ou não. Ana resolveu o conflito:

- Pode ir Lívia, eu tomo banho sozinha desde os 5 anos de idade, mesmo sem enxergar, conheço cada milímetro do meu corpo. – riu gostoso quando sentiu que tinha deixado Lívia muda e constrangida, pois ela gaguejou quando disse:

- Cla-claro que sim Ana. Não duvido disso. Só não sabia o que fazer direito...

Ana entrou no banheiro, fechou a porta e relaxou deliciosamente naquela banheira de água morna, que Lívia preparara pra ela...tinha espuma de banho, sais e a temperatura era a ideal. “ Que delícia de banho! Era tudo o que eu precisava! É estranho, geralmente não gosto muito desses contratempos, mas tem coisa mais gostosa que um incidente como esse? Ter que ficar na cidade pra pernoitar num lugar tão aconchegante...hummm, acho que vai ser bom...a impressão que tive foi que Lívia também gostou de ter ficado por aqui...então que aproveitemos!” – Ana fechou os olhos e voltou-se para seu banho relaxante.

No quarto, Lívia continuou apreciando o ambiente, mas os pensamentos pululavam em sua mente, andava de um lado para o outro cogitando:

“Caramba! Só tem uma cama, será que ela vai dividir comigo ou vai me mandar dormir no sofazinho da lareira? Não sei o que pode ser pior...tenho medo de ficar tão próxima dela...sentir o cheiro, a energia do corpo...ai meu Deus, que faço?!”

Ana saiu do banho 40 minutos depois, com a mesma roupa, mas com um frescor, como se tivesse acabado de levantar...estava com uma leve maquiagem e um cheiro muito agradável de flor. “ Como ela conseguia se maquiar tão bem?” – Se intrigava Lívia.

- Bem, agora é a minha vez de relaxar. Mas fique tranqüila Dra. Ana. Não vou demorar tanto viu?! Acho que 15 ou 20 minutos já vão me fazer bem – disse entrando no banheiro.

Quando Lívia estava pronta, decidiram ir até o restaurante da pousada. Chegaram na casa principal onde havia um salão com umas 15 mesas em volta. A decoração era toda em madeira e com quadros de montanhas geladas e lagos da Suíça. No fundo da sala havia uma grande lareira acesa e no lado oposto um pequeno palco onde um rapaz alto e magro ajeitava o som para o começo de show. Havia apenas 3 mesas desocupadas e Lívia calculou que não eram apenas os hóspedes que freqüentavam o restaurante. Sentaram numa delas e logo o garçom aproximou-se para pegar os pedidos. Escolheram um bom vinho bordeaux, para acompanhar o fondue de carne e o de queijo Ementhal, o de chocolate seria a sobremesa. O lugar era muitíssimo agradável e Lívia descrevia em detalhes tudo ao redor...a decoração...as mesas com os vários casais...as velas perfumadas em forma de rosa que decorava cada mesa...a penumbra do ambiente...os quadros e objetos...

Ana absorvia as palavras de Lívia com muita atenção e parecia conseguir transportar para seus olhos todos os detalhes descritos pela amiga. Tinha mais de 10 anos de relacionamento com Alberto, e durante esses anos todos, mesmo nos momentos mais românticos, ele nunca conseguira passar pra Ana as sensações que Lívia lhe trazia com suas descrições...era seu jeito de dizer as coisas...o modo como descrevia em detalhes cada objeto ou situação... as palavras que usava... o tom de sua voz... – “Ah, o tom da voz dela! Era tão bom ouvi-la dizer sobre tudo e mudar o tom de acordo com a emoção que queria passar...gostava ainda mais quando ela sibilava próximo ao seu ouvido...adorava aquele leve sussurrar...” – Ana teve seus pensamentos interrompidos pelo cantor que começou seu show.

O rapaz realmente era bom e o som estava no volume perfeito, sem incomodar as conversas baixinhas que os casais mantinham entre si. Era tudo muito romântico e parecia que somente elas estavam meio fora do ambiente, pois só haviam casais de namorados em volta. Mas ninguém notava isso...cada um se preocupava somente com quem estava na sua frente...elas eram mais um casal...de duas mulheres, mas ainda sim um casal...quem se importava?

O jantar transcorreu perfeito. Tudo estava no seu melhor! A comida deliciosa...o vinho na temperatura e de bouquet perfeitos...o aroma das velas acesas e perfumadas em volta...as canções de Amor que o músico entoava...a conversa bem humorada e agradável...todo o clima exalava sedução e leveza! Beberam uma garrafa e meia de vinho e quando só haviam duas mesas ocupadas, resolveram levantar e voltar para o chalé, deixando a incumbência de fechar o salão, para o último casal que ficou.

Ana ao levantar-se, dessa vez agarrou o braço de Lívia com força. Cambaleou e teve medo de perder o equilíbrio. Estava meio tonta pelo vinho. “Foi tudo tão inebriante, que meu equilíbrio se foi” – pensou sorrindo.

- Ôpa Dra. Ana, cuidado! Apóie-se em mim. Acho que o vinho já fez seu efeito!

Ana ria um pouco mais que o normal e disse mordendo os lábios:

- Não se preocupe, Lívia! Eu nunca perco a noção do que estou fazendo. Sempre sei até onde posso ou devo ir, mesmo que meu equilíbrio às vezes me confunda.

Entrelaçou seu braço no de Lívia e foram andando para o chalé. A noite estava bem fria àquela hora e ambas se colaram ao corpo da outra instintivamente, procurando calor. Lívia abraçou Ana e foram rindo, correndo até a porta do chalé. Entraram e Lívia foi logo acendendo a lareira para esquentar o quarto, estava tudo muito frio. Ana, que não estava acostumada ao local, tropeçou no tapete e, não fosse a agilidade de Lívia em segurá-la, teria se esborrachado no chão perto da cama.

- Cuidado, Ana! Você esqueceu que não conhece o lugar! Deveria estar com sua bengala na mão! – Lívia disse preocupada.

- Pra que a bengala se tive você ao meu lado todo o tempo me guiando? Fora este descuido, você é muito melhor que o Fred! Sabe de uma coisa? Acho que vou contratá-la à partir de hoje como minha bengala oficial. Só tem um detalhe, eu nunca dormi com minha bengala e muito menos com o Fred ao lado antes...será que você também irá guiar meus sonhos? – Ana disse isso rindo, meio que de pilequinho, tendo Lívia a segurando pelos braços e ela agarrada à sua blusa. Os Olhos de Ana brilhavam como nunca e ela não tinha a menor noção do que estava fazendo com Lívia. Era a sua visão de infância ali, a menos de meio palmo do seu rosto, sorrindo linda, radiante, com as faces levemente rosadas pelo calor do álcool. Lívia começou a tremer o corpo involuntariamente, as pernas bambearam e Ana sentiu que era como se ela também fosse perder o equilíbrio:

- Eita! Acho que você também bebeu bastante desse vinho, é melhor não deixar que você beba o restante da garrafa, vai ficar só pra mim! – Ana ria e segurava-se ainda mais a Lívia.

Lívia estava muito desconcertada com aquela proximidade e mais ainda com o que sentia...colocou Ana sentada na cama, deu a ela um dos roupões e falou:

- Acho melhor irmos dormir Dra. Ana. Nada mais de vinhos por hoje! Vista o roupão, vou estar no banheiro me preparando pra dormir. Amanhã teremos uma Audiência complicada pela frente e não quero perder minha primeira comissão. Lembra-se de sua promessa?

- Claro que sim, querida...vamos ganhar essa!

Ana começou a tirar a roupa pra vestir o roupão e Lívia entrou correndo no banheiro, envergonhada... “ Meu Deus, me ajude! Não posso dormir ao lado dessa mulher, sentindo todo esse desejo louco! O que eu faço?”

Lavou o rosto com a água gelada da montanha e pareceu ficar mais sóbria e controlada. Voltou para o quarto e Ana estava de pé na porta do banheiro para entrar.

- Agora é a minha vez. Pode deixar, já sei onde está a pia e o vaso sanitário, apenas ponha minha escova de dentes na minha mão.

Lívia assim o fez. Virou-se para ir em direção ao sofá da lareira, quando ouviu Ana dizer do banheiro:

- Nem pense em dormir nesse sofazinho ridículo, Lívia! Não tem o menor cabimento você se espremer nele, tendo uma cama desse tamanho pra nós dividirmos. Não precisa ter vergonha de mim. Estamos na mesma situação.

Lívia estancou: “Como ela se lembrou do tamanho do sofá? Ela tocou em tantas coisas! Ai, ai, ai...o que eu faço agora?” – Mexeu na lareira, ajeitou as brasas e foi para a cama. Cobriu-se com o edredon macio que estava na cama e apagou as luzes. “Ana não precisa da luz acesa!” – e ficou deitada, tensa, esperando a Dra. Ana Mendes vir para a cama.

“ A cama em que eu estou deitada! Surreal este momento!”



Capítulo 9: AFLOROU...TRANSBORDOU...PERMITIRAM-SE!


[07/08/10]
Lívia, você ainda está acordada ou desmaiou? Apagou as luzes!
Ana ria do constrangimento latente de Lívia. Entendia porque, afinal escondia o seu próprio constrangimento através da ironia. Coisas que a maturidade nos propicia.
- Como você sabe que apaguei as luzes? – Estranhou Lívia.
- Eu, assim como 99% dos cegos, conseguimos perceber a luz e a escuridão. A escuridão em que vivemos não é tão negra assim. Mas fique tranqüila, eu também só consigo dormir no escuro. – Riu muito da sua fina morbidez.
Ana aproximou-se da cama tateando pra sentir onde estava Lívia. Nesse momento tocou na perna dela e Lívia deu um pulo sentando na cama.
- Calma, querida! Só queria ver onde estava pra não deitar em cima de você! Não se preocupe que não costumo roncar nem distribuir sopapos durante o sono. Espero o mesmo de você.
Ana disfarçava sua tensão com ironias leves as quais o vinho proporcionava naturalidade. Mas no fundo também estava incomodada com a dubiedade de sentimentos que lhe vinham ao coração. Num momento estava feliz por dividir a cama com Lívia depois daquela noite tão agradável. No outro, era muito perturbador tê-la tão próxima e estar sentindo aquele turbilhão dentro de si. Sim, era exatamente isso! Um turbilhão de emoções tão díspares...era uma vontade louca de tocá-la e dormir colando seu nariz junto ao lóbulo da orelha de Lívia pra passar a noite aspirando aquele perfume delicioso que vinha dela. Ao mesmo tempo queria manter a distância necessária e segura para que não fosse mal interpretada e não afastasse sua querida amiga. “ Porque tenho esse conflito tão grande em mim? Porque sinto isso tudo? Eu nunca tive sentimentos tão fortes e dúbios dentro de mim desse jeito. Ela é uma criança! É assim que devo enxergá-la (sic)! É assim que ela deve ser pra mim! Então porque meu coração está batendo aqui na base do meu pescoço? Porque estou querendo tanto juntar meu corpo ao dela?! Deus, me ajude! Isso não pode estar acontecendo! É um delírio do vinho!”
Ana encolheu-se ao seu canto e ficou brigando consigo mesma. Lívia continuou sentada na cama, também brigando com seus pensamentos e tudo o mais que acompanhava aquele monte de sensações que a torturavam. “ É exatamente essa a palavra certa! Tortura! É o que faço comigo o tempo todo pensando, pensando...pior...sentindo, sentindo todo esse desejo louco que mexe com meu corpo, com minha mente, com minha essência! Eu não sou lésbica! Sempre gostei de homens, porque essa vontade anormal de beijar essa mulher ao meu lado, de fazer amor com ela como nunca fiz com ninguém, de amá-la...sim, amá-la toda...tê-la pra mim...pra sempre...eu quero ela pra sempre...”
Lado a lado, ambas viviam seus conflitos...era o mesmo conflito, as mesmas questões, os mesmos sentimentos se digladiando, fazendo com que razão e emoção travassem uma batalha silenciosa e dolorosamente perdida. Não havia vencedores entre mente e corpo, ambos estavam ali brigando e se dilacerando...só havia a dor...a dor do desejo não realizado...a dor de sufocar a boca que quer dizer algo...de parar no ar a mão que quer tocar...que precisa tocar...
Após alguns minutos, que pareceram horas, Lívia deitou o corpo suavemente na cama e começou sua batalha interna. Passou-se quem sabe meia hora, uma hora, sabe-se lá...quem consegue contar o tempo com tanto pra sentir?! As duas estavam deitadas, mas sabiam-se acordadas, sentiam-se como se seus pensamentos se tocassem, como se seus corações estivessem no mesmo descompasso, combinando o tormento que estavam causando.
“Preciso dormir! Tenho que estar inteira e perfeita pra saber argumentar em frente ao Juiz. Não posso perder uma causa importante como essa por conta de uma noite mal dormida. Tenho que me controlar. Que droga! Durma, Ana, durma!!!” - Ana mexia-se a cada minuto, mudando de lado e respirando profundamente, como que para pôr em ordem suas confusões mentais. Lívia também virava para lá e para cá, sem conseguir concatenar idéia alguma por mais que meio minuto. Vez ou outra, uma tocava sem querer alguma parte do corpo da outra...braço, perna, pé, mão...e a cada toque, vinha um afastamento abrupto, cheio de medo, de tensão.
De repente se voltaram para o mesmo lado e se aquietaram um pouco. Pareciam estar em choque. O hálito de uma invadiu o respirar da outra. O cheiro de uma se misturava ao da outra...o floral e o cítrico...tudo virou um só cheiro! A respiração de ambas estava pesada, com suspiros longos seguindo o arfar mais curto da ansiedade. Lívia não conseguia mais pensar em nada. O torpor leve do vinho apagava aos poucos tudo o que estava em sua mente. Só deixava ficar o sentir...quase que podia ouvir o coração de Ana, como ouvia sua respiração. – “Hummm...que hálito gostoso! Quero entrar nessa boca e não sair mais! Me devora!” – Quando conseguia pensar algo, Lívia só pensava aquilo que acabava condenando logo depois – “Sua vadia louca! Ela é casada, sua chefe e ainda por cima cega! Nunca te viu, não pode ter desejo por você! Pare de fantasiar! Você vai ser demitida!”
Ana também sentia o hálito de Lívia próximo ao seu e, assim como ela, também delirava e tentava esmagar seus delírios: “ Que hálito bom! Essa mistura do vinho com a menta do creme dental, ainda por cima tem o cheiro cítrico dela. Chega mais perto! Sinta um pouco mais perto. Ela não irá levar a mal, afinal está frio mesmo!” – Ana aproximou um pouco mais o corpo e o calor que vinha de Lívia era sentido como se formasse um campo magnético cheio de energia térmica. Ela sentia o contorno de todo o corpo de Lívia, quase podia medir cada centímetro mentalmente, só pela aura de calor que formava. – “Eu preciso tocá-la, senão não vou conseguir dormir. Tenho que me acalmar, relaxar e acordar bem amanhã. Preciso segurar sua mão pelo menos. Ela não está conseguindo dormir também. Sinto isso perfeitamente!” – Ana estendeu a mão só alguns centímetros e tocou o ante braço de Lívia tão levemente, que demorou alguns segundos até que Lívia percebesse que uma pequena parte de seu corpo tocava Ana. Ficou imóvel, com medo de quebrar o encanto daquele momento. “ Ela está me tocando! Será que é involuntário? Eu sinto que ela está acordada. Não consegue dormir, assim como eu! Quero senti-la mais...”
Sem sair do lugar, Lívia levantou lentamente o joelho e tocou na perna de Ana. Teve a impressão de sentir um leve tremor. Ana permaneceu estática! Deu um longo suspiro, pra recuperar-se. “ Não posso me deixar levar pela languidez do vinho. Tenho que ter controle sobre mim, sobre meu corpo!” – Mas Ana permitiu que seu corpo a contrariasse e se mexesse em direção a Lívia pra que suas pernas se tocassem por inteiro. Não se entrelaçaram, tinham medo, apenas se tocavam em toda a extensão. A perna direita de Ana, que deitara de bruços, com a perna direita de Lívia que se encontrava de peito pra cima. Lívia sentia uma pressão tão grande no ouvido, era a tensão do momento! Tinha medo de mexer muito o corpo e afastar Ana de si...queria ela ainda mais perto...queria abraçá-la...tocar seus cabelos... “ Não seja tola, Lívia! Ela só está com frio! Só quer aconchegar-se pra dormir melhor!” – Pensava e inclinou um pouco mais o tronco pra direita, a fim de que todo seu braço tocasse a mão de Ana e não somente alguns milímetros.
A escuridão tomava conta do ambiente e Lívia pensou: “Estou sentindo o que ela sente. É assim que ela vive. É nessa escuridão que passa cada segundo de sua vida. Mas é essa escuridão que apura tanto seus outros sentidos. Que a faz capaz de perceber que quero estar mais perto. Assim como ela quer...é isso mesmo! Sinto que ela também me quer mais próxima! Deve ser essa escuridão que me faz mais sensível. Ou então a minha insanidade!”
Ana decidiu não mais impedir seu corpo de ir...aproximou-se mais um pouco e pôs a outra mão no braço de Lívia, segurando-o firme. Seus dedos se amoldaram no formato do braço de Lívia e o seguraram como se dele fizessem parte. “ Preciso estar mais perto. Quero estar mais perto. Chega! Quero sentir esse cheiro nas minhas entranhas! Quero esse calor me queimando a pele. Quero sugar o suor que ele produzir! Eu definitivamente perdi a razão! Estou louca! Completamente louca! E é tesão o que estou sentindo! Sim, é muito desejo, muito tesão!” – Ana baixou a guarda, deixou cair por terra todo o resto de sanidade que ainda pensava possuir.
Lívia não pensava mais...era só sentido...só desejo...virou o corpo e entrelaçou as pernas na de Ana. Parecia estar num estado de torpor que não a deixava mais raciocinar. Era puro instinto, pura febre! Ana segurou o rosto de Lívia. Passou os dedos em cada milímetro de pele, fez o contorno do rosto, olhos, nariz, boca e estancou aí! Naquela boca que já havia imaginado articulando as palavras, comendo, fazendo caretas, sorrindo, beijando....passou os polegares várias vezes e sentiu a língua de Lívia molhando os lábios e entreabrindo-os. Lívia segurou a mão de Ana e lambeu a digital de cada dedo. - “Era com eles que ela podia enxergar e seria com eles que Ana sentiria todo o seu desejo.” – Ana sentia toda a pele do corpo arrepiar. Era como se estivesse sendo tocada pela primeira vez. Queria sentir aquela língua dentro da sua boca, precisava dela, queria sugá-la...agarrou Lívia pelos cabelos e trouxe sua boca pra junto da dela.
Mas o beijo não foi sôfrego como se esperava...foi lento, leve, torturante...as línguas se tocavam como numa música de Mahler...linda, etérea, mas doída! Sim, doía na alma, no ventre pelo desejo reprimido, doía pela conseqüência...então, voltava a ser linda, etérea e esqueciam a dor.
As bocas não queriam se largar, não podiam...precisavam uma da outra, se agarravam com medo e se buscavam em toda sua extensão...sentiam-se por dentro...os lábios, o céu da boca, os dentes, a saliva...se queriam com tanta voracidade que nem perceberam que o resto do corpo também vinha buscar saciar seu desejo...as bocas se sugavam, queriam alcançar algo além do físico, queriam a alma uma da outra.
Os corpos se colaram e as mãos começaram a desenhar o caminho do prazer. Queriam conhecer o que cada uma mais gostava, mas não era racional. Tudo era puro instinto. Trilhavam na escuridão, guiadas apenas pelo desejo. Estavam em igualdade de condições. O breu era absoluto e Lívia queria sentir o que Ana sentia.
Nada era dito. O silêncio só era quebrado pelos suspiros e gemidos que as duas deixavam escapar quando alguma nova parte do corpo era deliciosamente tocada. O beijo era longo e profundo e demoraram muito até deixar que as bocas conhecessem novos prazeres. Lívia desceu a boca pelo pescoço de Ana e começou sua viagem por aquelas curvas que admirava há tanto tempo! Chegou nos seios e os beijou, sugou com leveza e deu leves mordidinhas nos mamilos, que estavam duros de desejo. Ana suspirava e agarrava os cabelos de Lívia querendo aproximar ainda mais aquela boca do seu corpo. Lívia fazia um passeio sem pressa, torturava a amada com as mãos, a boca, a língua...Ana era invadida de uma maneira que a fazia querer cada vez mais aquela mulher...queria sentir todo o corpo molhado pela saliva de Lívia....queria ainda mais as mãos a acarinhando firme e leve em alguns pontos...a língua ousada lambendo pedaços de seu corpo que ela mesma raramente tocava...as axilas, a parte interna das coxas, atrás do joelho...
Ana sentia a boca de Lívia em todo o seu corpo e seu ventre doía de desejo...o tesão escorria e molhava o lençol...Ana gemia e nada dizia...não precisava...Lívia sabia o que fazer...
Ana abriu-se sem pudor! Entregou seu corpo àquela mulher como nunca fizera antes com ninguém! Abria seu sexo com as mãos para que Lívia a invadisse, entrasse nela e arrancasse aquela dor de desejo do seu ventre e só deixasse o gozo. Era tão bom sentir aquela mulher se entranhando nela com a língua, com os dedos...ela sugava aquele pedacinho de carne que trazia em si todos os prazeres de ser fêmea...Ana rebolava o sexo na boca de Lívia e gemia gostoso, mostrando o quanto aquele momento era único, o tanto de tesão que sentia por aquela Mulher, que agora invadia sua intimidade como há muito já invadira seus pensamentos. Agarrou com força Lívia pelos cabelos e gozou em sua boca, soltando um grito de prazer, como nunca fizera antes.
O coração parecia querer saltar pela boca...o corpo tremia todo e não conseguia sentir direito seus pés e mãos...a descarga de gozar tão gostoso havia sido muito forte e Ana ficou mole, com alguns músculos tremendo involuntariamente. Mas aquele delicioso embate físico estava apenas começando....
Lívia subiu no corpo de Ana, deu-lhe um longo beijo molhado pelo gozo e abriu bem suas pernas, ajeitando-se entre elas com as suas próprias pernas também bem abertas. Formavam um desenho diferente, como dois bodoques encaixados pelas hastes. Seus sexos se encontraram com perfeição, o toque era no ponto exato e Lívia começou uma dança sensual e gostosa em cima de Ana. Ana segurou-a pelos quadris começaram a esfregar seus sexos com muito tesão...o barulho que faziam inspiravam ainda mais o desejo e o cheiro de sexo invadiu o ambiente. Ana inclinou o corpo um pouco pra frente e abocanhou o mamilo de Lívia...sugou, lambeu e beijou aquele seio, que descobria ser tão lindo, redondo, do tamanho certo.
Ana agarrou a bunda de Lívia e começou a sentir que ela aumentava o ritmo dos quadris...estavam tão molhadas que o som da trepada parecida ecoar por toda a montanha...Lívia rebolou em cima de Ana com muita vontade, e Ana sentiu que um novo gozo chegaria pra ela também. Ter Lívia montando nela como uma amazona e fazendo aquela dança do prazer era simplesmente maravilhoso e os gemidos que saíam de sua boca, entravam em sua mente provocando mais vontade, mais querer...
Lívia estava em êxtase absoluto! Amar fisicamente aquela mulher, que desejara por tanto tempo, mesmo somente no inconsciente, era a sublimação de um sentimento maior que o físico...instintivamente subiu nela, encaixou-se por entre suas pernas e fez dela o gatilho do maior prazer que já sentira até então. Era como se nada nem ninguém tivesse existido em sua vida antes daquele momento. Estava nascendo! Era o dia do seu nascimento pelo corpo de Ana. O prazer que estava sentindo com ela era inigualável a tudo que vivera antes...não, não era a parte física somente, já havia tido muitos gozos antes!
Era o todo! Como se toda a sua sensibilidade houvesse estado adormecida até então, e nascera pelo entregar-se de Ana. O modo como ela viveu aquele momento, como ela se permitiu e se entregou àquela insana batalha de prazer...o jeito de gemer, de sibilar seu tesão por entre os dentes...ela era tudo o que sempre quisera!-“A minha Florzinha!”
Tinha noção naquele instante que Ana era o que só lera nos livros, que só conhecia dos poemas que tanto amava, e que se materializava de súbito na sua frente. Amor! Via tão claramente que o medo, por uma fração de segundos, quase que encobriu o desejo que sentia; mas esqueceu-se dele quando Ana novamente colou-se a sua boca e abafou com um beijo profundo o medo que espreitava o peito de Lívia.
Mas ela não estava só no seu medo! Ana não se permitia pensar mais que sentir. A escuridão em que vivia, fez com que Ana incrementasse seus outros sentidos ao ponto de ter o tato, o olfato, o paladar e a audição mais apurados que o normal. E entregando-se a Lívia daquele jeito tão sem reservas, pôde perceber que todos esses sentidos estavam no seu auge de sensibilidade. Ouvia os sussurros de Lívia em todos os seus micro decibéis; sentia cada poro de sua pela delicada e o contorno bem talhado do seu corpo rijo; estava em sua boca o gosto de cada parte daquelas entranhas, de cada gota daquele suor deliciosamente perfumado; trazendo por fim, o cheiro de Lívia, seu toque cítrico entre os seios e o pescoço, o odor gostoso que vinha do sexo bem cuidado. Ela fazia seus quatro sentidos restantes gritarem em alerta todo o tempo. Mas o sexto sentido tinha medo...um medo que calou com seu desejo, que sufocou com seu prazer! “Não quero pensar agora...quero só sentir...estou tão viva...tão feliz!”
E mais uma vez se amaram, se entregaram àquela Paixão sem reservas, sem pudores...completamente perdidas naqueles novos sentimentos que se permitiram viver...que se permitiram realizar, tornar físicos, palpáveis, latejantes...gozaram!
Depois, enroscaram seus corpos de um jeito, que pareciam um só. Novamente veio o medo pra cada uma delas, e simultaneamente, ambas se entrelaçaram ainda mais uma à outra. Decidiram não pensar...o momento era único, mágico...tinham que aproveitar o encantamento da escuridão. Eram iguais naquele instante. Possuíam apenas quatro sentidos funcionando a plena capacidade. O silêncio era Rei! As palavras seriam um excesso! Não se faziam necessárias diante da enormidade do que estavam sentindo. E nada foi dito! Então, adormeceram...
Adormeceram! E as palavras do que sentiam naquele instante, veio em forma de poema que num dia qualquer, Lívia lera num livro qualquer...

PEDAÇO DE MIM

Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.

Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

Affonso Romano de Sant'anna


Capítulo 10: DEPOIS...


[08/08/10]
Um facho de Luz invadiu o pequeno chalé. A lareira há muito já não tinha mais brasas. Pela fresta das cortinas que cobriam a porta da varanda, se podia ver que seria um belo dia frio de sol.
Estavam acordadas, mas não moviam um músculo sequer. Ana dormira entre os braços de Lívia e a impressão que tinha era que aquele lugar tinha sido sempre seu. – “Foi o sono mais gostoso que já tive. Dormi direto, sem pensar em nada, só sentindo esse torpor no corpo e na mente. Acho que estava anestesiada de prazer. E agora? Como encará-la? O que digo?” – Ana pela primeira vez na vida, achava bom não enxergar. Parecia mais fácil não ter que olhá-la diretamente nos olhos. –“Será que é mais fácil? Como saber?”. Quem olhasse para Lívia de olhos fechados, parecendo dormir tão candidamente, não imaginaria a torrente de pensamentos que a consumia. – “Não quero sair daqui! Queria ficar assim com ela em meus braços todo o tempo que me fosse possível! Pior é não ter o que dizer e ao mesmo tempo queria saber tantas coisas, que ela me dissesse tudo que lhe vai à mente. Que faço agora?”
Talvez tenham ficado desse jeito por um bom tempo...estáticas, mas ligadíssimas no todo em volta. Podiam sentir cada milímetro do corpo da outra, até os pequenos tremores involuntários eram captados, mas quem ousaria quebrar aquele momento primeiro? E coube a Ana mexer-se primeiro, a fim de tirá-las daquela deliciosa agonia.
Ana virou-se de barriga pra cima e continuou de olhos fechados. Lívia olhava pra ela e tentava adivinhar o que ela estaria pensando. “O que dizer numa situação dessa? Nunca fiquei constrangida depois de uma transa. Mas também não foi uma transa qualquer. Foi o melhor Amor que já fiz com alguém. O verdadeiro Amor realizado fisicamente. O que dizer depois disso?”
Ana por sua vez pensava: “Nada. Não há nada a dizer. Foi tudo tão mágico, tão único, que as palavras soariam vazias diante do que aconteceu aqui nesta cama. Não quero ter que falar, mas tenho que levantar e voltar pro mundo real. Isso aqui foi tudo um sonho. Tenho que agir com naturalidade. Contenha-se Ana!” – Respirou fundo e antes que desse tempo de Lívia tocá-la, ela deixou a cama.
Lívia ficou com a mão parada no ar. Exatamente na hora em que iria tocar Ana para dar-lhe um beijo de “bom dia”. Ana levantou-se e foi tateando em direção ao banheiro e lá demorou o que para Lívia pareceu uma eternidade. Quando saiu do banheiro disse com ar de naturalidade:
- Bom dia! Espero que já esteja acordada e com fome para tomarmos o café da manhã desse Paraíso que dizem ser delicioso! Que horas são?
Lívia demorou um pouco até entender que Ana tentava demonstrar naturalidade e parecia querer fingir que nada de importante, de fundamental, tinha acontecido naquele quarto. Não sabia o que fazer: entrava no jogo de Ana ou acabava com aquele fingimento e a agarrava e faziam amor novamente. Isso sim era o que Lívia queria e achava que iriam fazer quando acordassem. Ficou decepcionada, mas também não sabia como agir com Ana à partir de agora. Além do mais, Ana era sua Empregadora, sua Chefe. _ “E se ela resolvesse demiti-la pela audácia de importuná-la?! Caramba, mas ela fez Amor comigo nesta cama e aposto que não se entrega assim a qualquer pessoa! Foi comigo! Eu não posso ter sentido tudo aquilo sozinha! Ou posso?!”
Lívia estava muito confusa e decidiu por ora não confrontar Ana. Não estava preparada pra isso e talvez as coisas acontecessem naturalmente mais tarde, ou quem sabe Ana tomaria a iniciativa de tocarem no assunto.
- São dez pras dez. Me apronto num minuto.
Disse Lívia com uma voz quase sumindo.
Ana não perdeu esse detalhe. Não perdia nada, estava muito atenta a tudo a sua volta. Principalmente à voz de Lívia. Sentiu que ela ficara triste com sua indiferença, na verdade com seu fingimento de que nada acontecera.
-“Mas o que fazer? Pela primeira vez em muitos anos, não sei o que fazer. Estou totalmente confusa! Como fui permitir que isso acontecesse?! Me deixei levar pelo desejo, pela sensualidade dela...fiquei totalmente envolvida, seduzida...ela é linda! Não a vejo, mas sinto o quanto ela é linda em tudo...como pessoa, como mulher, cheirosa, sexy... e me realizou de um jeito que homem algum fez...nunca senti nada além de amizade por mulheres. O que houve comigo? De onde veio tanto desejo? Que loucura!”
Lívia saiu do banheiro já vestida e caminharam-se para o salão de refeições. Lívia não conseguia articular uma palavra. Tinha medo de dizer bobagem, de parecer piegas ou ridícula. Não tinha cara de iniciar a conversa e começar a falar sobre o que aconteceu. -“Não, não serei eu a iniciar esta conversa!” Começaram a comer em silêncio, até que ele tornou-se pesado demais e Ana quebrou o gelo.
- Ainda bem que a Audiência será só as 14:00 h. . Gostaria que você relesse pra mim algumas partes do processo e podemos discutir sobre a melhor estratégia. Quero ganhar esta causa de qualquer jeito. Além disso, será sua primeira comissão, lembra?! Quero que você esteja bem preparada e disposta, pra que nossos argumentos sejam imbatíveis.
- Eu gostaria de dar uma volta pela cidade. Preciso arejar minha mente um pouco. Não sei se estou preparada pra assumir uma responsabilidade como esta. Gostaria de não fazer explanações orais por enquanto. Não sinto segurança pra isso ainda. Você irá falar não é?!
Lívia estava apreensiva, e aquela tristeza que Ana percebera antes na voz dela, lá estava novamente, sem disfarce.
- Se você ainda não está totalmente segura, fique tranqüila que falarei na Audiência. Não quero pressioná-la de jeito nenhum. Sua comissão será a mesma. Você não será jogada às feras enquanto não se sentir completamente pronta, ok?!
Aquilo soava meio que irônico para Lívia...ela já havia sido jogada “à fera”...e fora deliciosamente devorada por ela! Só não entendia porque ela fingia que nada havia acontecido. Aquilo a incomodava muito e a deixava muito triste e ansiosa. –“Queria tanto que Ana tocasse no assunto. Que lhe dissesse o que seria à partir de agora...”
- Só preciso que você me repasse alguns detalhes que não podem ser esquecidos neste processo. Logo que acabarmos, iremos pra cidade um pouco mais cedo e você poderá dar uma volta enquanto fico em algum dos Cafés te esperando. Não quero atrapalhar seu Passeio.
- Você não me atrapalha em nada, Ana. Sabe disso. Sabe o prazer que tenho em ser seus olhos.
Ana sentiu o coração disparar. – “Porque ela tinha que me dizer isso com esse tom de voz! Droga! Como vou manter o controle desse jeito?!”
- Bem, mocinha. Já acabou? Temos muito a fazer até irmos pra cidade. Vamos trabalhar?
Lívia levantou-se e Ana segurou em seu braço, com sempre fazia. Só que dessa vez o toque parecia diferente. Era energia pura! Como se todos os conflitos e sentimentos que Ana sentia estivessem em confronto com os de Lívia. O toque de uma na outra, transmitia não só desejo, mas também tensão, medo, ansiedade. Era uma mistura que parecia querer explodir a qualquer momento.
Seguiram para o quarto e começaram a trabalhar. Uma hora passou tão rápido que quando deram conta, já deviam ir para a cidade. Como não tinham roupa pra trocar, já estavam praticamente prontas e foram pra Campos do Jordão. Chegaram na cidade quase meio dia e Ana decidiu ficar em um Café enquanto Lívia desbravava o pequeno centro da cidade. Andou de teleférico, comprou chocolates e visitou várias lojas de roupas, onde comprou dois pulôveres, um pra ela, outro pra Ana. Mas não o deu. –“ Só vou dá-lo quando voltarmos ao chalé. Quero ver se ela toca no assunto, quando eu quebrar seu gelo com esse presente.”
- Fiz umas comprinhas pela cidade. Chocolates e uma blusa de frio. Vou vesti-la assim que voltarmos pra pousada. Quero voltar pra casa de roupa nova!
Lívia parecia mais animada. E Ana notou a diferença.
- Estou vendo que o passeio te fez muito bem. Já está mais disposta. Tomara que essa energia se canalize pra nossa Audiência. Temos só quinze minutos. Vamos?
Foram para o Fórum e o Pregão foi feito na hora prevista. O Juiz não queria falhar com as partes outra vez. Lívia havia feito várias anotações pra dizer no ouvido de Ana e lembrá-la de detalhes importantes do caso. Como sempre acontecia, na hora da explanação oral, Ana Mendes deu seu show à parte e conquistou Juiz e Patrono da parte contrária para um bom acordo, que foi selado e decidido. Bom para os dois lados. Todos ficavam cativados com o jeito firme e ao mesmo tempo suave de Ana. Ela não perdia a delicadeza e isso não abalava sua perseverança em conseguir o que queria, pelo contrário, só trazia mais magnetismo pra sua figura.
Lívia olhava fascinada pra aquela mulher e ao mesmo tempo relembrava a noite inesquecível que tivera com ela. - “Parecia tão distante agora, que tudo havia sido um sonho, dos mais incríveis, diga-se de passagem, mas um sonho louco. Só que aconteceu! Ela esteve comigo a noite toda, foi minha, gozou comigo, e isso foi realidade!” – Lívia estava decidida a levar Ana a começar aquela conversa. Tinham que falar sobre o que aconteceu, sobre o que viria agora...será que queriam saber o que viria agora?
Ana estava feliz! O acordo era bom pra ambos os lados e nada melhor que um bom acordo. Seu cliente ficaria muito satisfeito e o Escritório teria um bom dinheiro injetado. Estava mesmo precisando fazer um “Caixa” pra qualquer eventualidade. Além do mais, queria reformar o ambiente e torná-lo mais “clean”. Como não enxergava, não tinha noção de como os móveis escuros deixavam o Escritório “pesadão”, como Lívia e Márcia costumavam dizer. Decidira que tornaria o lugar bem arejado e claro, com a ajuda de Lívia, que parecia ter um ótimo gosto.
- Estou morrendo de fome! E você? – Ana perguntou a Lívia, mas antes que esta respondesse, foram interrompidas:
- Eu também estou faminto! Será que as jovens se incomodariam de ter minha companhia para o almoço?
Ana reconheceu a voz do advogado da parte contrária a sua. Parece que ele também havia feito um acordo razoável para o seu cliente e estava satisfeito com o curso da ação. – “ Qual é mesmo o nome dele?”
- Oi, Dr. Luiz Carlos. Conhece algum bom restaurante por aqui que sirva uma refeição bem generosa? Estamos morrendo de fome!
Lívia salvou Ana de cometer uma gafe e ter que perguntar qual o nome do tal advogado. “Pela voz, parecia estar na casa dos 40 anos.”
- Aqui o que não faltam são bons restaurantes. Nesta terra tudo é belo e delicioso. Vamos que tenho um lugar ótimo, que irão adorar!
Disse isso pegando Ana pelo braço. Ana detestava esse tipo de gesto. Entendia o fato das pessoas que não estavam acostumadas com ela agirem assim, mas não evitava ficar irritada com isso. Simplesmente tirava seu rumo. Não sabia onde pisar, pra onde ir, ficava sem direção.
Lívia tomou a frente e fez Ana segurar seu braço. Ela sabia que Ana estava incomodada com o jeito do advogado.
O restaurante era realmente belo, no estilo suíço, com mesas e cadeiras confortáveis e um ambiente bem acolhedor. Lívia sentou Ana e acomodou-se ao seu lado. O advogado ficou de frente pras duas. O Homem tagarelava sem parar, parecia uma buzina disparada e Lívia percebeu que Ana não estava satisfeita com o acompanhante extra. Ela ficava a maior parte do tempo quieta, dando risinhos amarelos de vez em quando. Não queria ser antipática. Lívia por sua vez até achava o Homem engraçado de vez em quando. Ele atropelava tudo e devia estar muito agradecido a Ana por não tê-lo esmagado na Audiência, pois com sua retórica enlouquecida, teria posto tudo a perder, não fosse a sensatez de Ana.
Ele devia ter uns 38/40 anos, era alto, moreno, com cabelos já ficando ralos e dentes muito bem cuidados. Não era feio, mas tinha cara de advogado meio “Nerd”.
A sorte de todos é que a comida do local era maravilhosa. E isso deixou Ana bem mais solta. Todos conversaram bastante, riram, tomaram vinho e pediram sobremesas. Foi quando Ana percebeu que o Advogado estava muito voltado pra Lívia. Ele perguntava muito sobre a vida dela e estava bastante interessado no que ela dizia. Ria mais alto dos comentários que ela fazia e usava um tom de voz mais grave cada vez que se dirigia a ela.
Ana emudeceu. Notou que Lívia dava atenção aquele Homem estranho e isso a irritava demais. – “Ela está dando corda pra ele. Qual é a dela? Será que tá gostando desse panaca? Será que ele é bonito? Não consigo sentir na voz dela se ela está interessada ou não!” – Ana estava muito incomodada com aquela situação. Não era ciumenta. Nunca fora. Alberto sempre teve liberdade de fazer o que quisesse. Mas aquele sujeito assediando Lívia na sua frente, era muito irritante. E mais chato ainda era ouvir Lívia dando papo pra aquele sujeito. Ana decidiu acabar com o tal almoço e de quebra com aquele flertezinho idiota que protagonizavam na sua frente. – “Vou acabar logo com essa palhaçada. Ela que pegue o telefone dele e ligue depois se quiser. Esse babaca!” – nisso, ouviu:
- Adoraria ter o seu cartão, Lívia. Não quero perder o contato com um escritório tão bom como o de vocês. – E virando-se para Ana.
- Foi uma honra ser seu ex-adversus, Dra. Ana Mendes. A Sra. é uma lição de Direito e postura dentro de uma Audiência. Advogo há treze anos, mas hoje aprendi um pouco mais sobre como exercer bem minha profissão. E acho que nós dois conseguimos bons resultados para os nossos clientes. Mas o que mais invejo da Senhora é ter Lívia como Assistente! Sonho com uma Assistente tão competente assim ao meu lado, e pra melhorar, ainda por cima é linda! Que sortuda Dra. Ana! Onde estava escondido este tesouro?
Ana estava enjoada com toda aquela “babação” em cima dela e principalmente de Lívia. Não respondeu, apenas pensou: – “ Que cara mais chato! Um “Mala” mesmo. Se Lívia estiver interessada, ela que dê o cartão pra ele. Quero ir embora logo desse lugar!”
Lívia percebeu no ato que Ana estava irritada e queria ir embora. Fez sinal para o Garçon e pediu a conta, dizendo para o Dr. Luiz Carlos:
- Obrigada Doutor, agradeço por mim e pelo escritório. Mas a Dra. Ana deve estar muito cansada, pois não dormimos muito bem esta noite. Vamos voltar à pousada pra descansar um pouco antes de pegarmos a estrada de volta, será um longo caminho. Quer mais alguma coisa Dra. Ana?
A voz de Lívia estava suave e gentil. Ana achou que soava um pouco irônica, doce demais para o momento.
- Sim, estou cansada e quero voltar logo pra casa. Obrigada pelo almoço Doutor e tomara que não tenhamos que nos confrontar novamente. Boa sorte!
Ana estava seca e demonstrava tédio. Mas o advogado nem percebeu, estava tão encantado com Lívia que não percebeu o mau humor de Ana.
- Aqui está o meu cartão, Lívia. Espero que me ligue, não apenas para assuntos profissionais.
- Obrigada, Dr. Luiz Carlos, mas temos que ir mesmo. Também estou cansada. Até a próxima.
Lívia esticou a mão e ele a beijou como um cavalheiro. Fez o mesmo com a mão de Ana, que quase a enxugou na blusa. Lívia teve vontade de rir da cena.
Saíram do restaurante e foram para o carro, a fim de voltarem para a pousada. Ana estava muda e Lívia sabia que ela estava aborrecida com algo. “Será que é porque ele flertou comigo? Claro que ela notou o interesse dele por mim. Mas será que ela está com ciúmes? Ah, eu queria que fosse verdade, que ela estivesse com ciúmes. Vou provocá-la um pouco pra ver...”
- Interessante esse Dr. Luiz Carlos, não acha? Engraçado, divertido, foi uma boa companhia pro almoço.
Ana não respondeu de pronto, depois de alguns segundos disse:
- “ O que é de gosto, arregala os olhos”. Se você gostou, faça bom proveito. Eu achei ele um chato. Que cara mais “mala”, não parava de falar um minuto sequer. Não sei como conseguiu travar um diálogo com ele. Comigo foi só monólogo!
- Hahahahaha! Isso é verdade, ele falava sem parar. Mas era divertido. Além disso, não é um cara feio, é até charmoso! Meio coroa pra mim, mas tem um “Q” de interessante!
- Você costuma flertar com outros homens quando está longe do seu namorado, ou vocês têm uma relação aberta e faz na frente dele mesmo?
Ana não conseguia mais esconder sua irritação e sua voz ficou alterada pelo ciúme. Lívia por sua vez, estava calma e no íntimo feliz com o descontrole de Ana. – “Consegui tocá-la! Quebrar o muro que ela levantou! Tenho que aproveitar isso!”
- Não Dra. Ana! Eu não sou leviana como a Senhora está pensando! Não estou mais namorando Caio. Apenas saímos de vez em quando, mas ele sabe que ficaremos só nisso.
- Só nisso o quê? Sexo? Nossa, então o negócio é pior do que eu imaginava. Você terminou o namoro pra ficar mais à vontade e trepar por aí com quem quiser. Enquanto isso o pobre do Caio fica atrás de você e é usado vez ou outra quando você não encontra sexo melhor! Muito nobre da sua parte, mocinha! Nobilíssimo!!!
Ana estava realmente alterada. Tinha vontade de gritar, de apertar os braços de Lívia com força e fazê-la ver o quanto era volúvel, fácil.
- Eu não vou discutir com você o meu comportamento com meu ex-namorado ou outra pessoa qualquer. Não é porque me conhece bem, que pode se achar no direito de julgar o meu caráter e me ofender. Sou jovem, estou conhecendo o mundo, a vida, posso flertar com quem quiser; não posso ser taxada de leviana por ter uma conversa com alguém. Aliás, nem flertei com ele. Ele não é meu tipo. Apenas rimos um pouco juntos, coisa que a Doutora deveria ter feito conosco, ao invés de remoer ciúmes tolos.
- Ciúmes?! Você deve estar avariando! Porque raios eu deveria ter ciúmes de uma situação como aquela? E ciúmes de quem?
Nesse instante, Lívia estacionou o carro em frente ao chalé e desceu dirigindo-se para o lado de Ana. Abriu a porta e segurou-a pelos dois braços, quase colando seu corpo ao dela e dizendo bem junto àquela boca que passara todo o dia cobiçando:
- De mim, Dra. Ana! Ciúmes de mim! Está com medo de perder sua Assistente pra outro advogado. Não tenha receio disso. Só a deixarei quando a Senhora não me quiser mais por perto. Até lá, serei seu carma eterno.
Ana baixou o rosto. Aquele hálito tão perto da sua boca a deixava tonta de desejo. Lembrava bem o gosto daquela boca. Vacilante, pediu que Lívia a levasse para o quarto, pois queria descansar um pouco antes de pegarem a estrada de volta.
Lívia estava satisfeita com o efeito que provocara. Percebeu a confusão que causou e aquele descontrole significava que pelo menos dois sentimentos Ana tinha por ela: o de posse e o tesão, e isso já era alguma coisa. – “ Melhor isso que nada. Ela pelo menos não é indiferente a mim. Eu não senti sozinha tudo aquilo ontem. Foi forte pra ela também. Ela estava fingindo que não foi importante. Ela também sente...eu adoro essa mulher! Tô louca por ela!”
Entraram no chalé e Ana quis tomar um banho pra relaxar. Lívia ia preparar a banheira, quando Ana disse que preferia uma chuveirada rápida.
Quando voltou ao quarto, tocava no rádio uma música bem suave. O cheiro de Lívia estava no ar e ela sabia exatamente onde Lívia estava somente pelo seu odor cítrico. Lívia passou por Ana, também queria lavar-se, e sussurrou ao seu ouvido:
- Volto já!
Quando Lívia voltou para o quarto, Ana estava na varanda, deitada na rede, de olhos fechados e parecia estar em total comunhão com aquela vista maravilhosa das montanhas e o Pôr-do-sol ao fundo. O coração de Lívia disparou com aquela visão. A respiração ficou suspensa por alguns segundos e tudo parecia bem pequeno ante aquele belo quadro. Ana percebeu a aproximação da outra e abriu os olhos ajeitando-se na rede. Lívia deitou-se no lado oposto da rede e disse:
- Se pudesse ver o que estou vendo, com certeza acharia todo o resto menor. O sol está se pondo por trás das montanhas, o verde das encostas é escuro, denso, parece trazer a noite. Você sente o cheiro dele? O cheiro do verde? Sabe que a cada hora do dia ele tem um cheiro diferente? O verde e seus múltiplos cheiros.
Ana estava muda. Não dizia nada e apenas tentava sentir o ambiente, seus sons, seus cheiros, sua tensão. Depois de um longo silêncio, disse:
- É o seu cheiro. Você cheira como o verde. Cada hora do dia tem uma intensidade diferente, mas é sempre cítrico, verde.
Nessa hora, Lívia mudou de lado e deitou-se junto de Ana. Esta deu um pulo da rede e já ia saindo, quando Lívia a segurou e fê-la cair junto a si. Ana tremia involuntariamente e Lívia tinha o coração a bater quase que na boca.
- Não vá, Ana. Não me deixe nessa agonia! Não podemos ir agora! Quero ouvir de você...diga pra mim...diga...
Ana estava muito nervosa, não conseguia nem pensar direito, que diria articular palavras coerentemente:
- Di-dizer o que? Do que você está falando?
- De nós Ana...do que aconteceu aqui neste quarto ontem a noite...do que vai ser agora...eu jurei pra mim mesma o dia inteiro hoje, que não iria começar esta conversa, mas você só faz fugir! Diz pra mim, diz...e agora?
A voz de Lívia era agoniada, sentida. Ana não conseguia falar. Estava tudo preso na sua garganta...o choro, o grito, o ciúme, o desejo...nada lhe vinha à mente, parecia estar entorpecida pelo toque de Lívia, pela sua proximidade, pela sua força...queria apenas beijá-la...tê-la como ontem...saciar sua vontade mais uma vez...depois...sei lá...não queria pensar no depois!
Puxou Lívia pelos cabelos e a beijou com força! Era aquele desejo represado o dia inteiro saindo de sua boca. A língua era atrevida, audaz, queria entrar e pegar pra si todo o gosto de Lívia, queria captar-lhe todo o sentimento. Mordeu os lábios de Lívia quando um lampejo de lembrança a levou até o restaurante e àquele almoço fatídico. Sentiu raiva e mordeu-lhe o rosto, o pescoço, o queixo. Agarrava os cabelos de Lívia e quase a machucava, queria puni-la por ter se sentido tão tola, tão ridícula de ciúmes.

Lívia deixava-se punir. Era uma deliciosa penitência aquela. Ter aquela mulher lhe desejando novamente, com tanta voracidade, tanto fervor. Ela lhe machucava um pouco, arranhava seus braços, agarrava seus cabelos, a mordia pelo rosto, pescoço, ombro, colo...arrancou sua blusa e passou a sugar seus biquinhos com sofreguidão. Chupava seus seios como se dependesse daquilo pra não naufragar. Puxou-lhe a saia, arrancou suas meias, rasgando-as e junto trouxe a calcinha. Cheirou-a e lambeu seu fundo pra ter uma prévia do gosto que sentiria a seguir. Fez Lívia deitar na rede com as pernas bem abertas, totalmente à mostra pra ela. Ana não via, mas sentia o odor de Lívia como ninguém, “via” com seus dedos cada pequeno detalhe do relevo do corpo de Lívia, o contorno, suas curvas, os lugares que mais davam prazer quando tocados. Começou a beijar-lhe os pés, deslizava os lábios e a língua na panturrilha, subindo até as coxas e se detendo por dentro delas...com as mãos arranhava sua bunda e a trazia mais pra si. Quando Lívia sentiu aquela língua tocá-la no seu lugar mais íntimo, não resistiu mais e soltou um gemido alto e lânguido. Ana a sugava, passava sua língua pra cima e pra baixo, em toda a extensão de seu sexo, enfiava-se dentro dela e a penetrava como se quisesse se fundir a ela...chupou, lambeu, mordiscou...e tirou de Lívia um grito de gozo tão forte que fez tremer-lhe todo o corpo.
Lívia agarrava a cabeça de Ana e rebolava em sua boca pra tirar o máximo prazer daquele momento delicioso. Ana subiu sua boca pelo tronco, seios e pescoço de Lívia, até alcançar novamente sua boca e por lá ficou, dividindo com ela o gosto do gozo que acabara de sorver.
Lívia não queria largar aquela boca e beijando-a começou a tirar as roupas de Ana, que ainda estava vestida. Deixou-a nua e deitou-a na rede para que o tom avermelhado do Sol se pondo, colorisse aquele corpo moreno, lindamente delineado, de seios fartos e contorno generoso, que Lívia tanto queria. Beijou cada milímetro daquelas formas tão desejadas e enquanto a beijava, sem querer, saía de sua boca o quanto a queria pra si, o quanto a achava linda. Ana gemia e contorcia o corpo conforme seu prazer. Sentiu o mesmo gozo de Lívia, também foi sugada com vontade e entregou-se totalmente àquela boca, sem reserva alguma, sem inibições, completamente entregue àquela mulher que lhe tirava o sono todas as noites, que a fazia perder o controle.
Lívia sentou Ana na rede com as pernas abertas e encaixou-se entre elas para que seus sexos se encontrassem...elas se beijavam como se nunca fossem se largar, como se bebessem a água de um oásis...os sexos encharcados se esfregavam com tanta paixão que a sintonia era perfeita...sabiam exatamente aonde tocar e quando aumentar o ritmo...o tesão exalava por todos os poros e deixava seu cheiro no ar...não queriam gozar logo, mas como controlar a voracidade de seus corpos....eram eles quem mandavam agora....dançavam numa mesma cadência e então...se largaram ao prazer...gozaram quase que simultaneamente...tremiam, suavam, gemiam, se arranhavam, se lambiam, se beijavam, agarravam-se aos cabelos uma da outra e se entregavam àquelas ondas que vinham e tomavam-lhes todo o ser.
Os sexos pulsavam. Os corações estavam em disparada. Os peitos arfavam do delicioso esforço físico. Aquietaram-se. Lívia deitada no peito de Ana, que acarinhava suas costas. Mais uma vez nada era dito. Dizer o que? Não era preciso! Não queriam! Naquele momento, bastava sentir uma a outra.


CAPITULO 11
E AGORA?

[09/08/10]
A noite então se fez. Ana não queria mover-se além das mãos que acarinhavam Lívia. Esta não queria sair daquele abraço quente, do toque delicado em suas costas, das pernas que se entrelaçavam como uma cabeleira de Medusa.
-“ O que fazer agora? Não tenho a menor idéia do que será de nós. Eu estou fascinada, completamente louca por esta garota e não sei o que fazer! Logo eu que sempre fui tão sensata com meus sentimentos!”
Ana brigava com seus pensamentos incessantemente, não havia conclusão.
Lívia como que percebendo todo o conflito que acometia sua Amada, levantou o rosto e beijou-a com Paixão. Foi um beijo demorado, lento, mas exigente...como se quisesse apaziguar os conflitos, como se fosse um consolo pelo que viria logo à frente.
Ana afastou suavemente Lívia e disse com voz embargada:
- Parece que já anoiteceu. Era justamente o que eu não queria, pegar a estrada à noite. É muito perigoso! Vamos, Lívia. Temos que pagar a conta e irmos embora. Amanhã teremos muito trabalho e não quero dormir tarde hoje.
Lívia não acreditava no que ouvia! – “Não é possível que ela finja que nada aconteceu! Ah, não! Dessa vez não saio daqui antes de ouvir o que ela está sentindo, quero saber o que pensa sobre o que aconteceu entre nós!”
Com a ansiedade transparecendo em sua voz, disse:
- Não, Ana! Não vamos sair daqui até que eu saiba o que se passa com você...comigo...com a gente! Não posso acreditar que você esteja ignorando o que aconteceu! Ou tudo foi tão natural pra você que não tenha tanta importância assim?! Fale comigo! Me diz o que você está pensando, o que sente sobre tudo isso???
Ana afastou de vez Lívia e levantou-se da rede. Entrou no quarto e começou a mover-se de um lado para o outro. Estava difícil pensar, que dirá dizer o que se passava. – “Não tinha a menor idéia do que seria daqui em diante. Não queria perder Lívia de jeito nenhum, fosse como amiga, Assistente ou Amante...mas e a sua vida? O que seria das pessoas à sua volta? Não caberia uma situação como essa em seu mundo. Não aceitava esse tipo de atitude. Ia contra os seus princípios, aquilo que achava certo, justo. Não aceitaria de Alberto esse tipo de traição, então porque pensava em ter Lívia? Além disso tinha a própria Lívia. Seria uma indignidade com ela, consigo mesma, serem amantes e viverem uma mentira pras outras pessoas. Oh, Deus! O que fazer? Dói tanto pensar em não tê-la mais, que parece que vou sufocar até a morte! Me ajude a saber o que fazer! Não sei...não sei...”
Lágrimas amargas rolaram pelas faces de Ana. A angústia, diante da falta de controle absoluto sobre aquela situação, queimava no peito de Ana como uma marca de ferro. Era muito difícil saber o que fazer, o que dizer. E então, elas caíram...as lágrimas da impotência...da angústia...do nó que não se desfaz preso na garganta.
Lívia entrou no quarto atrás de Ana, ansiosa em saber o que ela lhe diria. Ficou assistindo seu vai e vem pelo ambiente, até que ela sentou na cama e chorou! E esse gesto fez Lívia compreender o quão difícil seria dali em diante a vida delas. Ana também sentia como ela! Aquela paixão latente não vinha de um lado só. Era correspondida no todo a sua intensidade e trazia em si uma dor lancinante sobre a incerteza do que aquele sentimento traria pra ambas. Mas Ana era mais velha, mais experiente e conseguia enxergar todos os revezes que viriam com aquela situação. Fosse somente para elas ou para todos que faziam parte de suas vidas.
- Lívia, me perdoa toda essa situação! Não é culpa sua, é muito mais minha. Não sei explicar como comecei a sentir tudo isso, muito menos como fui permitir que esse desejo aflorasse e se tornasse carnal. Eu deveria ter sido mais responsável, mais controlada. Você ainda é muito jovem, faz as coisas sem pensar...mas eu não! Era minha obrigação ter controle sobre minhas emoções. Não deveria ter deixado chegar a esse ponto!
As lágrimas escorriam enquanto Ana esfregava as mãos nervosamente.
- Que é isso, Ana! Você não sabe o que se passa em mim já há muito tempo! Eu sou fascinada por você desde criança! Te olhava pelas ruas da cidade, te acompanhava de longe, só pra ver teu jeito de andar, teus gestos, teu sorriso...eu já era louca por ti, só que não tinha consciência disso. Achava que era admiração. Quando a conheci de perto, achei que tudo isso cairia por terra, que todo esse encantamento acabaria com a convivência. Mas aí o que eu temia aconteceu. Eu fiquei ainda mais fascinada, me apaixonei e passei e desejar fisicamente aquilo que sempre me pareceu tão distante a vida toda.
- Porque você tá falando tudo isso pra mim, Lívia?! Só torna as coisas ainda mais difíceis! Estou tentando ser racional e você não está colaborando comigo!
Ana estava angustiada e dizia tudo com a voz embargada de emoção. Mas Lívia não queria deixar que ela fosse racional. Como racionalizar um desejo tão ímpar, uma emoção tão intensa, uma Paixão tão devastadora que se formava como uma enorme tempestade?
- Não Ana! Você não pode querer racionalizar o impossível. São emoções, Ana! E emoções fortes demais pra serem medidas pela razão! Eu estou completamente apaixonada por você e não posso fugir disso! Aliás, eu não quero fugir disso! É algo que não acontece a toda hora e não vou me privar de viver esse sentimento em toda a sua plenitude. Não vou!!! Mesmo que você não queira!!!
- Você não sabe o que está dizendo! Depois diz que não é tão criança assim, mas age como se fosse! Será que não entende? O que faço com você em minha vida? Aonde eu a encaixo? E o que vou fazer na sua? Vai chegar para o seu Pai e me apresentar como sua nova namorada? E o que digo para o meu marido e filho? “Escuta, tenho que deixá-los porque me apaixonei por uma garota com idade pra ser minha filha! Sim, é isso mesmo que vocês ouviram, é uma mulher e vou sair de casa pra viver esse romance com ela!”. É isso que você quer que eu faça?!
Ana falava alto, quase histérica. Havia levantado da cama, gesticulava muito e estava realmente transtornada com aquela situação atípica e fora do seu controle.
Lívia estava mais calma, mas também sabia que era uma ocasião muito difícil pra ambas e entendia o fato de Ana estar muito nervosa. Tentou relevar:
- Idade pra ser minha Mãe?! Seria muita precocidade não acha?! Mãe aos onze anos é demais!!! Eu não quero nada disso! Só não quero que você finja que nada aconteceu! Eu posso até entender suas centenas de razões pra não levar essa estória adiante, a lugar nenhum! Mas o que não suporto é sua pretensa indiferença, como se não tivesse sido tudo o que foi! Aconteceu, Ana!!! E foi maravilhoso!!! Foi a emoção mais intensa que já compartilhei com alguém! Não acreditava que um dia eu fosse vivenciar todos aqueles sentimentos que eu só encontrava nos Romances e nos poemas! E foi você, Ana, que me deu tudo isso! Não me peça pra fingir que foi algo comum...ordinário! Não foi! Nunca poderia ser!
Lívia aproximou-se de Ana e a tocou. Ana deixou cair suas reservas, foi ao chão toda a sua sensatez e abandonou-se no abraço de Lívia. Ironia o fato de estar sofrendo tanto com aquela situação e só sentir conforto no toque daquela que era o pivô das suas dores.
Disse entre soluços:
- Não sei o que fazer! Estou completamente perdida! Como voltar pra minha vida? Encarar meu marido, depois de tudo o que aconteceu aqui?! Aquela Ana que saiu ontem de casa é outra completamente diferente e você me transformou em apenas uma noite! Não tenho como ser a mesma nunca mais!
Lívia acarinhava Ana com toda ternura que vinha do Amor que sentia por ela. O sofrimento de Ana era o seu sofrimento; e a sua dor, doía com mais intensidade ainda dentro de Lívia.
- Eu jamais vou te cobrar algo, Ana! Sei da sua vida e de como fui me intrometer nela. Não quero desarrumar o seu mundo. Não somos culpadas, sei disso! Mas jamais vou exigir de você o sonho. Sim, o meu sonho! Ele é meu e você não é responsável por ele! Não posso pôr em seus ombros o peso das minhas fantasias. A responsabilidade não é sua!
Ana não se conteve e pegou Lívia pelo rosto...a boca ansiosa procurando a outra...queria aplacar a sua dor, esquecer a tais conseqüências...afogar-se nela! Foi um beijo nervoso, cheio de dor, molhado pelo sal das lágrimas e com gosto de sofrimento. Parecia um soldado que vai pra Guerra e se despede de sua Amada, com a certeza de morrer em combate.
Disse, então, afogueada:
- Você quer saber o que sinto não é?! Eu sou cega e você é que não enxerga! Olhe pra mim! Veja como eu fico quando te beijo, quando me entrego pra você! Será que você não sabe o que provoca em mim?! Claro que sabe...
Pegou a mão de Lívia e a levou até seu peito...o coração batia em descompasso...podia-se senti-lo da base do pescoço até o meio do tórax, tal a intensidade dos batimentos.
- Sinta isso...é o que você provoca em mim! Acha que isso é natural? Acha que é um sentimento qualquer? Por isso não sei como lidar com essa situação. Estou louca por você e não sei o que fazer com toda essa Paixão que consome meu corpo e minha alma!
Ana sentia-se tão impotente diante da enormidade daquelas emoções. Como fugir e, pior ainda, como encarar esses sentimentos tão fora do contexto da sua vida?! Tinha medo, muito medo! Sentia-se dilacerada!
Lívia não pensava mais em nada, era só sentidos. As palavras de Ana a tocaram de tal forma que desconjuntou sua mente. Estava desconcertada com aquela confissão, talvez não esperasse tanta franqueza, e mais ainda, que era correspondida em igual intensidade.
- Ana, você não está sozinha no que sente! E nem poderia! Uma Paixão como essa, só poderia ser correspondida! Ninguém pode sentir tudo isso sem contrapartida! Seria antinatural! Se pudéssemos medir, saberia que meu coração bate no mesmo compasso que o seu. Eu também estou louca de Amor e, assim como você, não sei lidar com esse sentimento! É minha primeira vez sabia?!
- Primeira vez?!
Lívia segurou o rosto de Ana e aproximou seus lábios no dela até quase tocá-los e disse:
- Sim Ana! É a primeira vez que amo alguém e com Paixão! Já tive várias “Paixonitezinhas” sem grandes conseqüências...mas com você é diferente...eu a quero pra minha vida, eu quero estar na sua vida, participar de tudo, ser importante pra você, ser fundamental...você já é fundamental pra mim...Eu te amo...amo muito...e essa é a única certeza que tenho em mim nesse momento!
Ana mais uma vez chorou e agarrou-se a Lívia beijando aqueles lábios que tanto desejava e que lhe diziam tudo o que ela sempre sonhou ouvir de alguém um dia. Os pensamentos vinham aos borbotões e Ana tinha certeza que aquele sentimento ela nunca tivera por ninguém, nem por Alberto. Era tudo tão intenso, que só pensava em prolongar o tempo que deveria passar com Lívia. A realidade era muito dolorosa e não tinha a menor vontade de encará-la tão depressa. Lívia, como que adivinhando o que vinha à mente de Ana, recuou um pouco o rosto e disse:
- Eu só tenho uma coisa a te pedir, mas por favor, não me dê um “Não” sem pelo menos pensar por uns 15 minutos, ok?!
Ana só queria voltar logo para aquele beijo...
- Diga...
- Vamos ficar! Vamos ficar por pelo menos mais um dia e uma noite. Eu sei que você fica preocupada com o Flavinho, mas ele está em boas mãos, tem a sua Mãe por perto e a Cininha. Tenho certeza que elas cuidarão muito bem daquela gracinha. No Escritório não temos nada urgente e Alberto está viajando, não é mesmo?!
Falar o nome do marido de Ana causava um certo desconforto em Lívia. – “Queria mais é que ele sumisse do planeta! Mas não posso fazer mágica!”
Ana afastou-se um pouco do corpo de Lívia, aquela proximidade não a deixava concatenar as idéias direito. Também havia ficado desconcertada com a menção a Alberto. – “Nunca imaginara traí-lo! E era exatamente isso que estava fazendo. Traindo o seu marido!” – Aquele sentimento fez Ana recompor-se, então falou num tom ríspido:
- Não está certo, Lívia! Você acha que sou uma pessoa desse tipo? Eu tenho uma família, marido, filho...não posso pôr tudo a perder por algumas horas de prazer...por tesão!
Lívia indignou-se com aquela mudança de atitude de Ana:
- Peraêêê! Que é isso que você está dizendo? Você acabou de confessar que também está apaixonada por mim! Aí, uns minutinhos depois, vem com essa conversa que “é só tesão, algumas horas de prazer”!!! Você não tá falando coisa com coisa ou então tá querendo brincar comigo, é isso?!
Lívia estava transtornada e continuou:
- Você acha mesmo que se formos embora agora, sua culpa será menor? Que se não transarmos mais, apagará tudo o que já experimentamos? Não seja tola, Ana!!! Sei que isso você não é! Eu quero muito ficar! O que mais quero é poder ter outros daqueles momentos lindos que vivemos. Mas eu a quero inteira e não partida ao meio pela culpa. Se você acha que isso é impossível, então vamos logo embora e acabar com toda essa palhaçada, que deve vir só de mim mesma não é?! Parece que sou eu que sinto sozinha!
Ana entendeu que tinha magoado aquela menina que tanto adorava e isso sim, era insuportável. Todo o resto poderia ser contornado facilmente, mas ferir Lívia era a última coisa que pretendia. Então, compreendeu o quanto ela havia se tornado fundamental na sua vida... pra sua existência ser feliz, tinha que tê-la por perto!
-Lívia...
Ana estendeu o braço e foi andando na direção em que vinha a voz de Lívia, mas esta se desviou e começou a juntar suas pequenas coisas para irem embora. Lívia estava com raiva de si mesma: - “Como fora boba em pensar que Ana poderia esquecer o mundo lá fora, pelo menos enquanto estivessem naquele local, longe de tudo...que poderia ser só dela por mais um dia e uma noite...”
Ana começou a ficar tonta tentando achar Lívia pelo quarto, enquanto esta se esquivava de suas mãos:
- Lívia, por favor, vamos conversar! Não fuja de mim assim...deixe-me alcançá-la...vamos falar melhor sobre isso...
E num giro um pouco desajeitado, Ana acabou por tropeçar no tapete do quarto e ir ao chão. Ao cair, o peso do corpo apoiou-se no pé direito, que torceu de mau jeito. Ana deu um grito de dor! No mesmo segundo, Lívia estava ao seu lado, cheia de remorso pelo acontecido, querendo ajudá-la:
- Ah, meu Amor! Desculpe a minha criancice! Não devia ter fugido de você assim! Tá doendo muito?! Acho que vamos ter que ir para o hospital!
Ana apoiou-se no pescoço de Lívia e levantou-se tentando colocar o pé direito no chão, mas a dor foi forte e a tentativa vã, soltou outro grito!
- Aiii, Lívia! Tá doendo muito! Acho que torci o tornozelo! Acho não, tenho certeza, pois não é a primeira vez que acontece! Já caí outras vezes...não tenho fraturas, mas já luxei e torci várias partes do corpo por causa dos meus tropeções. Nossa! Tá doendo bastante! Acho que você terá que me levar pra clínica mesmo!
- Claro! Vamos imediatamente! Se segura no meu ombro!
Ana pôs um dos braços em volta do pescoço de Lívia e foi apoiada em apenas um pé até o carro. Lívia dirigiu-se à Recepção para perguntar onde era o hospital ou clínica ortopédica mais próxima. Voltou ao carro e pôs-se a caminho de Campos do Jordão. No caminho não tocaram no assunto que estava em baila quando aconteceu o acidente, resolveram dar uma trégua naquele tema desagradável, que inevitavelmente voltaria a ser discutido mais tarde.
Chegaram ao Hospital indicado e Ana foi logo atendida pelo Plantonista que a encaminhou ao setor de Raio X. Após verificar que havia sido realmente uma torção, foi feita uma imobilização com uma bota ortopédica especial, que poderia ser retirada para tomar banho e colocar compressas de gelo. Ana foi medicada e ao sair do Hospital, já não tinha mais dor. No entanto, deveria locomover-se por um tempo de cadeira de rodas, pois não podia colocar o pé no chão e nem andar com as muletas que seriam sua alternativa, caso pudesse ver. Não poderia andar com elas, pois a deixavam sem direção, não sabia andar sem a bengala à sua frente. Decidiram, então, alugar a tal cadeira de rodas que deveria ser devolvida em duas semanas, quando Ana seria novamente examinada e, quem sabe, liberada daquela inconveniência.
Quando estavam indo pegar o carro, Ana pediu que Lívia se abaixasse e disse baixinho ao ouvido dela:
- Vamos jantar por aqui mesmo. Toda essa aventura desagradável me deixou chateada, mas com fome.
Lívia olhou ternamente para Ana, e apesar dela não poder ver toda aquela ternura que vinha dos olhos de Lívia, sentia-a no seu abraço cuidadoso.
- Depois de ter causado todo esse sofrimento em você, claro que farei tudo o que me pedir. Você manda, minha Amada! Mas não temos que voltar hoje ainda?!
Lívia havia aberto a porta do carro e estava com Ana nos braços para pô-la no banco. Seus rostos estavam muito próximos e Ana sussurou:
- Não, não temos que voltar hoje. Agora sou eu quem quer ficar mais um dia e uma noite....

Capítulo 12: DEIXANDO ACONTECER...

[10/08/10]
Ana havia sido medicada com um antiinflamatório e precisava alimentar-se logo. Foram a um restaurante Italiano para que Ana comesse sua comida preferida: uma boa massa.
Lívia estava cheia de cuidados com ela. A culpa pelo aconteceu, ainda latejava em sua mente. “-Se eu não tivesse feito ela me procurar pelo quarto, ela não teria caído e torcido o tornozelo. Fui uma idiota, irresponsável por agir assim com alguém na condição dela.”
Mas Ana não pensava assim, afinal tropeçar, esbarrar nas coisas, cair, era algo que fazia parte da sua rotina diária e sabia que isso não era culpa de ninguém e sim uma conseqüência do fato de não enxergar.
Estava faminta e só queria sentar e saciar sua vontade de comer “una bella pasta”. Estranho como, apesar de ter acontecido um fato tão desagradável, Ana estava calma e sem remorsos por ora. “- O que não tem remédio, remediado está! Vamos ter que ficar por aqui, então que seja da melhor maneira possível. Penso no que fazer de mim e Lívia quando voltarmos. Agora quero só aproveitar a companhia dela e esquecer que o resto do mundo existe.”
- Lívia, vamos fazer um trato? Depois desse incidente todo, só quero ficar em paz e curtir esse lugar. Quando acabarmos o jantar, vou dar alguns telefonemas e talvez fiquemos mais que um dia por aqui, caso você possa, é claro.
Lívia estava eufórica!
- Claro que posso! Meu trabalho é com você e não tenho outros compromissos me esperando em casa. Só preciso avisá-los. Mas o que a fez mudar de idéia? Foi o acidente?
- Acho que sim. Percebi que não adianta ir contra o Rio quando este quer seguir o seu curso; podemos cansar e nos afogar. Não costumo ser fatalista, mas foi como se este acidente tivesse sido um freio para que eu pare e me deixe levar um pouco...sem brigar, sem querer lutar contra o que meu coração pede.
- E o que está pedindo o seu coração?
- Que eu fique aqui com você por mais algum tempo. Não sei porque, mas precisamos desse tempo juntas agora. Assim como provavelmente iremos precisar de um tempo longe quando voltarmos. Você me disse algo lá no chalé antes de eu cair, que me fez refletir sobre isso...
- Eu te disse tanta coisa...muitas bobagens eu acho...
- Não, não foi bobagem! Foi uma constatação! Você me disse que não adiantava eu ficar cheia de culpas e querer fugir correndo da situação em que nos encontramos, pois isso não iria me redimir de um fato...o fato de eu já ter traído o meu marido. Vai ser irrelevante se eu ficar mais algum tempo aqui com você ou ir embora imediatamente...o fato já se consumou e isso é algo que não podemos mudar.
Ana falava tudo de um fôlego só, como que para não perder a coragem e completou:
- Não adianta querer negar que estou envolvida com você. Envolvida não, acho que irremediavelmente apaixonada e não pretendo fugir disso covardemente. É um sentimento intenso demais para que eu o trate como algo vergonhoso ou indigno. Não vou ser infantil e ficar romantizando que tudo dará certo sem sofrimento. Não existe isso! Você sabe tão bem quanto eu que será um processo muito doloroso pra todos nós. Mas não vou esquivar-me dele...preciso enfrentá-lo...
- Enfrentar quem?
- Esse sentimento que me abalroou sem pena! Essa torção não é nada perto do estado em que está meu coração!
Lívia estava trêmula de emoção diante daquela confissão de Ana. Era tão sublime ouvi-la falar daquele jeito. “- Ela confessou! Sim, tinha confessado que estava apaixonada e aquilo não era um sonho.”
- Ana, eu também estou completamente apaixonada por você e vou estar ao seu lado todo o tempo que você quiser e precisar. Agora que sei que também sente como eu, você não estará mais sozinha com seus problemas. Eu os estarei enfrentando com você.
Ana estava comovida, mas sabia que a realidade seria bem mais pesada que aquelas palavras de ternura...
- Minha menina! Não minimize o que virá, pois cairá sobre nós sem piedade, sabia?!
O Silêncio se fez naquela mesa. Elas sabiam que não tinham como fugir dos momentos doridos que se avizinhavam. Elas inevitavelmente magoariam pessoas e se magoariam também, seriam machucadas talvez por aqueles que mais amavam e os machucariam também...
Ana quebrou o silêncio que já pairava há alguns minutos:
_ Ouça com atenção o que vou te dizer, Lívia. Não quero que haja mal entendidos entre nós. Não depois de tudo o que houve conosco...
Lívia estava apreensiva, sabia que a sensatez de Ana não a deixaria agir sem pensar bastante...mas queria tanto que ela esquecesse um pouco o tal bom senso e fosse impulsiva, que se deixasse levar pelos sentimentos com os quais ela tanto brigava...
- Diga, meu Amor! Eu vou acatar tudo o que você disser...
Ana respirou fundo, como que para ganhar fôlego e coragem para o que diria a seguir:
- Vamos ficar mais um tempo aqui, talvez até 5ª feira. Eu já confessei e seria até uma idiotice da minha parte tentar esconder de você o que estou sentindo. Estou muito apaixonada por você e quero ficar aqui apenas para ter você por mais algum tempo. Essa é a verdade! Porém, isso não significa que quando voltarmos para as nossas vidas, iremos continuar com esses encontros. Não acho correto! Acho vulgar! A última coisa que penso é em tornar todo esse sentimento que nasceu em mim, que nasceu em nós, tão bonito, em alguma coisa mesquinha, ordinária. Eu adoro você e prefiro sublimar este Amor a ter que reduzi-lo a algo pequeno e sujo. Você está me entendendo, Lívia? Não vamos continuar com isso! Quando voltarmos, não seremos “caso” uma da outra. Eu tenho uma família, um filho que é tudo pra mim, não posso arriscar perdê-lo numa briga judicial com meu marido.
Lívia havia abaixado a cabeça e chorava baixinho. Ana percebeu o que se passava...
- Lívia, por favor, não fique assim...
Ana estendeu a mão e tocou a de Lívia. Esta segurou-a com força e entre lágrimas disse:
- Vou me repetir mais uma vez, Ana...esse sonho foi meu e não seu...tudo o que aconteceu aqui, transcendeu e muito minhas fantasias...eu adoro você...sei a vida que leva e tudo o que conquistou com seu esforço próprio. Acompanhei de longe a sua trajetória, lembra que te contei?! Jamais vou exigir de você atitude alguma em relação a nós. Por mais que isso me dilacere por dentro, vou respeitar qualquer decisão que você tome, hoje e sempre...acredite em mim! Não vou deixá-la em maus lençóis com sua família nem no trabalho, nunca! Se quiser, pode até me demitir que entenderei suas razões!
Ana não se conteve e também chorou...
- Vamos esquecer isso, por enquanto. Quero que neste tempo que vamos passar aqui, nada seja dito com relação ao que faremos quando voltarmos. A única coisa que desejo mais que tudo agora é ficar junto de você o máximo que puder.
Ana secou as lágrimas e acrescentou...
-Acho que estamos dando vexame aqui no restaurante. Quer mais alguma coisa?
- Não. Apenas voltar logo para o chalé.
Lívia fez sinal para o Garçom e pediu a conta. Depois empurrou a cadeira de Ana para a saída do restaurante e a pôs no carro, quando a deixou no banco, roubou-lhe um beijo apressado, dizendo:
- Esses dois dias serão eternos em mim!
Chegaram no chalé e deram alguns telefonemas para avisar que ficariam por mais algum tempo. Lívia pôs uma música suave em volume baixo. Preparou a cama e pôs Ana sobre ela. Fazia tudo com muito cuidado, como se Ana fosse um cristal precioso e altamente frágil que pudesse se quebrar com um volume mais alto. Deixou a luz do abajur acesa, queria olhar para aquele rosto o tempo todo, não podia perder um detalhe sequer das lindas expressões que Ana fazia sem se dar conta. “- Ela não tem a menor noção do efeito que causa! Minha linda Ana!”
Pôs uma almofada em baixo do pé de Ana, para que ficasse mais alto e não incomodasse durante a noite. Deitou-se ao lado dela e começou a acarinhar seus cabelos, rosto, boca, colo...tocava Ana toda, sentia uma necessidade incrível de estar com as mãos sobre ela!
Ana estava totalmente entregue aqueles carinhos. Sentia uma felicidade tão grande em estar ali com Lívia, que não permitia que seu pensamento fosse invadido por idéias do que viria depois. Decidiu que, durante aqueles dias, a única coisa que importava era o Amor dela e de Lívia. As dores ficariam pra mais tarde, quando então, teriam tempo de sobra para serem importunadas por sentimentos negativos.
Virou um pouco o corpo e beijou Lívia com paixão. Nesse instante teve plena consciência que jamais havia sentido por alguém, algo tão forte como sentia com Lívia...a vontade intensa de estar sempre ao seu lado...o desejo latente que não a abandonava nem quando dormia...o prazer sem limites quando faziam Amor, prazer no corpo e sensação de Alma plena, completa! Deixou-se ficar ali, só curtindo o seu Amor, a felicidade que sentia em estar com ela.
O beijo acendeu o desejo em ambas, porém Lívia estava com medo de machucar Ana.
Então, para saciar a vontade que tinham em se Amar, instintivamente tocaram-se mutuamente, masturbando uma a outra com muita suavidade e tesão. O gozo veio quase que simultâneo e aplacou um pouco o ardor que seus corpos sentiam. Ficaram abraçadas, se acarinhando e com as bocas unidas, dizendo palavras de Amor e carinho. Passaram horas conversando sobre coisas amenas...os filmes que mais haviam gostado, as músicas que marcaram a vida de cada uma, as roupas que precisariam comprar no dia seguinte, os lugares que queriam visitar, as flores que Ana queria tocar...e o sono foi chegando e deixando lânguidos aqueles dois corpos saciados de Amor pleno; o físico e o do coração...o tipo de Amor que todo mundo sonha, o Amor dos livros, da poesia, da pintura, das Artes...o tipo de Amor que teria que ser muito resistente para enfrentar o mundo de desventuras que teriam pela frente. E apesar disso, a cena que se via do alto, com as duas mulheres nuas deitada lado a lado, de mãos dadas, tendo a cabeça de uma no ombro da outra, sob o olhar perspicaz de um bom artista, daria uma bela tela à óleo.
SONETO
Se tiveres que me amar,
Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: "Amo-a pelo seu olhar, seu sorriso,
Seu modo de falar sincero e brando.
Amo-a porque se sente minha alma,
Em constante comunhão com a sua.
E traz uma sensação agradável ao dia".
Porque isso tudo pode mudar, querida; em si mesma,
Ao perpassar do tempo ou para ti unicamente.
Nem me ames pelo pranto que a bondade de tuas mãos enxuga.
Pois se em mim secar, por teu conforto, esta vontade de chorar,
Teu amor pode ter fim!
Mas ama-me por amor do amor somente.
Que assim me amarás, sem fim, por toda a eternidade.
(Elizabeth Barret Browning)


Capítulo 13: OS DIAS FELIZES...

[11/08/10]
O dia seguinte chegou trazendo o frio úmido das montanhas, o cheiro de terra molhada pelo orvalho da madrugada inteira, e dois corpos nus embaixo de um edredom, que se aqueciam muito mais pelo calor do que sentiam que pelo de seus próprios corpos unidos.
Lívia abriu os olhos e ficou admirando Ana ressonar. Era lindo vê-la com semblante leve e inocente, totalmente à mercê do seu olhar de Amor. Como que parecendo sentir-se olhada, Ana, sem abrir os olhos, levantou a mão e tocou a face de Lívia, desceu pela nuca e puxou o rosto de Lívia até tocar-lhe os lábios num beijo lânguido e preguiçoso...
- Não é justo ficar olhando o outro enquanto dorme...
Disse Ana sorrindo...
- Incrível como você consegue perceber essas coisas! Minha vontade não é própria, não me pertence mais, nem ouve o que é de bom tom ou não...ela é soberana quando se trata de ti e tenho que obedecê-la e pronto! Acordei, me virei e aí vi o seu rosto lindo, adormecido e totalmente à disposição do meu olhar...o que fazer?
Lívia falava com Ana acariciando seus cabelos. O tom de sua voz era tão doce que o coração de Ana batia mais rápido a cada sílaba.
Lívia ajudou Ana a levantar-se, não eram 8:30 da manhã ainda, e teriam tempo para um bom banho antes do café da manhã. Lívia pediu gelo na recepção e retirou o imobilizador da perna de Ana, aplicou uma compressa por 20 minutos, depois preparou a banheira e entraram juntas para um banho a dois. Mas pela condição em que Ana estava, todo o cuidado era tomado por Lívia para que ela não fosse machucada. Sentou-se atrás de Ana e deu-lhe banho com cautela, passou bucha delicadamente por todo corpo, lavou-lhe os cabelos e lavou-se também, já estava por sair da banheira, quando Ana a fez ficar.
Fez do corpo de Lívia como se fosse uma cadeira, recostou-se a ele e virou o rosto pedindo pra ser beijada. As mãos deslizavam pela perna de Lívia e Ana segurou-lhe uma das mãos e a levou até seu seio...fez com que Lívia o acariciasse e desceu até o ventre...Lívia já beijava a nuca de Ana e colava seu corpo ao dela como se pudesse se fundir á pele e à carne da sua amada...beijou e mordiscou a orelha de Ana, desceu a boca pelo pescoço e mordeu-lhe os ombros...as mãos passeavam pelos seios, abdômen, ventre, pernas...as unhas deixavam pequenos arranhões, uns lanhos vermelhos sobre a pela morena de Ana...que gemia, se contorcia e agarrava-se aos braços e pernas de Lívia, murmurando frases desconexas, de puro tesão.
Lívia arqueou o corpo e fez com que Ana ficasse sentada em cima de seu sexo...encaixar desse jeito entre os quadris de Ana era delicioso, senti-la rebolar sobre si então, era maravilhoso, e Ana o fez com maestria. O pé machucado nem parecia pertencer ao resto do corpo de Ana. Lívia segurou as ancas dela e a fez dançar no seu ritmo...como era gostoso ter aquela mulher deliciosa bailando em cima dela, com tesão, dizendo palavras levemente obscenas misturadas às declarações de Amor. Lívia deslizou as mãos em direção ao sexo de Ana, tocou-a com desejo inflamado, querendo ver aquela amazona esfregar ainda mais sua bunda em seu sexo inchado e encharcado de tesão. Lívia puxava Ana pelos cabelos e a fazia se mover na mesma cadência que ela. Ana sentia a mão de Lívia abrindo seu sexo e o invadindo sem pudor. Não precisava de licença, ele era todo dela, só dela...e ela exercia seu direito com toda plenitude e assim fez...entrou em Ana e vasculhou seu interior em busca do lugar que mais lhe dava prazer...um dos dedos massageava aquele pedacinho de carne que endurecia a cada segundo mais e mais, como se fosse uma pequena pedra de Rio, daquelas que deslizam ao toque.
Ambas se tocavam como se soubessem exatamente onde arrancariam mais gemidos uma da outra...era como se os corpos fossem mapas do tesouro e as jóias sempre eram encontradas, indubitavelmente. Se conheciam, não sabiam dizer como, mas entendiam o que cada uma queria e precisava.
Lívia retesou o corpo e segurou firme os cabelos de Ana, virou-lhe o rosto e beijou aquela boca com muito ardor...o gozo veio intenso, elétrico, fazendo o corpo todo tremer por alguns segundos. Ana continuava com os dedos de Lívia sobre si, fazendo-a ver cores ainda desconhecidas e soltou um suspiro longo e pesado logo que o prazer chegou-lhe ao corpo. Apertou forte a mão de Lívia contra se sexo e esfregou-se nela a fim de arrancar-lhe todos os gozos a que fazia jus.
Ficaram daquele jeito, sabe-se lá quanto tempo ainda...beijavam-se, acarinhavam-se, entregavam-se...Lívia olhava sem cansar o rosto de Ana e o fazia como que para captar e gravar em si todo aquele momento, os pequenos gestos, as expressões involuntárias que Ana fazia...queria que ficassem impressas em sua memória não apenas o que via, mas cada impulso elétrico que ela lhe causava, cada sensação de prazer, cada gemido, cada murmúrio, qualquer frase dita aleatoriamente ou não.
Já Ana queria sentir, e isso ela fazia como ninguém...não sabia se conseguia fazer transparecer para Lívia tudo o que ela provocava em seu corpo, em sua alma, em seu ser...mas não conseguia largar sua mão junto de si; não conseguia parar de tocá-la com profundo amor; de levar a mão de Lívia até abaixo de seu ventre para que ela sentisse seu desejo, sua umidade. E Lívia sentia como ninguém que Ana não precisava estar olhando para ela pra dizer-lhe o que ia na sua alma...o modo como ela se entregava àqueles momentos de intimidade, eram a pura tradução de tudo o que Ana não podia mostrar com seu olhar.
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Após o café da manhã, decidiram voltar a Campos do Jordão e juntas explorarem aquela linda cidade. Ambas precisavam de roupas e iniciaram a busca pelas pequenas lojas ao redor de toda a cidade. A tarefa não era tão simples pelo fato de Ana precisar da cadeira de rodas, o que muitas vezes a deixava impossibilitada de alcançar determinado lugar. Mais uma vez, sentia da pele o descaso das autoridades para com os deficientes. Eram raros os lugares altos que tinham rampa de acesso e nada era feito sem a força física de Lívia, muitas vezes contando com a ajuda de outras pessoas. “- Preciso parar e pensar melhor o que poderia fazer para melhorar a vida dessa gente. É tudo tão complicado para quem precisa se locomover assim!” Ana conjeturava enquanto mais uma vez Lívia fazia força para alçar sua cadeira a uma calçada mais elevada.
Apesar dos percalços, o passeio transcorria muito agradável. Ana e Lívia deixavam transparecer uma felicidade incontida! Era como se as duas tivessem apenas a si mesmas no mundo, ao redor por onde andavam. Lívia ajudou Ana com suas compras e adorava ver o modo como ela escolhia os modelos, sentindo a textura do tecido, o caimento que tinha, sempre perguntando que cor era e qual o tom exato, a nuance de cada peça. Ela era meticulosa e gostava de perceber todos os detalhes do corte, da modelagem, o comprimento...Lívia a ajudava a vestir-se e quando Ana posava para ela, ficava sempre um suspiro preso na garganta... “- não podia dar bandeira para as vendedoras.”
Quando Lívia encontrava algo de que gostava, também desfilava para Ana, para que ela “visse” com suas mãos a nova roupa. E nesses momentos, ela sentia toda a delicadeza e feminilidade com que Ana tocava as peças e a tocava por sobre a roupa... não perdiam um detalhe sequer da inspeção, afinal era desse jeito que Ana podia “ver”.
Almoçaram num belo restaurante com mesinhas do lado de fora, ao longo da calçada, em frente a pracinha florida da cidade. Depois decidiram pegar a pequena “Maria fumaça” e subir um pouco mais, fazendo um “tour” pelas montanhas daquele belo lugar. Lívia descrevia com detalhes tudo o que via...as flores com seus mil tons diferentes, suas formas e o modo como se perfilavam por sobre o monte, os pequenos filetes de água, que lá embaixo formavam riachos que resultariam em grandes rios, os pequenos animais que corriam sorrateiros sobre e sob as folhagens...Ana sentia tudo, os cheiros que aquele lugar lhe dava, traziam com eles todas as descrições minuciosas de Lívia, e então Ana a tudo enxergava.
Quando voltaram para a cidade, já era noite. Resolveram comprar uns frios, pães e vinho para Lívia e refrigerantes para Ana, que tomava remédios. Queriam uma noite sem interrupções de Garçons ou atendentes solícitos. Estarem a sós era o máximo que pretendiam para fechar com chave de ouro aquele excelente dia. Seria um jantar simples, com uma boa música em frente a lareira. O que mais desejar por enquanto?!
Assim foi feito. Lívia aprontou o quarto com todo o cuidado enquanto Ana estava no banheiro se preparando para o seu Amor...ela não queria saber de ser sensata ou pensar o que viria depois....queria apenas estar ali, sim bastava estar ao lado dela, sozinhas, para depois terem o que lembrar quando os momentos difíceis chegassem.
O ambiente estava com um clima de sedução no ar, tudo exalava o desejo de Lívia em fazer Ana feliz, aproveitar ao máximo aqueles momentos que, quiçá, poderiam ser os únicos. “- Não, não serão os únicos! Eu vou lutar por essa mulher enquanto eu puder e ela me permitir! Não vou sair do lado dela, nem que ela peça por isso, não enquanto eu sentir que o que ela realmente deseja é ter-me ao lado dela!”
Lívia tirou Ana da cadeira e a levou até o chão, em frente a lareira, que a esta altura, já aquecia todo o ambiente. Uma bela canção tocava não muito alta e o cheiro que vinha da mesa baixa em frente as duas, era uma delícia! Sentiu vontade de beber um pouco do vinho, mas Lívia foi relutante, não deixando. Não queria nem imaginar ver Ana sentindo dor naquele tornozelo. Sentou-se ao lado dela e mostrou-lhe onde estava cada coisa de comer, levando suas mãos a todas as coisas da mesa. Ana não gostava que lhe preparassem nada, ela mesma tinha que tocar e aprontar seu prato, sempre fora assim desde que perdera a visão. Só não se atrevia a mexer com fogo, isso deixava para a cozinheira, que fazia tudo muito bem.
Se beijaram e começaram a comer, conversando como o dia havia sido agradável. Era incrível como ambas abstraíam tudo o que poderia causar desconforto na conversa...qualquer fato que pudesse remetê-las a vida real que as esperava, era logo descartado e voltavam-se uma pra outra, para o que elas mais gostavam de fazer, o que não gostavam, o que mais atraía uma na outra, o que mais irritava...
- O que mais me irrita em você, é quando você ignora meus apelos pra não tentar tudo sozinha...tem uma mania de auto suficiência!!!
Lívia dizia...
- E você é esse seu jeito de sabichona, que pensa que sabe o que vai acontecer e quando acontece, fica repetindo...eu te disse...eu te disse...
Ana disse com a boca encostada no ouvido de Lívia, mordendo o lóbulo quando se afastou...
- Mas o que mais adoro, é esse seu jeito de me cuidar...de mostrar o que sente sem medo...de me seduzir apenas com um suspiro...de me fazer sentir tão mulher, tão feminina, tão amada!
A penumbra cercou o quarto...o corpo de Ana ganhava um contorno todo especial e a pele um tom âmbar como os da madeira daquele chalé...Lívia a tinha deitada entre seus braços enquanto recostava no pé do pequeno sofá. Havia um tapete no chão imitando pele de carneiro, fofo e branco...o leito ideal para quem está transbordando...
-Sim, meu Amor! Você pode se sentir muito amada mesmo, porque você o é! Vamos nos fazer felizes hoje e amanhã e nada nem ninguém vai nos tirar esse direito. Não importa se minha morte tem data pra acontecer...o que importa é ser feliz enquanto viva!!! E eu só me sinto plenamente viva ao seu lado!
Ana tocou os lábios de Lívia e disse:
- Não diga tolices...você ainda viverá muitas coisas boas e tomara que eu possa assistir pelo menos de longe...
Lívia apertou os dedos de Ana e disse segurando-os forte:
- Não diga tolices você! Essas coisas boas, só serão completamente boas se você estiver comigo! E qualquer coisa de ruim que me acontecer, será menos ruim se você estiver ao meu lado...não importa como...mas esteja comigo!
Ana não respondeu, girou o corpo com cuidado até ficar de bruços em cima de Lívia...aproximou os lábios e disse sussurrando entre dentes, com a boca colada a dela:
- Será que você vai suportar, Lívia?! Ouviu bem o que acabou de me dizer?! “não importa como...esteja comigo!”. Acha justo com você mesma isso? Eu te amo...é isso mesmo! Te amo e não adianta mais esconder isso de você e muito menos de mim! Você é o Amor que sempre quis pra minha vida, que sempre sonhei...mas que nunca imaginei sequer que seria uma mulher, e que a encontraria depois de já ter construído uma família...não, não vou começar com esse assunto, afinal combinamos de não tocar nele até voltarmos...só quero te dizer que não vou submeter você nem a mim mesma a qualquer humilhação em nome desse Amor...ele será intocado, só nosso e só nós poderemos decidir se iremos vivê-lo ou sublimá-lo. Nesse momento, eu quero tudo o que ele puder me dar...eu quero você inteira, me toque com sua alma...vem...
E beijou Lívia com tanta Paixão que sentiu um gosto leve de sangue na boca.
Se amaram ali mesmo, na frente do fogo que crepitava...a maciez do tapete era o fundo perfeito para aqueles corpos delicados e elas se entregaram ao Amor sem reservas ou pudores. Se entendiam como se amantes fossem há séculos, sabiam exatamente onde tocar, o que buscar na outra...porém, cada suspiro, cada demonstração de prazer, era uma agradável surpresa que tocava o coração.
Lívia tomava cuidado para não machucar Ana e esta, por vezes esquecia-se do estado em que se encontrava. A volúpia fazia Ana esquecer e somente quando a dor era sentida é que Ana se dava conta. Nunca havia sido amada dessa forma! A intensidade do que sentia e daquilo que Lívia parecia sentir também, impregnava-se em sua alma e refletia no modo como entregava seu corpo à Lívia. Não havia travas, amarras...fossem pelos tabus que norteiam a vida da maioria da pessoas ou suas próprias inibições... enfim, elas simplesmente não existiam quando estava com Lívia. “- Ela pode tudo comigo, ela faz o que quiser de meu corpo, não tenho mais vontade própria que não seja me entregar aos seus carinhos! Como eu te amo e como esse Amor me domina sem piedade!” Pensava Ana, quando algum lampejo de idéia ainda lhe passava pela cabeça.
Lívia era puro instinto. Também jamais havia sentido nada parecido com o que Ana provocava nela. Sequer imaginava que sentimento dessa magnitude realmente existisse. E ainda assim, deixava-se levar sem raciocinar, não havia como concatenar idéia alguma com aquele turbilhão invadindo seu corpo e sua mente. Ana era a mulher com quem sonhara, não exatamente a “mulher”... sonhava que um dia talvez pudesse encontrar um homem para amar do jeito que os livros descreviam, como saber que esse homem seria aquela mulher que tanto admirava, que a fez apaixonar-se com seu jeito obstinado e ao mesmo tempo sensível de encarar os fatos da vida. Não adiantava tentar racionalizar e ver por que amava Ana, não chegaria a conclusão alguma...seria o jeito de ser? A beleza física? A admiração?...era nada disso e tudo ao mesmo tempo! Não havia explicação racional pelo desejo que aflorou, ele veio, instalou-se e pronto! Não se pode tentar explicar o inexplicável, o porquê de gostarmos ou não de alguém.
E qual foi a solução que ambas encontraram para o que acabavam de descobrir naquele chalé, lá longe no meio das montanhas frias de uma cidadela do interior de São Paulo?
Autorizaram-se! Exatamente isso! Autorizaram-se a viver, pelo tempo que lhes fosse concedido, aquele Amor Anarquista...amor sem governo, sem mando...decidiram por guardar para si aquela pequena estória, sem pensar no que viria a seguir. Queriam apenas imprimir em suas almas os momentos gloriosos daquele sentimento, que parecia secular, recém descoberto. Elas queriam tudo e naquele pequeno e aconchegante bangalô, tiveram todo o Amor que alguém pode desejar. Se seria efêmero, passageiro, não se perguntavam naquele instante por isso, não cabia no contexto. Independentemente do que viria depois, elas desejavam apenas a concretização plena do que julgavam ser o Amor perfeito e assim ele seria, pelo menos por dois dias.
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No dia seguinte acordaram novamente abraçadas; uma colada à outra, como se apenas um ser fossem. Lívia estava com o corpo um pouco doído, pois Ana dormira com todo o peso sobre ela, inclusive a perna imobilizada, que gerava um peso extra. Mas estava feliz em ter seu corpo moído pelo peso de quem amava. Abateu-se sobre ela uma terrível melancolia! “- O tempo estava se esgotando! Deus, eu não quero voltar!” Mas como haviam prometido não tocar no assunto, tentou conter sua tristeza para que Ana, sensível como era, não percebesse seus conflitos. No entanto, Ana também acordou triste! Incrível a sintonia que existia entre as duas, até os humores eram parecidos!
Ana lembrou-se de um local chamado “ducha de prata”, onde havia uma cachoeira com uma espécie de parque nas cores azul, vermelha e amarela, com vários tubos e canos enormes lançando água por todos os lados. Esse foi o modo como Ana descreveu pra Lívia o lugar e esta decidiu obter mais informações e irem até lá descobrir o que eram os tais tubos gigantes.
Realmente o lugar era muito interessante...era do jeito que Ana descrevera, com água saindo pelos enormes tubos que formavam cascatas artificiais massageando fortemente quem conseguisse se manter embaixo delas. A água estava muito gelada e Ana preferiu não experimentar daquele “gelo”. Ficaram por lá, Lívia apreciando a paisagem e o vai e vem das pessoas em volta; Ana, sentindo o frescor das gotículas de água que borrifavam seu rosto, braços e pernas, causando uma agradável sensação de bem estar com a natureza.
Conversavam muito, aprendiam cada vez mais sobre a vida da outra, mas os momentos de silêncio também eram preciosos. Não era preciso falar o tempo todo com Ana para ter sua atenção, muitas vezes bastava estar ao seu lado, calada e ainda assim Lívia podia sentir que ela estava ali, ao seu lado, acarinhando o seu espírito. A sintonia entre ambas era tão grande, que por vezes as palavras tornavam-se absolutamente desnecessárias, e ás vezes até excessivas! Precisavam apenas sentir a presença da outra, estivessem fazendo qualquer outra atividade, mas sabiam-se ali, ao lado, ao alcance das mãos ou de uma súplica de Amor.
O dia seguinte seria o dia da volta, o dia que ninguém queria que chegasse tão depressa! Sabiam que tinham combinado não falar sobre a volta até que voltassem de fato, mas era impossível retirar por completo esse pensamento melancólico da mente de ambas. Conseguiram mascará-lo e até sufocá-lo pelo prazer de estarem juntas, mas inevitável que vez ou outra ele cercasse de maneira sombria a mente de cada uma delas.
- Já reparou como passa rápido o tempo quando estamos felizes? Isso é muito injusto, não gosto dele!
Disse Lívia quando voltaram para o carro...
- Eu gosto do tempo, ele é cruel, mas verdadeiro, não engana ninguém e todos sabemos de antemão que ele é inexorável e será sempre implacável na sua gana de seguir em frente.
Ana não conseguia disfarçar sua tristeza...ela estava estampada na sua voz baixa, quase murmurada...nos gestos indolentes...na cabeça arriada, com o queixo quase encostando no colo. Lívia percebeu e acrescentou:
- Ele é inexorável e exatamente por isso, também cura as feridas mais purulentas. Você tem razão, eu também simpatizo com o tempo...
Chegaram no chalé já era quase noite e decidiram passar as últimas horas que lhes foram concedidas pelo destino, da maneira que mais agradava às duas...juntas, se amando!
Novamente levaram um farnel para o quarto e lá ficaram...se descobrindo...a cada estória contada, mais aprendiam sobre a outra...cada pequeno segredo compartilhado, as aproximavam ainda mais...cada cicatriz continha uma pequena parábola, que ao ser contada, eram guardadas com carinho, como se próprias fossem. Ana tocava cada uma delas para sentir-lhes a textura.
Elas estavam compartilhando ali, a vida inteira de cada uma. Nem os mais próximos sabiam tanto o que significava cada experiência na vida delas e agora, ao dividi-las era como se tivessem juntas vivido aqueles momentos.
Riram muito...marejaram os olhos outras vezes...sentiram graça, dor e medo pela outra...fizeram amor várias vezes ao longo daquela noite fatídica...viveram em horas mais emoções que muitos não experimentam durante meia vida...mas não queriam que ela se acabasse! Estenda-se noite! Prossiga com mais vagar! Não tenha pressa em deixar atrás de si dois corações em carne viva! Seja paciente, fique um pouco mais!!!
Mas a noite é outra comandada do tempo e ele, como sempre, não aceita argumentos, é implacável!
Nenhuma das duas conseguiu pregar o olho um minuto sequer. Lívia passou toda a noite mirando e admirando o rosto suave de Ana. Esta por sua vez, fechou os olhos, mas não pelo sono, esse não veio! Ela os fechava para apenas sentir...sentiu o toque de Lívia o tempo todo, no seu rosto, nos cabelos, na boca, no colo, foi acarinhada durante toda a noite e correspondia aos carinhos com outros toques, beijos e palavras de Amor. Essa era a única certeza que tinha dali pra frente...amava Lívia profundamente e teria que conviver com essa verdade fizesse ela parte de sua vida dali em diante ou não!
Restaram ali agarradas até quase os últimos minutos que faltavam para tomarem a tempo o café da manhã. Após voltaram para o chalé, queriam curtir ali as últimas horas que faltavam para irem embora. Ana queria chegar à cidade antes do anoitecer, estava com saudades do Flavinho, o único que conseguia desviar seus pensamentos de Lívia. Além do mais, na 2ª feira seguinte teriam uma Audiência importante e havia muito trabalho a ser feito até lá. Porém queria aproveitar o que pudesse desse abraço, desses beijos, dessa Paixão, pois sabia que só ali ela seria plenamente vivida. À partir da volta delas, tudo teria que se adaptar à realidade da vida de cada uma
Ficaram na rede dizendo coisas de Amor...não importava se seriam concretizadas aquelas fantasias, o que importava era saber que se queriam daquela forma, que se amavam daquele jeito e isso deveria bastar por enquanto.
Lívia ligou para a recepção e pediu que a conta fosse fechada. Enquanto isso, arrumou as coisas para irem embora. Não eram muitas coisas, pra falar a verdade eram bem poucas, pois vieram desprevenidas, mas eram as coisas mais importantes para elas dali em diante...eram as peças que tinhas adquirido durante aqueles dias preciosos!
Despediram-se do dono da Pousada, da recepcionista e do Garçom e antes de entrarem no carro, resolveram dar uma última volta pela pousada. Lívia empurrava a cadeira de Ana e ao chegar de frente para um desfiladeiro, estancou e sentou-se na perna boa de Ana, com toda aquela vista de cartão postal descortinando à sua frente. Não se importava se alguém poderia vê-las, mas precisava dizer a ela o que via, o que estava sentindo, o que continuaria a sentir...
- Ana, você é o Amor da minha vida. Aquela pessoa que eu esperei sempre e que quando encontrei foi reconhecida. Sim, eu te reconheci e não tinha jeito de fugir desse Amor, de lutar contra. Ele estava ali estampado na minha frente, latejando na minha alma, gritando pra mim...é ela, é a Ana quem você esperava, ela veio!
Deu um longo suspiro como que para oxigenar melhor seu corpo e continuou...
- Não sei o que será desse Amor à partir de amanhã...ele me cega muito mais do que você é fisicamente...não consigo enxergar um futuro para ele...mas uma coisa é fato, ele não irá morrer, mesmo que não seja mais alimentado por nós...ele é indelével, é autofágico e alimenta-se de si mesmo...ele continuará dentro de mim, Ana! Porque o que aconteceu nessas montanhas esses dois dias, não é algo comum, corriqueiro...ele viverá em mim mesmo que você não o queira. Não abrirei mão desse sentimento nunca, porque ele é meu e dele alimentarei meus sonhos, minha alma e darei brilho à minha vida.
Quando acabou de falar, estava com lágrimas escorrendo pelo rosto e Ana chorava com expressão de pura dor...
- Eu sou mais velha, mas não sou tão bem resolvida e madura como você está demonstrando ser, Lívia. Tenho medo, muito medo e não sei lidar muito bem com aquilo que conheço pouco e esse sentimento é totalmente novo pra mim. Não tenho suas certezas, mas tenho a impressão que esse Amor também ficará em mim como minha própria pele...será minha “Luz” pra guiar minha cegueira interna causada pelo medo das conseqüências...minha “Luz” quando meu coração escurecer de dor e de saudades de você...minha “Luz” quando a névoa das incertezas vier bater na minha alma...você é minha “Luz”...meu Amor...
Puxou e beijou Lívia afogueada, as lágrimas escorriam copiosamente pelas faces de ambas e se misturavam à saliva, dando um gosto salgado e levemente amargo àquele beijo de dor.
Encaminharam-se para o carro e Lívia ajeitou Ana no banco do carona sem olhar pra ela, pois não conseguia conter o pranto cada vez que via o rosto melancólico de Ana. Fizeram a volta pela Pousada e pegaram a pequena estradinha que ia morro abaixo desembocar na estrada principal de volta a cidade natal das personagens. Lívia deu uma última olhada ao deixar o local e pensou: “- Onde eu fui mais feliz na vida e onde meu peito foi dilacerado pela dor ao sair! Nunca mais serei a mesma depois desse lugar...” . Ficou olhando pelo retrovisor a estrada se alongando e o monte cobrir a clareira onde a pousada ficava. Pegou a estrada principal e foi acompanhando o topo daquele monte ir sumindo aos poucos do seu campo de visão. A dor era indescritível e o medo que ela tanto evitava, agora dava o ar de sua graça no coração de Lívia. “- Pronto, agora já é história! Tudo o que vivemos foi um sonho e virou história dentro de cada uma de nós...será que vou conseguir sufocar esse Amor cada vez que ele ameaçar me dominar? O que vai ser agora???”
Ana encolheu-se no banco e com o rosto virado para a janela, chorava baixinho para que Lívia não percebesse... “Acabou! O que vai ser de nós agora? O que faço com tudo isso que está dentro de mim? Como ser a mesma depois do que aconteceu?! Como eu amo essa mulher!”
As perguntas eram parecidas...ambas estavam mergulhadas em suas próprias dores, cada qual sentia de uma maneira e sofria por motivos diversos, mas o estopim era o mesmo...o Amor que traz consigo os sentimentos mais paradoxais que existem...o de imensa alegria e profunda dor! Pior ainda, eram os questionamentos sobre o que fazer com isso, como agiriam dali em diante. Bem, as perguntas pululavam em suas mentes, não havia respostas ainda...por enquanto, uma certeza ambas tinhas...a de que à partir de então, não seriam as mesmas Ana e Lívia que deixaram a pequena cidade onde moravam há três dias...


Capítulo 14: A VOLTA...

[12/08/10]
O carro foi estacionado na garagem da casa de Ana. Ficaram, as duas, ali por vários minutos, imóveis, sem olhar nem dizer absolutamente nada. Apenas as respirações eram ouvidas e sentidas com um profundo pesar pela volta. Nenhuma tinha coragem de ser a primeira a quebrar o vidro da cúpula que criaram por três dias. Não foi preciso o esforço para tal, pois a porta da área de serviço é aberta e Flavinho entra na garagem chamando pela Mãe:
- Mamãe, que bom que você voltou! Estava morrendo de saudades!
Ana abre a porta do carro e segura o filho um pouco afastada para não ser pisada no pé machucado:
- Meu querido, eu também senti muito a sua falta! Cuidado com o pé da mamãe!
- O que houve com seu pé, Mãe?
- Caí no quarto da pousada, tropecei em um tapete e fui ao chão e só não foi pior porque Lívia me segurou e amorteceu minha queda, senão teria quebrado o tornozelo. Dessa vez só luxei.
- Tá doendo?
Perguntou o menino com expressão preocupada, a mãozinha no pescoço da mãe:
- Não, meu bem! Não dói, mas vou ter que andar com esta cadeira que está ali atrás até poder colocar o pé no chão, o que deve demorar umas duas semanas.
- Que legal, Mãe! Eu vou poder andar nessa cadeira também? Posso empurrar ela?
Ana riu da ingenuidade e empolgação do menino...
- Isso nós vamos ver mais tarde...agora venha cá, deixa eu te abraçar um pouco...
Lívia já tinha começado a retirar as bolsas do carro a tirou também a tal cadeira de rodas, montando-a após. Flavinho deu um beijo nela – gostava muito de Lívia – e pediu para ajudar a pôr Ana na cadeira e empurrá-la pra dentro de casa. Cininha veio e pegou as bolsas com Lívia. Entraram em casa com Ana sendo empurrada pelo filho. Ele estava feliz com o novo “brinquedo” da Mãe e com sua volta...fez uma infinidade de perguntas e ficou esperando algum presente, Ana sempre comprava algo para o filho nas viagens, nem que fosse um bombom. E dessa vez não foi diferente.
Nesse instante o telefone toca e Cininha vem com ele na mão dizendo que era Alberto. Ana pega o fone:
- Olá, tudo bem e você como está indo aí na Capital? Sim acabei de chegar e estou dando uns presentinhos que trouxe para o Flavinho...ah, para que você não se assuste quando chegar, eu torci o tornozelo e estou com o pé imobilizado, além disso tenho usado uma cadeira de rodas pra me locomover, pois cega e andando de muletas não dá, né?! Logo iria quebrar a outra perna...
Lívia levantou-se e estava caminhando em direção à porta quando Ana a interrompeu:
- Espere um pouco Alberto....
Tapou o bocal do fone e disse:
- Pode me esperar um pouco, Lívia? Quero combinar para amanhã...só um instante, ok?!
Para Lívia era horrível ter que ouvir Ana conversar com o marido e ficar contando detalhes da viagem...só faltava ela contar o que houve entre elas...”que saco isso! Não quero ficar aqui! Vou embora!”...e já estava novamente levantando, quando Ana desligou o telefone:
- Ele vai chegar amanhã e queria dizer a ele sobre o pé imobilizado para ele não se assustar com a cadeira de rodas...
- Coitadinho né Ana! Pobre Alberto! Que se dane ele! Estou cansada dessa viagem e quero ir pra minha casa! Boa noite e conversaremos amanhã no Escritório...
Estava quase na porta, quando ouviu a voz grave de Ana num tom de severa autoridade...
- Lívia, volte aqui! Não acabei de falar com você e pelo que sei, você não é mal educada pra me deixar aqui falando sozinha! Não acabamos e você ainda não foi dispensada! Fique tranqüila que suas horas extras serão todas pagas!
Lívia ficou extremamente irritada. Tanto pelo tom autoritário de Ana obrigando-a a ficar, como pelo ciúme ao deparar-se com o cotidiano de Ana e o marido. “Eles não são um casal em crise! É um casal em estado “morno”, daqueles em que a Paixão já foi há algum tempo. Mas quem garante que ainda não se amam? Eles tem um filho, são uma família e isso pesa demais. Estou sobrando nessa!”
Virou-se relutante para Ana, num tom entre o debochado e o irritado:
- Pois não, Doutora Ana. O que mais a Senhora quer de mim?
Ana respirou profundamente, sempre fazia desse jeito quando precisava acalmar-se:
- Eu sei que este lugar não é neutro, nem um pouco. Que você chegou e logo se deparou com minha rotina...empregada, filho, marido...mas eu gostaria que esta noite, pensássemos bem sobre tudo o que se passou e também sobre as pessoas em nossas vidas...
Apesar de saber que Cininha estava no andar de cima com Flavinho, baixou bem o tom de voz e voltou a dizer:
- Amanhã quero conversar com você sobre o que aconteceu e como será entre nós daqui em diante. Pense também na sua vida e me diga o que pretendes...não gosto de joguinhos e acho que você também não...quero apenas honestidade em tudo o que fizermos, seja qual for a decisão...ela terá que ser sempre verdadeira, sem mentiras....não gosto de jogos, mas quando jogo, é limpo! Cartas na mesa!
Lívia mudou o tom de voz e disse também baixinho:
- A única coisa que queria neste instante era te dar um grande beijo na boca de despedida...mas sei que voltamos para o mundo real...o sonho ficou lá trás e agora só o tenho como recordação...não se preocupe, eu sou um pouco impulsiva, por isso fico irritada com certas situações, mas vou cumprir o que prometi lá no chalé....jamais vou colocar você em uma situação difícil perante a sua família intencionalmente...farei o possível para ser formal e apenas profissional.
Já estava saindo, mas voltou e falou próxima a Ana:
- E não seja arrogante comigo! Sei que você não é assim! E posso te provar que faço cair essa máscara em dois segundos...é só o tempo de dar dois passos e alcançar sua boca...
E saiu com um triunfo no olhar...
Ana ficou ali parada, com o coração batendo rápido, já sentindo saudades de Lívia...
“É...voltamos para a vida real e ela se fez notar logo que cheguei...minha amada Lívia, você não vai agüentar...e eu, será que vou?”
Em breve as perguntas começariam a ser respondidas....
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Quando Lívia chegou em casa, a primeira pessoa que encontrou foi Caio, e isso a deixou muito irritada. Não estava preparada para encontrá-lo tão cedo!
- Oi Amorzinho, estava cheio de saudades de você!
- Olá Caio, não esperava encontrá-lo tão cedo aqui...porque não esperou que eu te ligasse antes de vir?
Lívia não conseguia disfarçar a irritação. Olhou de soslaio para Caio e entrou em casa com ele vindo atrás. Encontrou logo sua Mãe na sala e abraçou-a com carinho:
- Olá Mãe...sentiu minha falta?
- Claro querida, seu Pai também. Como foi a viagem? Você vai ficar para o jantar ou vai sair com o Caio?
- Não vou sair hoje! Quero ficar em casa descansando, a viagem foi um pouco cansativa e Caio também irá para casa, não é mesmo Caio?!
- Nossa! Isso é jeito de me receber?! Eu só queria ficar um pouco com você!
Falou Caio mostrando estar magoado. Lúcia, a mãe de Lívia achou melhor retirar-se pra não deixar o moço constrangido e foi para a cozinha preparar o jantar.
Lívia estava muito incomodada com a intromissão de Caio. Não queria ele por perto naquele momento. Precisava de um tempo só, com seus pensamentos, com as novas emoções que a invadiram nos últimos dias. Tentou ponderar:
- Caio, por favor, não quero ser grosseira com você, mas eu preciso ficar sozinha! Amanhã nos falamos ao telefone e se eu estiver melhor, poderemos sair pra conversar um pouco.
- Você já está sendo rude comigo me escorraçando daqui desse jeito! Pôxa, eu vim te dar as boas vindas e sou recebido assim?! Estava louco de vontade de transar com você...
E segurou Lívia pela cintura enfiando a língua em seu ouvido. Lívia o afastou com rispidez e ele perguntou irritado:
- O que houve pra você mudar tanto em apenas três dias?! Conheceu alguém por lá?
Lívia não se controlou mais e alterando a voz disse:
- Nós não estamos mais oficialmente namorando, portanto você não tem o direito de me exigir nem perguntar nada, muito menos de me tocar sem permissão. Estávamos saindo um com o outro por pura acomodação, por não termos outras pessoas conosco. Eu não quero mais isso. Basta! Quer saber...acho até bom que você esteja aqui Caio e ouça bem o que tenho a te dizer...ACABOU!!! Não haverá mais encontros entre nós. Não quero mais! Não tem por quê!
Lívia quase gritava e Caio ficou descontrolado. Segurou-a pelo braço e a sacudiu exigindo mais explicações para o “fora” que estava levando:
- Ora sua vagabunda! Você pensa que sou algum traste pra me jogar fora assim?! Nós estávamos trepando e não era só isso! Como você chega e me diz que não era nada e que só estávamos passando o tempo um com o outro?! Você não presta, Lívia. É cruel, sem coração! Não liga a mínima para o que os outros sentem! Aposto como conheceu alguém lá em Campos do Jordão...foi isso né?!
Lívia percebeu o quanto havia sido dura com Caio...era verdade, mas não precisava ser dita daquela forma...tentou ponderar:
- Caio, solte o meu braço. Você está me machucando! Eu não quis dizer que você não foi nada. Eu gostava de você, mas acabou, não existe mais sentimento! Não posso forçar algo desse jeito. Confesso que sentia atração sexual por você, mas até isso acabou! Desculpe! Vai ser melhor pra nós dois assim. Você é um cara super bonito, interessante, tem um bando de mulheres doidas pra ficar com você, não fique aqui perdendo seu tempo comigo!
Caio soltou o braço de Lívia, mas ainda não estava convencido:
- Me diga, você encontrou alguém nessa maldita viagem não foi?!
Lívia respirou fundo para recompor-se e disse:
- Sim, Caio. Encontrei! Foi a mim mesma que encontrei. Não foi homem nenhum. Foi apenas a mim mesma! Percebi que estava vivendo num vazio e sou muito jovem pra me acomodar a certas situações. Eu quero viver! Seja com alegrias ou com dores! O que importa é viver, é ter emoções. Prefiro a dor ao vazio!
Meias-verdades não são mentiras. Caio desistiu de discutir. Gostava de Lívia e sentia como se tivesse levado um soco no estômago. Tinha que se afastar dela um pouco para pensar melhor no que ela lhe dizia.
- Então o que nós tínhamos era somente um passatempo e que no fundo você vivia num vazio, é isso?
Lívia não respondeu, baixou a cabeça e pediu:
- Desculpe Caio, não quero mais discutir. Preciso ficar só.
Caio andou até a porta e saiu sem olhar para trás. “Ela parecia gostar de mim! Pelo menos quando estávamos na cama! Eu sinto que ela adorava o sexo comigo. O que será que houve? Será que está gostando de outra pessoa? Eu ainda gosto muito dela, não queria perdê-la assim...”
E foi para casa, cabisbaixo, pensando no que tinha acontecido de errado entre ele e Lívia.
Lívia suspirou aliviada quando Caio saiu. “Não queria dar de cara com ele logo na minha chegada! Precisava de um tempo primeiro! Mas por outro lado, ainda bem que aconteceu logo! Seria inevitável mesmo, mais cedo ou mais tarde eu teria que dizer...não iria mais conseguir ir pra cama com ele...não enquanto meu coração estiver assim, tomado por Ana. Disse o que pensava e sentia, só não queria magoá-lo. Ele é um cara legal e não merece descaso!”
Foi para o quarto, deitou-se na cama e ficou as horas seguintes pensando em tudo o que havia acontecido naquele chalé, durante os melhores três dias de sua vida. Não podia imaginar-se longe de Ana a partir de agora... “o que será que ela iria fazer? Provavelmente despachá-la daquele escritório o mais rápido possível. Ela tem medo e com toda razão. Tem muito a perder...família, trabalho, amigos...então seria melhor que eu perdesse o que tenho, só o emprego, pois assim tudo poderia voltar ao normal...será? Não, mentira!!! Nada jamais será como antes, nem para ela, nem para mim. Podemos até fingir que sim, mas viveremos numa mentira...”
Na hora do jantar, estava a família reunida, Lívia e os Pais, sentados à mesa, conversando sobre como havia sido a viagem e o fato de Lívia ter ganhado sua primeira comissão pelo trabalho como Assistente Jurídica. A conversa fluía muito bem e de repente Dr. Olavo lembrou de algo:
- Minha filha, diga a Dra. Ana que quero vê-la o mais rápido possível! Diga para ela ligar pra minha secretária e marcar uma hora assim que puder.
Lívia ficou intrigada:
- Porque Papai? Tem algo errado com Ana? Será que pode acontecer algo pior que a cegueira que ela já tem?
Dr. Olavo sorriu para filha e disse:
- Pode sim, ela pode ter ulcerações e lesões na córnea que venham a se agravar e a façam perder as últimas chances que tem de voltar um dia a enxergar, mesmo que parcialmente de uma das vistas. Por isso ela vem periodicamente ao meu consultório. Mas não será uma visita de rotina. Tenho novidades no tratamento dela e gostaria de expor o que penso para a teimosa da Dra. Ana.
Lívia estava muito curiosa sobre o assunto:
- Teimosa porque?
- Porque ela se recusa e ter esperanças de um dia poder voltar a enxergar...é o medo da decepção, afinal ela é bem esclarecida sobre a doença dela e sabe que no caso de um transplante ser possível, ainda assim, o índice de rejeição é grande! A Dra. Ana parece ter horror ao fracasso, então prefere nem tentar.
Lívia sentiu que essa constatação poderia ser verdadeira em todos os aspectos da vida de Ana e sentiu um nó formar-se na garganta. Queria saber mais:
- Mas Pai, me fale mais sobre isso...existe uma esperança de transplante para a Ana e ela poder voltar a enxergar?
- Não vou discutir isso com você agora, Lívia. A primeira que tem que saber é Ana. Ela é a maior interessada. Além do mais os novos medicamentos são apenas experimentais ainda e acho difícil Ana querer submeter-se a eles. Ela é muito reticente a novos tratamentos, parece até que prefere continuar assim. Quero que ela vá me ver para que eu explique todos os detalhes para ela. Quem sabe consigo convencê-la ao menos de entrar na fila do transplante, que leva em torno de um ano.
- Mas Pai...
Lívia não se conformava em não saber mais sobre o que poderia acontecer à Ana. Tudo que se referia a ela lhe era de extrema importância. Mas parecia que Dr. Olavo levava à risca seu código de ética profissional:
- Querida, não insista! Tenho que falar com Ana primeiro, se depois ela achar que deve, te conta mais tarde.
Lívia não insistiu mais, sabia que o Pai era muito sério com sua profissão e seus clientes e não faria nada que achasse ser contra os princípios éticos da sua classe.
Lívia conversou com os Pais durante o jantar sobre a viagem, como havia gostado da cidade e sobre a Audiência, onde teve sua primeira comissão. Contou a eles sobre o entrevero entre ela e Caio e que dali em diante eles não estariam mais juntos. Após o bate-papo, despediu-se e foi para o quarto. Queria muito estar só e pensar um pouco.
O dia seguinte seria o primeiro em que elas encarariam a realidade depois de tudo o que havia acontecido de mágico naquelas montanhas. Não tinha como fugir daquilo e o único dilema agora seria como se portar diante de dois fatos: o primeiro, que amava Ana de maneira inconteste; o segundo, como conviver com esse sentimento diariamente ao lado de Ana.
Talvez essa fosse a pior parte, ter que vê-la, estar com ela todos os dias, sem poder realizar este Amor. Não seria nada fácil e Lívia tentava preparar-se para as dores que viriam desse sufocamento...seria como um garrote no membro amputado...doloroso, mas necessário para sobrevivência. Não poderia iludir-se e achar que Ana passaria por cima de sua vida, de sua família, para ficar com Lívia a qualquer preço. Ela sabia que Ana era racional demais pra se permitir uma loucura como essa. Além disso, havia Flavinho! Aquele menino adorável que sofreria por demais diante de qualquer ato insano de sua Mãe.
Lívia também notara que Ana não tinha um relacionamento completamente falido com o marido, como chegara a pensar...eles tinham uma vida a dois comum! “Quem garante que Ana não o ame mais? É bem provável que seja eu a grande ilusão dela! Só em pensar os dois fazendo Amor, fico louca de ciúmes! Tenho vontade de morrer!”
Lívia passou muito tempo antes de pegar no sono, se torturando com imagens de Ana e o marido, da vida que tinham em comum, do mundo deles...entremeava os pensamentos que a afligiam, com as lembranças dos dias de Paixão entre as duas. “Também não é possível que tudo o que vivemos lá não signifique nada pra ela. Ela foi tão inteira comigo, foi tudo tão perfeito entre nós, que isso não pode ser uma coisa comum! Deve ter ficado algo nela também, ela deve estar balançada, tem que me querer como a quero...pelo menos fisicamente!”
E dormiu alta madrugada, um sono inquieto, entremeado de pequenos sonhos ruins.

Ana também não dormia direito...ficara brincando com Flavinho até dar sono no pequeno, quando foi para o quarto telefonar para a Mãe. Contou a ela sobre a viagem, omitindo os detalhes com Lívia, é claro. Conversou com o Pai e desligou o telefone para recolher-se. Não conseguia pregar os olhos. Todas aquelas imagens que sua mente formava sobre o acontecido no chalé, lhes vinham à cabeça em profusão. Imaginava como seria sua vida dali em diante. “ O que sinto por Lívia é único! Achava que um dia havia amado Alberto e que agora era normal a relação ficar assim desse jeito, sem graça! Mas tenho a impressão que nunca amei Alberto de verdade. Se fosse Lívia no lugar dele, acho que nunca a deixaria de amar. Mesmo que a Paixão arrefecesse, o Amor ainda estaria lá, intocável, intenso, não importando o quanto de tempo já passou. E o que vou fazer agora? Não tenho como abandonar minha família. Lívia é apenas uma menina, quem garante que o que ela sente não seja apenas uma empolgação natural da idade, uma novidade, uma curiosidade....tenho medo, muito medo! Posso perder a guarda de meu filho...o mundo é tão preconceituoso...e se for apenas uma empolgação, ela irá me “chutar” logo que alguém mais interessante apareça...ela se mostrou tão apaixonada, foi tudo tão intenso, que a sensação era de que sentíamos igual, o mesmo Amor, com a mesma intensidade, mas como saber?! E agora? Como iremos conviver diariamente sem que essa Paixão aflore? Tentando esconder nosso desejo, será que conseguiremos? Será que queremos esconder?”
Ana passou horas revirando-se no travesseiro e deu Graças a Deus que Alberto não estava ao seu lado naquela noite pra fazer-lhe perguntas. Precisava de um tempo para recompor-se e colocar as idéias em ordem. Demorou muito a pegar no sono e sabia que estaria um “caco” no dia seguinte. O sono veio acompanhado de sonhos agitados.

No dia seguinte, às 9:00 horas em ponto, Lívia tocou a campainha da porta de Ana e Cininha veio abri-la, falando alto para Ana:
-Dra. Ana, a Dona Lívia já chegou!
Lá de dentro da copa, Ana respondeu:
- Mande-a entrar na garagem e preparar o carro, já estou indo pra lá.
Flavinho chegou na garagem empurrando a cadeira da Mãe:
- Oi tia Lívia! Cuidado com o pé da mamãe! Ela disse que quer se livrar desse negócio logo!
Lívia sorriu e afagou os cabelos do menino:
- Pode deixar, Bonitão! Vou tomar bastante cuidado, pois quero voltar logo à Campos do Jordão para levar de volta esta cadeira.
Aproximou-se de Ana e a fez apoiar-se em seus ombros enquanto a tirava da cadeira para colocá-la no carro. Ana sentiu o perfume tão característico de Lívia e teve muita vontade de beijá-la naquele momento. Mas sabia que dali em diante, todos esses desejos impróprios deveriam ser imediatamente abafados. Não havia mais espaço para loucuras como as que se permitiram lá no chalé.
- Bom dia Doutora.
Disse Lívia, bem próxima a Ana, que podia sentir seu hálito fresco bem junto a sua boca.
- Bom dia.
Ana foi seca e manteve-se calada até chegarem ao escritório. Lívia não se atreveu a quebrar o silêncio imposto por Ana. Sentia que era melhor desse jeito.
Ao chegarem, Ana teve que contar a todos como luxou o pé e que teria que se locomover com aquela cadeira por duas semanas ainda. Satisfeitas as curiosidades, pediu que Lívia a levasse até sua sala. Começaram a trabalhar e Ana disfarçava a vontade de tocar em Lívia, falando sem parar sobre o processo que teriam audiência naquele dia. Lívia ouvia, mas toda a hora tinha sua atenção desviada pelos gestos que Ana fazia, seu jeito de apertar os lábios quando não estava satisfeita com algo, seu modo de franzir o cenho de preocupação, o desenho que as mãos de dedos longos faziam no ar ao gesticular...Lívia era vidrada naquela mulher e o menor dos seus movimentos era meticulosamente apreciado e sorvido em pequenos goles, saboreado como se faz com vinhos de boa qualidade.
De repente Ana percebeu que falava e Lívia não lhe dava a devida atenção para o caso:
- Lívia, você entendeu o que estou dizendo? Estou te perguntando o que você acha de juntarmos esses documentos ao processo e você fica aí, parada, pensando sabe-se lá em que!!!
Lívia voltou a si e percebeu sua gafe, mas estava um pouco estressada pela noite mal dormida e rebateu com ironia:
- Não sabe mesmo no que estou pensando Ana? Aliás, em QUEM estou pensando?
Será que você não faz a mínima idéia?
Ana ficou desconcertada e nervosa pela abordagem tão direta de Lívia. Não queria começar aquela conversa desse jeito, tão de sobressalto. Precisava de mais tempo.
- Lívia, eu não gostaria que começássemos com esse assunto agora. Podemos deixar pra depois da audiência?
- Podemos fazer tudo o que você quiser, Dra. Ana. Terá que ser assim mesmo, do seu jeito!
- Eu gostaria que você fosse um pouco mais compreensiva e me ajudasse com esse trabalho, depois conversaremos com mais calma.
Mas a própria Ana estava bastante nervosa com aquela situação.
- Sem problemas. Não vou atrapalhar de jeito nenhum. Onde paramos?
E continuaram a estudar a melhor estratégia até chegarem ao Fórum. A Audiência começou a Ana não foi nada bem. A noite mal dormida se fazia sentir na falta de concentração e agilidade de raciocínio. Teve dificuldades em rebater certas considerações e conseguiu apenas arrancar, graças a habilidade do outro causídico, um acordo menos que razoável para o seu cliente, que obviamente não ficou nada satisfeito.
Estava visivelmente irritada consigo mesma e pediu que Lívia a levasse para casa direto. Não queria mais voltar ao escritório naquele dia. Ligou para Márcia e avisou do fiasco e que qualquer problema ligassem para ela.
Chegaram na casa de Ana por volta das 15:00 horas, e ainda não havia ninguém em casa. Cininha tinha saído para sua aula de alfabetização de adultos e após iria buscar Flavinho na escola às 17:00 h. . Não foi um ato pensado de Ana levar Lívia para sua casa naquele momento, em que não havia ninguém por lá. Mas percebeu que era bastante conveniente que assim fosse, para que pudessem conversar e tentar pôr em ordem a confusão de sentimentos que as estava dominando, não permitindo sequer que trabalhassem direito.
Lívia levou Ana para dentro da casa e quando chegaram na sala, Ana pediu:
- Eu não sei você, mas eu estou com fome! Tem pão, frios e suco na geladeira, será que você poderia preparar um sanduíche para nós duas?
- Já volto!
Lívia voltou da cozinha trazendo uma bandeja com sanduíches, suco e bolo que encontrou. Ana estava sentada no confortável sofá da sala de estar e Lívia pôs a bandeja na mesa de centro em frente. Sentou-se ao lado dela, pegou na mão de Ana e a levou pra “ver” o que havia na bandeja. Ambas começaram a comer em silêncio e foi Ana quem o quebrou:
- Eu tinha me esquecido que não haveria ninguém em casa a essa hora. Não lembrei que Cininha começou suas aulas no Centro Cívico. Mas acho que foi bem providencial estarmos sós aqui. Eu gostaria que essa conversa fosse em um lugar neutro, mas acho que precisamos falar logo, sem demora, porque senão nossa convivência vai se tornar muito tensa e difícil.
Ana demonstrava essa tensão em sua voz e também nas mãos, que brincavam com o guardanapo sem parar. Lívia apenas escutava, querendo que ela abordasse diretamente logo o assunto:
- Primeiro eu tenho que te dizer que, independente do que seja daqui pra frente, esses três dias que ficamos em Campos do Jordão foram os melhores que eu já vivi, os mais intensos em matéria de emoção e a realização do que eu acreditava só ter em sonhos...
Tomou fôlego e continuou:
- Você foi a melhor coisa que me aconteceu na vida além do nascimento do meu filho...e tenho a sensação que continuará sendo a melhor coisa sempre...a partir do momento que me dei conta do que sinto por você, não escondi esse sentimento nem um minuto...mas não tenho como renegar a minha vida, minha família, meu filho, minha carreira...não sei o que fazer desse Amor!!! Não podemos vivê-lo com a vida que tenho! Sou casada, tenho um marido e Alberto não merece que eu faça isso com ele! E por outro lado, toda vez que eu abafar esse sentimento, que eu sufocar meu desejo por você, vou morrer um pouquinho a cada dia, vou secar por dentro, até virar um nada! Uma sombra do que eu poderia ter sido!
Ana falava exprimindo em sua voz muita dor. Apertava o peito por sobre a blusa que usava e seu rosto demonstrava o sofrimento que aquele dilema lhe causava. Lívia olhava pra Ana e tinha vontade de aninhá-la em seus braços e cobri-la de beijos para afastar dela aquela nuvem negra de mágoa que lhe cobria os olhos cegos e úmidos de lágrimas. Mas conteve-se, sabia que tinham que ter aquela conversa, tinham que esclarecer como conviveriam dali em diante com aquele sentimento tão forte e tão inconveniente na vida de Ana, muito mais que na dela. Lívia segurou a Mão de Ana e disse:
- Eu tenho poucas certezas na minha vida, Ana. Mas uma delas, martela insistentemente em meu peito e mente há três dias. O Amor que eu sinto por você! Não me pergunte como nem porque te amo. Apenas amo e pronto! Quero estar ao seu lado e o que me dá mais medo é que você não queira mais que eu fique junto de você! Eu sei que seria loucura largar todas as coisas que construiu na vida para viver esse Amor comigo, e acho até que você sofreria tanto com isso depois, que poderia acabar me odiando ao invés de me amar...
Ana apertou forte a mão de Lívia e disse:
- Não diga bobagens...não poderia odiá-la nunca...impossível...
- Mas largar sua família, pôr em risco sua carreira, brigar com as pessoas que você gosta, expor-se a comentários maldosos e jocosos dos outros, iriam lhe trazer um sofrimento tão grande, que você acabaria por perguntar se teria valido à pena arriscar tudo por esse Amor...
Ana estava impressionada com a maturidade de Lívia. Logo ela que normalmente era tão impulsiva e agora estava sendo mais racional que um doutor em matemática!
- Engraçado! Você está dizendo tudo o que EU deveria dizer! Parece que você leu minha mente! Sim, confesso que foi exatamente isso que pensei! Você é tão jovem! Tem tanto ainda o que viver, tantas pessoas a quem amar...não seria justo metê-la numa situação como essas...uma mulher mais velha, casada, com filho...eu seria um entrave para sua vida...você tem tanto ainda para experimentar!
Lívia não concordava com Ana, não era esse o ponto que ela queria chegar! Deu uma risadinha sem graça e falou:
- Porque eu tenho que ter experiências? Aposto como em alguns aspectos tenho muito mais experiência que você Ana...eu já namorei vários homens, já tive transas a três onde outras mulheres participaram, já beijei uma infinidade de bocas e nem por isso fui feliz! Já experimentei drogas, já morei sozinha, viajei metade da Europa e Estados Unidos, e nem por isso fui feliz! O grande obstáculo não é o fato de eu ser jovem e não querer mais experiência alguma na minha vida que não seja com você. O problema é a sua vida! É o que você carrega!
Lívia segurou as duas mãos de Ana e as beijou com paixão:
- Por mim eu mudaria da minha casa hoje mesmo para onde você quisesse ir viver comigo. Seria um grande sonho virando realidade! Mas você não poderia deixar a sua vida...ela é completa! Você acha que Alberto aceitaria algo desse tipo sem um bom escândalo nos tribunais? Será que seus clientes continuariam a procurá-la depois disso? Seus amigos ainda continuariam ali? E a família a apoiaria? Seu filho entenderia essa situação tão delicada entre nós? Ana, eu posso estar perdendo você nesse momento, ao fazer você ver todos esses fatos tão claramente...mas são fatos! E nós não podemos ignorá-los! É a mais pura verdade e eu fiquei quase toda a noite em claro pensando nisso! E aposto que você também. Tenho certeza que você concorda comigo!
Ana chorava baixinho, não conseguia conter as lágrimas que teimavam em rolar por aquela face morena e delicada. Pensava que Lívia lhe daria um monte de motivos para ficarem juntas, para superarem os obstáculos e que diria a ela exatamente tudo aquilo que ela estava lhe dizendo. Os papéis haviam se invertido. Ana achava que teria que convencer Lívia de todos os empecilhos que havia entre elas, mas era Lívia quem lhe mostrava isso. Não sabia dizer o por quê, mas isso a magoava! Ela pensou que Lívia fosse querer lutar contra isso, fosse querer convencê-la a superar as dificuldades juntas, mas não! Ela estava ali, na sua frente, mostrando da maneira mais crua possível a realidade da vida de Ana.
Esta disse com mágoa na voz:
- Acho que você pensou em todos os obstáculos que enfrentaríamos, caso decidíssemos por viver esta insanidade! Não me deixou o que falar! Disse tudo o que precisávamos ouvir, não é mesmo?! Você está coberta de razão, Lívia! E depois sou eu quem sou racional demais, hein?!
Retirou bruscamente suas mãos dentre as de Lívia e prosseguiu:
- Pelo que você disse ainda há pouco, tem muita experiência de vida pra sua idade, e acho que essa multiplicidade de aventuras, não deve ser interrompida por conta de um romance absurdo. Alberto foi meu segundo namorado e primeiro e único homem da minha vida. Talvez eu que não tenha muita experiência para comparar e por isso esteja até confundindo sentimentos, achando que estou apaixonada por você só porque tivemos uma boa cama!
Lívia não entendia a súbita reação de raiva de Ana, tampouco aquelas últimas palavras que a machucavam tanto:
- Não tô entendendo, Ana! Estou apenas me antecipando a você e dizendo aquilo que sei que você me diria. É a verdade! São os fatos da sua vida e não podemos fugir deles! Porque faz isso então?! Porque age como se eu fosse culpada de tudo! Você está querendo pôr a culpa na minha pouca idade, que eu não devo atrapalhar a minha vida para ficar com você e na verdade o grande obstáculo é a sua vida! São os seus problemas e não os meus! Eu sou solteira, livre, faço o que quiser da minha vida! Durmo com quem quero, meus Pais me respeitam e mesmo que não gostem muito, não iriam me enjeitar porque estou com uma mulher e não um homem! Me responda uma coisa...você ficaria comigo? Você deixaria sua casa e viria ficar comigo?
Ana levantou-se e fez um longo silêncio. Sabia a resposta. Jamais largaria seu filho com o Pai; não abandonaria Alberto sem uma preparação, sem muita conversa; não arriscaria um escândalo naquele momento que pudesse prejudicar seu trabalho; ainda tinha o desgosto que daria aos Pais, pessoas simples, de bons sentimentos, mas que Ana não sabia como reagiriam a uma situação como aquela.
Ana sabia a resposta, mas essa era a resposta da razão. Ana também tinha consciência da resposta que gritava em seu coração. Se fosse guiada apenas pelos sentimentos, não pensaria duas vezes em pegar Flavinho e ir morar com Lívia num hotel até que pudessem montar uma casa. Era essa sua vontade mais íntima, mais latente...ficar com Lívia sempre, todo o tempo...mas sabia ser algo inviável naquele momento. E ficava muito chateada em saber que Lívia não lutaria por aquele Amor. “Ela parece já ter aceito os entraves da minha vida como insuperáveis e não está demonstrando a menor vontade de tentar lutar contra eles. Ela não me ama! Fui mais uma experiência na vida dela!” Virou-se para Lívia e disse com amargura na voz:
- Você sabe que eu não deixaria meu filho aqui! Não, eu não ficaria com você de uma maneira tão leviana!
Ana sentou-se na cadeira de rodas e afastou-se do local onde estava Lívia, indo para o outro canto da sala um pouco mais distante. Precisava estar um pouco longe daquele perfume, daquela presença que mexia tão intensamente com ela....continuou...
-Acho que o fato de estarmos sozinhas naquele lugar tão mágico, nos aproximou e contribuiu muito para o encantamento que sentimos uma pela outra. Mas ele parece estar se “desconstruindo” com tanta rapidez quanto fez surgir esses sentimentos confusos em nós. Penso que o melhor a fazer agora é ficarmos uns dias sem nos vermos, para pensarmos melhor sobre tudo isso...não me ligue até segunda-feira e depois das 10:00 horas. Preciso colocar a cabeça em ordem e sua presença me confunde muito. Acho que você foi bem racional e eu uma tola em esperar algo diferente de você!
Lívia levantou-se e foi em direção a Ana, precisava estar perto dela pra dizer que não era nada daquilo, que a amava...mas ela a fez estancar com seu comando autoritário:
- Não se aproxime mais de mim, Lívia! Eu não quero que você chegue tão perto! Já disse que estamos apenas nos confundindo. Temos que ser racionais como você acabou de ser e o primeiro passo é nos afastarmos fisicamente o máximo possível!
- Mas Ana, não entendo a sua reação...o que você esperava de mim exatamente? Que eu contasse pra todos o que aconteceu? Que eu falasse com seu marido que estou apaixonada e quero ficar com você? Que colocasse você contra a parede e exigisse uma decisão sua? Foram três dias inesquecíveis, mas apenas três dias! Como medir uma vida, como jogar fora tudo, por três dias? Por mais que eu quisesse isso de você, sei que não me daria! Seria insano demais! E você não é assim!
- É você tem razão! Eu não sou assim! E se por acaso eu fosse acometida de uma loucura e agisse desse jeito, acho que você não mereceria todo esse sacrifício. Afinal não demonstrou nenhum esforço em me querer apesar das dificuldades. Deve ser uma situação muito cômoda pra você né Lívia?! Trepou com a Patroa e sorte sua ela ser casada, pois não criará problemas quando não a quiser mais!
Ana estava descontrolada pela mágoa do que pensava ser descaso de Lívia. E esta não entendia e tentava imaginar como deveria ter agido...
- Me diga Ana, como você quer que eu aja? Diga o que quer e eu farei! Faço qualquer coisa pra que você não me afaste! Quero continuar ao seu lado! Qualquer que seja o preço...
Ana deu um sorriso sarcástico:
- Muito engraçado, Lívia! Não se preocupe com seu emprego! Não costumo misturar as coisas, apesar dessa ser a primeira vez! Você continuará no escritório, só não sei se será como minha Assistente. Posso deixá-la como Assistente dos outros sócios enquanto você não se forma e depois fica como advogada trainée...só o tempo dirá o melhor a ser feito.
Lívia estava inconformada. Fora totalmente mal interpretada em suas intenções e Ana estava querendo afastá-la. Não suportaria ficar sem estar ao lado dela. Mas só em saber que ela não a mandaria embora do escritório já era um grande conforto. O pior mesmo seria ficar longe dela, lá pelo menos a veria todos os dias. Mas ainda havia tempo de tentar fazer Ana continuar com ela como Assistente. Era só não querer se impor na vida dela a força. Teria que se paciente e controlar seus impulsos. Daria a Ana o tempo que ela achasse necessário para resolver suas emoções e não iria impor sua presença de maneira nenhuma, pois isso só a afastaria ainda mais. “Eu a amo tanto que prefiro tê-la nos meus sonhos, mas próxima de mim, que não vê-la mais. Será feito como ela quiser!” Lívia falou com a voz carregada de melancolia:
-Desculpe se te decepcionei! Acho que quis facilitar as coisas pra você e acabei estragando tudo. Como já disse antes, jamais atrapalharia sua vida ou faria algo que pudesse prejudicá-la.. Eu só peço que pense bem durante o final de semana, e não me mande embora do escritório. Acho que podemos resolver isso deixando o tempo passar, sem falarmos mais nesse assunto. Prometo que serei extremamente profissional e evitarei conversas sobre nossas vidas pessoais...quero continuar sendo sua luz, Ana...pelo menos no que diz respeito ao trabalho.
Lívia segurou as lágrimas enquanto falava e tentou não demonstrar o quanto estava destroçada por dentro. Ana não olhava em direção a Lívia, mantinha a cabeça baixa, mexendo com as mãos sem parar, como sempre fazia quando ficava nervosa...parecia nem estar ouvindo Lívia. Mas a verdade é que cada palavra entrava nela como uma agulha fina, espetando e fazendo doer agudamente seu peito. Sentiu uma vontade incontrolável de abraçar Lívia e dizer que se danasse todo mundo, que o que mais queria era estar com ela, era amá-la sem medo de mostrar ao mundo, era se entregar aquele Amor louco, pois só assim poderia ser feliz de verdade! Mas pensou em seu filho e no medo que tinha de ter sido apenas mais uma aventura na vida de Lívia, somente mais uma experiência diferente. “Ela diz que também me ama, que eu não senti sozinha, mas como ter certeza se ela é tão volúvel?! Logo vai estar com outro cara ao lado, tendo com ela todo aquele prazer que ela me deu! Droga! Não vou conseguir conviver com isso! Vou odiar saber que ela tem alguém! Eu queria ela só pra mim! Eu acho que largaria tudo por você sim, Lívia! Poderia não ser agora, mas ao longo do tempo, inevitavelmente...”
Nesse momento seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de chave abrindo a porta e Alberto entrou cumprimentando a mulher:
- Olá meu Amor! Sentiu minha falta? Estava com saudades de você!
Passou por Lívia dando um pequeno aceno de cabeça, foi até onde estava Ana e deu-lhe um beijo na boca. Lívia virou o rosto e saiu apressada da casa de Ana. “Ver essa idiota beijando a Ana é demais! Eu queria socar sua boca e quebrar seus dentes pra que ele não a beijasse tão cedo! Eu tenho vontade de quebrar as mãos dele só em saber que elas tocam a minha Ana! Eu tenho que sumir daqui! Quero sumir do mundo!!!”
Saiu correndo e foi na direção do Rio que corta a cidade. Precisava ver a água, só o Rio poderia acalmá-la um pouco!
Enquanto isso, na casa de Ana:
- Lívia você está aí? Já foi? Ela já se foi, Alberto?
Ana estava com a voz angustiada e o marido quis saber:
- Ela já foi! Saiu em disparada daqui, que nem uma louca! O que aconteceu? Vocês estavam brigando?
Ana recompôs-se:
- Não, estávamos apenas discutindo sobre uma causa e não pensávamos da mesma maneira. É só!
- Era só o que faltava! A estagiária, que nem se formou ainda, discordando de uma advogada renomada como você! Ela não se enxerga mesmo, hein?! Bem que eu acho essa garota muito arrogante! Dá um “pé na bunda” dela! Aposto como vai ter fila de gente querendo o lugar dela, e melhores ainda que essa metida!
As palavras de Alberto irritavam ainda mais Ana e ela cortou a conversa de maneira brusca:
- Isso não é assunto seu, Alberto!
-Calma, só quero abrir seus olhos com relação a essa garota! Não se pode falar nada dela que você defende com garras afiadas! Acho que você deposita confiança demais nela!
- Eu não vou discutir isso com você! Assuntos do meu Escritório eu resolvo por lá mesmo! Ah, tem um detalhe novo. Como não posso subir escada, estou dormindo no quarto aqui de baixo. Eu preferia que você ficasse lá em cima mesmo e não viesse para cá, pois meu pé apesar de estar imobilizado, ainda dói e tenho medo que com seu mau dormir, você me machuque.
Alberto ficou intrigado com o mau humor da mulher e o modo como ela o tratava depois de quatro dias fora:
- Isso quer dizer que não teremos sexo até você tirar esta porcaria?
- Isso quer dizer que não teremos sexo por enquanto, pois estou com dores ainda! Quando estiver melhor eu falo! Não esperava que você chegasse tão cedo, está com fome?
Alberto não gostou nem um pouco da atitude da mulher em relação a ele. Parecia que tinha ficado irritada com sua volta. “ Pô, não fiquei mais em São Paulo porque acabei cedo com meus compromissos e achei melhor vir passar o final de semana em casa a cair na esbórnia na noite Paulistana. Fiquei com medo das tentações! E quando chego em casa, encontro uma mulher com T.P.M., me tratando mal e ainda por cima sem sexo! Era só o que faltava! Melhor se tivesse ficado o fim de semana por lá. Dava uma desculpa qualquer e podia até ter tirado uma casquinha daquela secretária gostosa do Diretor de Marketing. Ela me deu muito mole! Acho que fiz um mau negócio!”
Comeu e levou Ana até o quarto, pois esta disse ter voltado mais cedo pra casa por estar com dor no pé machucado e na cabeça e queria muito descansar. Sozinha!
Alberto acatou seu pedido e foi para o quarto tomar um banho e descansar também. Estava cansado da viagem e a pequena discussão com Ana o deixava ainda mais estressado. “Daqui a pouco chegaria também o Flavinho e aí é que meu sossego vai todo embora!”
Eram três vidas, cada qual com seus próprios dilemas pessoais. Entrelaçavam-se e se distanciavam na mesma proporção...as amarras eram evidentes, um casal com laços fortes de convivência e família. O outro, frágil, pequeno, escuso, cuja ligação era apenas a do sentimento profundo, nada mais os unia além desse sentimento, que nem mesmo entendiam. O que tornava esse triângulo peculiar era que o vértice principal era uma mulher e os outros dois vértices eram um homem e outra mulher! Estava armada a confusão!

Capítulo 15: A FUGA...

[13/08/10]

Lívia nem se deu conta do tempo que ficou ali, parada na frente do Rio, só olhando o curso da água. Não entendia a reação negativa de Ana à sua antecipação de tudo aquilo que ela ia dizer-lhe. Era apenas uma constatação e o modo como Ana ficou aborrecida, deixava Lívia intrigada. “O que será que se passa na cabeça dessa mulher? Que louca! Parecia que ela esperava que eu exigisse uma posição definida dela sobre a gente! Que eu a fizesse escolher entre mim e a família dela! Seria um absurdo! O pior foi aquele babaca ter chegado tão de repente! Me pegou de surpresa e eu saí correndo de lá que nem uma idiota!”
Lívia se sentia péssima em mais uma vez ter presenciado Ana com o marido. Uma coisa era saber que ela era casada, outra era ver esse casamento funcionar no dia a dia. Não suportava ver Alberto dando aquele beijo de “estalinho” na mulher, tão comum entre os casais, mas que tornava-se asqueroso aos olhos de Lívia. O modo como ele falava com ela, a intimidade dos dois, era por demais irritante para Lívia. “Acho que não vou suportar ver tudo isso de tão perto. Talvez seja melhor que Ana me afaste mesmo. Mas vou sofrer demais! Quero estar junto dela, mesmo que o preço seja alto demais! Vou pagar pra ver se agüento!”
Do outro lado da cidade, Ana também revirava-se sem conseguir relaxar. “Ela saiu em disparada quando viu Alberto. Será que foi medo dele ou dela mesma? Eu queria tanto que ela me dissesse um monte de coisas diferentes do que ela me disse! Tudo aquilo já estava em minha mente, era eu quem deveria dizer e não ela! Dela eu queria a Paixão impensada, a impulsividade...queria ter ouvido que ela me queria acima de tudo...talvez eu tivesse feito uma loucura se ela assim quisesse!”
Estranha a mente humana...os sentimentos então, são na maioria das vezes por demais inexplicáveis...como alguém poderia adivinhar o que se passaria na mente e no coração daquelas mulheres?!
Lívia teve uma péssima noite, havia tido um sono muito agitado e acordou por várias vezes durante a noite. O mau humor acordou com Lívia, principalmente ao lembrar-se que Ana não queria que ela ligasse até segunda-feira. Não tinha vontade de fazer nada naquele dia, só pensava em Ana e em como ela estaria. “Será que está dormindo ainda? Será que aquele imbecil está tocando nela? Vou passar o dia andando de um lado para o outro de sua rua, só pra ver se a encontro “por acaso”. Não, ela não irá gostar nada disso. É melhor eu respeitar a vontade dela e não aparecer até segunda. Quem sabe ela também sente a minha falta?!”
E decidiu arrumar algo pra fazer durante o final de semana que a fizesse esquecer, como se isso fosse possível, daquela mulher que era a dona dos seus pensamentos.
Leu bastante, passou horas na frente do computador, pesquisou, bateu papo nos chats, conversou com a família até entediá-los com seus elogios sobre Ana. Recusou atender aos telefonemas de Caio. Ainda não estava preparada para um novo confronto ou para as mesmas explicações. Viu vários filmes em DVD, muita TV também e ouviu uma infinidade de músicas que sempre a faziam lembrar de Ana...do que ambas viveram...parecia que todas as músicas eram para elas! E assim, o fim de semana finalmente passou!
No Domingo à noite sentiu muita vontade de ligar para Ana, usando a desculpa de saber a que horas deveria estar na casa dela para pegá-la. Por diversas vezes chegou a pegar no fone, mas desistiu quando lembrou que Ana pediu que só a contatasse na segunda-feira. Então assim faria!
Na segunda-feira, Lívia acordou com bastante disposição de ir para o trabalho. Queria tanto encontrar logo Ana e saber o que havia decidido com relação a ela no trabalho. “Será que continuaria como sua Assistente ou ela a colocaria com os outros sócios?” Essa possibilidade a deixava muito triste, mas ainda assim era melhor que sair do escritório. Resolveu não ligar para a casa de Ana. Costumavam sair quase sempre no mesmo horário pela manhã, então decidiu ir direto para lá, ao invés de ligar à toa. “Queria ver logo Ana e não perder tempo ao telefone!”
Tocou a campainha e esperou alguém vir. Ninguém apareceu! Tocou novamente, e um minuto depois, outra vez! “ Não é possível! Tem sempre alguém em casa! Mesmo quando Ana e Alberto saem, a Cininha ou a sobrinha dela que a substitui de vez em quando, costumam ficar em casa arrumando as coisas e cuidando do Flavinho. “Onde será que foram? Talvez tenham ido dar uma volta com o pequeno Flávio!”
Mas continuou ali, ainda tentando ver se alguém podia ouvi-la e por milagre abrir a porta para que pudesse encontrar e ver Ana. Mas ninguém apareceu por quase 10 minutos de espera. Lívia não sabia explicar, mas estava muitíssimo incomodada com a ausência de Ana. “Ainda por cima sem me avisar!
Já tinha se virado e estava indo embora, quando a vizinha da casa ao lado avisou:
- Eles não estão! Saíram ontem à noite e estavam levando algumas malas! Parece que foram viajar e pra um lugar meio longe. Parecia até que estavam indo pra Europa!”
O tom de mexerico da vizinha irritou muito Lívia, mas o pior de tudo era saber que Ana havia viajado sem ao menos lhe dar um telefonema pra dizer-lhe isso. “Viajou?! Como?! Pra onde?! Será que foi com Alberto?! E o Flavinho?!” – As perguntas pululavam na mente de Lívia, todas sem resposta. Decidiu ir até a Escolinha de Flávio para saber se o menino havia ido. Lá chegando, descobriu que Ana havia avisado à Diretora, que o menino ficaria alguns dias sem ir à Escola, pois viajariam por um tempo ainda indeterminado.
Lívia tentou arrancar da Diretora algumas respostas para as suas infindáveis perguntas sobre o paradeiro de Ana, mas foi em vão. A mulher sabia tanto quanto ela.
Lembrou, então, que no Escritório alguém deveria saber, afinal Ana não viajaria sem deixar recomendações aos sócios. Dirigiu-se logo para o trabalho, mas quando lá chegou, soube que todos estavam no mesmo barco. Ninguém sabia para onde tinha ido Ana!
Márcia aproximou-se de Lívia e perguntou em tom confidencial:
- Estranho essa viagem repentina de Ana. E o pior de tudo foi avisar a todos em cima da hora. E pelo visto, não avisou você de nada! Logo você que é sua Assistente pessoal! Eu achei que você soubesse de alguma coisa pra me dizer, mas vejo que vou continuar no mistério até Ana voltar.
Lívia estava tão confusa com tudo o que estava acontecendo em sua volta que não conseguia avaliar o que aquela ausência estava significando pra ela. Às vezes sentia raiva, outras preocupação, mas o pior sentimento era o de impotência diante do que Ana tinha feito. “Ela sumiu! Sumiu pra não me ver! Pra não encarar a realidade tão de frente!”
- Mas pelo menos ela falou pra alguém quanto tempo pretende ficar fora?
Márcia perguntou dirigindo-se a todos no Escritório. Silêncio total! Ela então virou-se para Lívia, fez um muxoxo e disse:
- Bem, Lívia. Já que não temos o que fazer com relação a isso, vamos ao que interessa! Sei que Ana te põe a par de tudo o que se passa nesse Escritório e teremos algumas audiências em breve, em processos que estão com vocês. O que preciso é que você me mostre em que pé estão as coisas. Ah, e tem um detalhe...comece a se preparar para fazer audiência, porque sem a Ana aí, nem sempre eu vou poder estar com você e a Denise e o Fábio estão às voltas com processos enrolados e não vão poder te dar atenção. Você acha que está preparada pra isso?
Lívia mal ouvia o que Márcia estava dizendo e disse sem discernir direito o que tinha escutado:
- Acho que sim. Vou fazer o meu melhor. Agora o que faço aqui hoje? Sem a Dra. Ana, eu fico meio perdida. É ela geralmente que mostra o que faremos no dia.
Márcia costumava ser bastante educada, mas o sumiço de Ana a tinha tirado um pouco do sério,por isso não estava tendo muita paciência com Lívia:
- Você deve saber melhor do que eu por onde começar, pois os processos de Ana estão todos com você. Veja aqueles que faltam peças, prepare as petições que estiverem faltando e me traga depois para revisão. Os processos que estiverem pendentes o andamento, vá até o Fórum e veja o que aconteceu com eles, amanhã farei uma análise do que você me apresentar. Desculpe a falta de jeito, Lívia. Mas essas férias de Ana não estavam previstas pra agora. Ela até tinha comentado um tempo atrás que precisava de uma segunda lua-de-mel com o Alberto, mas sinceramente, eu achava que ela avisaria a gente com mais antecedência. Precisávamos de tempo para nos preparar!
Lívia já não raciocinava mais. Esse pensamento invadindo sua mente a transtornava. “Será que Ana tinha viajado para tentar recuperar o casamento?” – E disse num ímpeto para Marica:
- Eu acho melhor ir para o Fórum agora! Vou pegar o andamento de todos os processos que estão pendentes e o restante faço mais tarde.
- Ok, faça o que achar melhor! Só não esqueça de me dar tudo pronto amanhã para analisar o que está faltando para as audiências. Tchau!
Lívia saiu apressada! Precisava sumir dali ou então alguém perceberia sua aflição! Estava muitíssimo aborrecida com tudo o que tinha acontecido, ainda mais Ana sumir sem dar explicações, sem dizer palavra! “ Pior ainda, ela não disse nada para mim! Pras outras pessoas pelo menos ela ligou e avisou que viajaria. Pra mim nem isso! Ela simplesmente desapareceu sem dar um “Tchau” sequer! Isso é muito injusto! Por que ela fez isso comigo?!”
Lívia resolveu dar uma volta pela cidade antes de ir ao Fórum. Precisava concatenar sua mente. Ainda havia seu trabalho pra fazer e não poderia prejudicar isso por conta da impulsividade de Ana. Precisava recompor-se do susto e da decepção que aquela atitude tinha provocado nela. Foi em direção ao Rio, precisava ver a água pra acalmar-se um pouco. Sentou-se na margem, respirou fundo várias vezes seguidas e começou a tentar entender o que Ana tinha feito. “Motivos ela tinha de sobra pra fugir, mas não era uma atitude típica de Ana, que sempre lutou tanto por tudo! Que encarava todos os desafios de frente! Ela poderia te me avisado!” – A mente era invadida a todo o momento por idéias intrusas de Ana com Alberto, a segunda lua-de-mel...- “Não, ela não podia ter ido viajar em lua-de-mel depois de tudo aquilo que nós vivemos juntas! Além do mais eles levaram o Flavinho. Ninguém faz uma viagem romântica com um filho a bordo!”
Lívia ficou um longo tempo olhando a água correr e deixando-se invadir pelos mais diversos tipos de pensamentos e sentimentos. Era mágoa, dor, ciúme, culpa, desejo, saudade...tudo misturado de um jeito que formava um bolo de emoções mal resolvidas. No fim de tudo, ainda havia a saudade. Sim, uma vontade louca de apenas ver Ana...apenas saber que ela está bem e que se danem os motivos da sua fuga...queria apenas vê-la, sabê-la por perto.
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Um pouco distante dali, uma outra pessoa também sofria pela fuga repentina. Era a própria Ana, atormentada pela culpa de não ter falado com Lívia antes de partir. “Eu não deveria ter vindo sem falar com ela pelo menos ao telefone! Ela não vai me perdoar isso! Não fiz com intenção de magoá-la, apenas não tive coragem de dizer que precisava desse tempo longe dela! Como eu ia conseguir manter minha cabeça no lugar com ela ao meu lado todo o tempo! Preciso desses dias com minha família...que saudades da minha irmã!”
Ana estava em São Paulo, Capital. Alberto precisava passar mais algumas semanas por lá e Ana decidira ir com o marido e o filho, em umas férias forçadas. Não era exatamente em São Paulo que imaginara ir em férias. Mas pelo menos lá estaria perto de sua irmã, Alice. Precisava de alguém próximo, que a amasse e pudesse trazer algum conforto para seus conflitos. Não que pensasse em fazer confidências à Alice sobre o que havia acontecido entre ela e Lívia, mas só em tê-la por perto, poder conversar com a irmã, já seria um grande bem!
Flavinho estava muito animado com a viagem súbita e tagarelava sem parar no banco de trás do carro. Alberto não tinha muita paciência com o filho, o que deixava Ana muito aborrecida. Passou parte da viagem mandando o pequeno ficar quieto. Por seu lado, Ana adorava ouvir o filho discorrer sobre tudo o que via da janela do carro:
- Ali Mamãe, tem uma fazenda com um monte de vacas! Eu vejo umas ovelhinhas ali também!
- É mesmo filho! E o Boi, você já encontrou? Costuma ser bem grandão!
- Já vi! Ali, ele está bem ali perto da cerca! A cerca é branquinha mãe!
Ana conversava com o filho e tentava não pensar no que tinha feito. Tentava não pensar em Lívia todo o tempo. Mas era muito difícil! Ela estava tão enraizada em sua mente, coração e corpo, que não passava mais que 10 minutos sem que sua imagem lhe viesse mais uma vez à cabeça.
Chegaram a cidade e foram direto para o flat que a empresa havia posto a disposição de Alberto. Ele estava com um humor péssimo e quis ir logo tomar um banho. Ana aproveitou para ligar pra irmã:
- Alice?! Que saudade! Estou aqui em São Paulo! Eu, Alberto e seu sobrinho lindo!
Alice ficou muito feliz em saber que a irmã estava perto e viria ficar com ela um pouco. Gostava de viver só, mas de vez em quando sentia muita falta da família. Ela não havia casado. Era mais nova que Ana três anos e trabalhava como aeromoça em uma grande companhia aérea
- Que bom que vocês chegaram, estou morrendo de saudades também! Eu queria que vocês ficassem aqui no meu apartamento por uns dias. Você e o Flavinho é claro. Sei que Alberto não vai querer ouvir criança na cabeça dele enquanto estiver nesse apartamentinho. Venha ficar um pouco comigo, vai...
- Tá bom querida. Mas você não tem vôo programado pra essa semana?
- Hoje tenho um trabalho interno pra fazer e preciso ir até a companhia, mas só vou viajar na sexta-feira à noite, para o Japão. Portanto, estarei com quase toda a semana livre pra curtir vocês. Deixa eu falar com meu sobrinho fofo...
Ana passou o telefone pra o filho e foi desarrumar parte das malas. A cadeira dificultava sua locomoção, mas Ana sabia ser safa nas coisas que fazia. Seria bom mesmo ficar uns dias na casa da irmã sob a desculpa de deixar Alberto trabalhar em paz. Ele ficava muito impaciente com o filho e Ana queria mais era ficar um pouco longe dele mesmo. Ela precisava estar longe de Lívia, mas também não se sentia mais à vontade em estar com o marido naquele momento.
Alberto saiu do banheiro e falou:
- Você estava falando com Alice?
- Sim, ela quer que fiquemos com ela esta semana. Acho que será uma boa. Você vai poder ficar em paz trabalhando. Você não queria nos trazer mesmo não é?!
Alberto não fazia a menor questão de esconder seu descontentamento:
- É só trouxe vocês porque você insistiu muito e disse que não ia me atrapalhar. Espero que cumpra sua promessa. As férias são suas e não minhas. Pra piorar ainda tem essa cadeira empacando aonde passa. Preciso de sossego pra me concentrar no trabalho. Dê um jeito de manter o Flavinho quieto. Sua irmã morar aqui vem bem a calhar.
Ana não sentia vontade nenhuma de retrucar Alberto. O jeito grosseiro dele falar já não a incomodava mais. Ela não tinha ânimo algum para discutir e esse era o grande sinal do fracasso em que seu casamento estava entrando. “Nem brigar eu quero mais!”
- Pode deixar que não iremos atrapalhar você, Doutor Alberto! E pra começar já estamos de saída. Filho, vamos almoçar num lugar bem legal? Deixo você escolher o que quer comer, desde que não seja Macdonald’s.
- Ah, Mãe! Era justamente lá que eu queria comer...
- Então tá bom! Só por hoje viu? Nada de comer lá nos próximos 15 dias, ouviu bem?!
O menino veio em direção a Mãe pulando de alegria.
- Mas Mãe, como vamos passear com você nessa cadeira de rodas?
- Não se preocupe, meu bem. O motorista do táxi ajuda a mamãe. Além disso eu tenho o meu homenzinho aqui que é bem forte e vai ajudar a empurrar a cadeira, né?!
- Oba! Eu vou poder empurrar na rua também?
O menino estava animado com a possibilidade de mostrar suas habilidades a todos.
- Claro que sim. Conto com você!
Após o almoço, foram para o Parque Ibirapuera e por lá ficaram até o anoitecer. Quando voltaram para o flat, ambos estavam exaustos e loucos por um banho. Ficaram vendo filme infantil no DVD e adormeceram juntos, abraçados, com um cansaço bom vencendo-os. Ana nem percebeu a hora que Alberto chegou. Só notou que devia ser bem tarde. Ouviu-o reclamar pelo menino estar na cama, no lugar dele, com Ana e foi dormir na sala.

No dia seguinte, após o café da manhã, Ana e o filho foram para a casa de Alice. Alberto já havia saído e nem falou com a mulher. Ele estava muito irritado com a presença deles e Ana ficou imaginando, desconfiada, porque: “Será que Alberto tem alguma amante e nós dois estamos aqui atrapalhando? Mas ele sempre foi tão correto comigo! Por isso não, eu também sempre fui honestíssima com ele, até me apaixonar...não, acho que ele não tem amante, ele está é chateado, afinal eu também estou muito diferente com ele...”
Interessante era ver que aquele pensamento não incomodava Ana. Se Alberto tivesse uma amante, aquilo não seria um grande choque pra ela, não doeria tanto como se fosse há alguns meses atrás. “Mais uma prova que meu casamento vai afundar, mais cedo ou mais tarde. Se é que já não afundou e estamos apenas nos segurando nas tábuas de salvação que nem náufragos.”
Chegaram na casa de Alice e esta os recebeu com muita alegria. Ana sempre se deu bem com a irmã e depois que ficou cega, Alice tornou-se ainda mais gentil e amiga como forma de compensar o infortúnio de sua queria Ana. Havia ido morar em São Paulo para realizar seu grande sonho, que era ganhar a vida voando. Nas férias costumava viajar pelo mundo, pois o fato de trabalhar em uma companhia aérea facilitava, por isso às vezes ficava muito tempo sem ver os Pais, Ana e os irmãos. Adorava todos eles, mas escolhera um outro estilo de vida e era bem feliz daquele jeito. Ainda não havia dado sorte de encontrar alguém com quem quisesse dividir a vida. Já havia namorado bastante, sendo que o último relacionamento durara 2 anos. Agora estava só, bem, não exatamente só, tinha um flerte com um Piloto da companhia, com quem já havia voado uma vez, mas não tinham o tempo necessário para fazer valer o romance. Os horários não encaixavam!
- Meus Amores! Que saudades! Que bom que vou ter até o final da semana pra curtir bastante vocês! Mas o que houve com seu pé Ana?
- Uma torção quando estava lá em Campos do Jordão a trabalho. Vou ter que usar essa cadeira enquanto não puder pisar no chão. Já viu cega andando de muletas?
- Mas e o Fred? O que fez com aquele cachorro?
- Está lá na casa do Papai e da Mamãe. Você sabe que eles o adoram e cuidam dele muito bem. Enquanto eu estiver nesta cadeira, não vou andar com o Fred.
Alice abraçou e beijou a irmã com muito carinho. Acomodou-os no quarto e começaram a colocar a conversa em dia. Queria saber como estavam todos e tudo o que havia acontecido desde a última vez em que se viram, há quase cinco meses durante as festas de fim de Ano.
Ana pôs a irmã a par de tudo, apenas omitindo os acontecimentos relacionados à Lívia, obviamente. Mencionou que tinha uma nova Assistente, mas parou por aí e não entrou em detalhes com medo do que poderia deixar escapar. A irmã a conhecia muito bem e logo notaria algo diferente em relação ao sentimento que ela nutria por Lívia.
Os dias com a irmã estavam sendo muito agradáveis. Durante o dia saíam muito pela cidade. Ana não lembrava quantos lugares interessantes São Paulo tinha a oferecer aos seus visitantes. Foram a parques, museus, galerias, ótimos restaurantes, cafés. Flavinho se divertia muito e a tia o mimava o tempo todo o enchendo de presentes.
Pelo menos enquanto estava com eles, Ana não tinha muito tempo pra ficar pensando sem parar em Lívia e no que fazer de sua vida. Mas muitas vezes a irmã a pegou com a cabeça bem longe dali, perdida em seus próprios conflitos internos e intrigou-se com aquilo:
- Desculpe me intrometer, mas além de irmãs, somos amigas também e tenho que te perguntar...tem algo errado com seu casamento, Ana?
Ana foi pega de surpresa. Ainda não estava preparada pra falar sobre isso com ninguém, mas Alice era tão próxima, tão amiga...
- Está sim e você percebeu logo né?! Me conhece tão bem! Não estamos num momento muito bom!
- Mas não é só isso. Eu também percebi que você está diferente por outra coisa. Tem algo no ar que não consigo perceber o que é, mas tem mais coisa aí...
Ana sentia muito medo em falar sobre tudo aquilo. Eram emoções fortes demais pra compartilhar assim com alguém. Sabia que Alice não era preconceituosa, mas enquanto acontece na casa do vizinho, com a irmã, mãe ou filha dos outros, é uma coisa; em casa, sentir na própria família, já muda de figura.
- Mana, aconteceu algo na minha vida sim que está mudando tudo o que vinha sentindo em relação ao meu marido e ao meu casamento. Tô sofrendo muito e não sei o que fazer. Não sei nem se deveria estar dizendo essas coisas pra você, mas você é minha irmãzinha querida e sei que por mais errada que eu esteja, você jamais vai me condenar...
Ana olhou na direção que estava o filho. Este brincava com o vídeo game que havia ganho da tia. Não prestava atenção em nada em volta que não fosse o jogo. Ainda assim Alice percebeu a preocupação da irmã e abaixou o tom de voz:
- Me conte Ana. Diga o que está te afligindo. Esses dias que você ficou por aqui notei o quanto você está sofrendo e mesmo que eu não possa fazer nada pra melhorar a sua situação, pelo menos vou poder ajudá-la te ouvindo. Dividir ajuda a diminuir o tamanho do problema.
- Eu sei. Mas o caso é tão delicado que não sei nem como começar. Só tenho uma coisa a te pedir...por favor, não me condene. Não me faça sentir pior do que estou...
- Minha irmã, claro que não vou condená-la. Prometo que só vou ouvi-la e mesmo que não concorde com você, vou apoiar o que você achar melhor pra sua vida.
Alice aproximou-se mais ainda da irmã e continuou num tom de confidência:
- Já sei até o que é...você tem um amante!
Ana sentiu o coração pular quase na boca. Ela sabia a verdade. Só não podia adivinhar que o amante era do sexo feminino. Decidiu que falaria o que lhe viesse à boca, sem pensar...
- Você acertou em parte. Não é exatamente um amante que eu tenho, pois aconteceu somente durante três dias, na viagem a Campos do Jordão. Não é nada continuo!
Alice estava boquiaberta, mas tinha um risinho nos lábios:
- Quem diria hein, Dra. Ana! Você sempre tão corretinha, pulando a cerca!
Depois arrependeu-se do gracejo:
- Desculpe minha irmã. O assunto é sério e eu fico aqui de gracinhas! Mas me fale mais sobre ele...como o conheceu? Não foi em Campos do Jordão que você torceu o pé?
Ana respirou fundo e prosseguiu:
- Foi lá mesmo. Nós fomos juntos pra lá.
- Você foram juntos? Então ele é lá da nossa cidade?
- Sim.
- Eu o conheço Ana? Quem é?
Alice não se agüentava de curiosidade.
- Não, você não o conhece. E já que estou aqui te fazendo a confidência da minha vida, que seja completa e sem mentiras. Você sabe que não tolero mentiras. Não é “Ele”, é “Ela”! Pronto falei!
Alice emudeceu! Ficou estatelada olhando para a irmã como em estado de choque. Imaginar Ana com um amante já era muito pra sua cabeça, mas saber que esse amante era uma mulher era demais da conta! Era surreal!
- Alice, eu imagino que você deva estar chocada com essa revelação. Mas não tenho com quem me abrir, com quem falar sobre isso e estou ficando louca com essa situação. Não sei o que fazer e desde então venho me consumindo diariamente em dúvida, em dor...sabia que vim pra cá pra fugir dela? Precisava estar longe dela pra poder pensar. Não consigo pôr as idéias em ordem quando estou perto dela. E ultimamente, só quero estar ao lado dela! Desculpe se te decepcionei de algum modo. Mas são meus sentimentos e posso até estar fugindo dela, mas não tenho como fugir deles.
Ana procurou a mão da irmã e a segurou:
- Me dê sua mão. Preciso saber o que você está sentindo. Me diga, por favor...fale comigo!
Alice soltou um longo suspiro. Não sabia o que pensar. Sabia apenas que sua irmã estava sofrendo e isso sim era algo terrível. Apertou a mão de Ana e disse:
- Estou sem palavras Ana. Não sei o que te dizer sobre isso...você ter um amante já me causava espanto, pois você sempre foi tão correta e parecia se dar muito bem com Alberto...mas saber que esse seu amante na verdade é uma mulher, me deixa abismada. Não por preconceito, porque tenho um bando de amigos e amigas Gays lá no trabalho, mas por ser você Ana! Você que sempre foi hetero...dedicada ao seu casamento, sua família...você que sempre soube muito bem o que quis e de repente numa situação como essa é incrível! Fico imaginando o turbilhão que você deve sentir aí dentro desse peito, minha irmã! Agora sim, posso entender seu sofrimento que eu só sentia no ar....
Alice abraçou a irmã e Ana sentiu um imenso conforto naquele abraço tão carinhoso, tão amigo. Era tudo o que ela precisava naquele momento. Alguém que pudesse estar com ela sem recriminações, sem acusá-la de ser irresponsável ou leviana. Alguém que apenas a ouvisse e compreendesse o seu sofrimento. E com aquele abraço afetuoso, descobriu que esse alguém era sua querida irmã Alice. Deixou as lágrimas rolarem pelo seu rosto sem vergonha alguma em esconder seus sentimentos. Sabia que não precisava parecer forte pra Alice. Ela a conhecia profundamente e saber que não haveria julgamento das suas atitudes era muito bom. Aquela moça a estava acolhendo não apenas no seu abraço, mas na sua alma bondosa.
- Oh, minha irmã. Eu adoro você e sua dor é minha dor também. Eu quero saber todos os detalhes dessa história, mas fique tranqüila que não será pra julgar seu comportamento nem recriminá-la por nada. Eu quero que você possa contar comigo para o que der e vier, seja qual for sua decisão, eu vou sempre estar ao seu lado!
Ouvir aquilo era muito melhor do que Ana havia sonhado. A irmã estava sendo muitíssimo generosa e certamente estariam muito mais ligadas ainda após aqueles dias juntas. A confissão as aproximaria de um jeito que estilo de vida nenhum poderia afastar.
E Ana contou tudo á Alice. Sem vergonha, sem pudores, sem pensar em ser repreendida ou acusada de algo feio ou vexatório. Contou desde o começo, como conheceu Lívia, o tempo que ficaram juntas nas montanhas, até o último encontro na casa de Ana. Alice ouviu tudo em silêncio, deixava transparecer suas emoções apenas no modo como apertava as mãos de Ana em alguns momentos da narrativa.
Após ouvir tudo, beijou a Ana no rosto e disse:
- Independente do que acontecer daqui em diante Ana, você será sempre minha irmã querida. Só tome cuidado com Alberto. Os homens podem ser muito vingativos quando são preteridos. Ele pode querer se vingar tirando a guarda do Flavinho de você.
Ana espantou-se com o comentário da irmã:
- Mas porque você está me dizendo isso! Não disse que vou me separar de Alberto!
Alice sorriu:
- Nem precisa me dizer isso, Ana. Conhecendo como te conheço, sei que você não irá levar essa situação por muito tempo. Se o que você sente por essa moça for verdadeiro e da parte dela também, tenho a ligeira impressão que você não irá deixar esse sentimento virar pó. Não a Ana determinada e forte que eu conheço. Você só está fugindo agora para pensar melhor. Vai voltar e resolver logo essa situação. Não sei se irá arriscar tanto por uma Paixão avassaladora, mas com Ela ou sem Ela, uma coisa é fato...com Alberto você não vai ficar! Pelo que me contou, seu casamento está no começo do fim e dificilmente você irá reconstruí-lo com um sentimento tão forte por outra pessoa. Pense nisso!
A sensatez de Alice impressionou Ana. A irmã havia amadurecido muito desde que saíra de casa e tinha muita razão na sua análise. Ana não era mulher de viver um conflito muito tempo sem tentar resolvê-lo. O resultado dessa decisão é que Ana temia e não sabia ao certo o que poderia advir dela.
Uma coisa sabia ao certo. Sua relação com a irmã jamais seria a mesma. Tudo aquilo as tinha aproximado de um jeito que tornava aquele amor fraternal muito mais especial ainda. Despediu-se da irmã com afetuosos beijos e abraços e recolheu-se com o filho. No dia seguinte teriam que voltar para o flat e isso dava um certo desânimo em Ana.
No dia seguinte, Alice estava se arrumando para ir trabalhar, quando viu Ana chegar a sala já na cadeira, sendo empurrada pelo filho e com as malas no colo.
- Sabe Ana. Eu tive pensando...não seria melhor você ficar aqui direto até eu voltar? Sei que você vai ficar uns dias ainda aqui em São Paulo e eu adoraria voltar e encontrar vocês aqui. Você pode encontrar o Alberto no final de semana, mas dormir aqui até quando tiver que voltar. Acho que o próprio Alberto vai adorar a idéia!
Flavinho pulou de alegria e pediu a mãe segurando na manga de sua blusa:
- Ah, mãezinha. Vamos ficar! Eu adoro ficar aqui...é pertinho do parque e vou poder andar com os patins que a tia me deu. Aí vou poder te empurrar melhor nessa cadeira não acha?
Ana pensou por um momento e decidiu, virando-se para a irmã:
- Se você acha que não iremos atrapalhar, eu aceito! Vou ligar para Alberto agora mesmo avisando. Também acho que ele vai gostar...
- Que ótimo, vou chegar no meio da semana que vem e quero encontrá-los por aqui ainda...
Despediu-se deles e foi para o trabalho. Havia passado metade da noite em claro, sem conseguir dormir, só pensando nos problemas que a irmã estava enfrentando. Pior seria o que ela ainda viria a enfrentar no futuro. -“Optasse ou não pelo amor que parecia sentir por Lívia, ela certamente teria um confronto com Alberto. Ele era um cara muito orgulhoso, não aceitaria um chute no traseiro sem tentar retaliar Ana. E aí sim residia o perigo!”
Alberto ficou aliviado em saber que Ana continuaria na casa da irmã. Poderia encontrá-los no final de semana e passeariam um pouco juntos. Não estava com paciência pra aturar mulher com criança a tiracolo e ainda por cima numa cadeira de rodas. “Ei, tá aí uma boa desculpa pra dizer a uma paquerinha! ‘Eu sou um pobre coitado, com a mulher entrevada num cadeira de rodas e ainda por cima cega! Preciso de alguém pra cuidar de mim, uma mulher de verdade! Já estou separado de corpos, apenas fico com ela por pena!’ Bela desculpa seria, aposto que conseguiria tocar o coração de alguma ninfetinha carente!”
Alberto tinha intenções, mas a verdade é que não consumava sua vontade porque não queria a separação. Tinham muitos bens em comum e sua vida de casado era muito cômoda. –“Não precisava se separar! Bastava arranjar alguém pra diversificar no sexo!” - Além disso tinha o filho, as famílias dos dois lados que cobrariam. “Bem seria um saco! E apesar de vivermos algo meio sem graça, eu ainda gosto de Ana. Não quero deixá-la, estou acostumado com ela e ela comigo, seria um sofrimento desnecessário pra todos nós!”

No final de semana, a família resolveu ficar junta. Alberto procurava ser mais paciente com o filho e todos foram ao planetário no sábado. No domingo foram jogar bola no parque e Alberto ajudou o filho com os patins. Flavinho não cabia em si de tanto contentamento e Ana sentia uma pontada de remorso cada vez que via os dois se divertindo juntos. Mas pensar em voltar a ter uma vida sexual com Alberto era muito difícil pra ela. Não sabia como ia se portar diante dele quando ele a quisesse na cama. Por enquanto tinha como dar a desculpa do pé machucado, mas e depois? Alice tinha razão, ela não agüentaria por muito tempo aquela situação.
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Na pequena cidade, Lívia vivia os piores dias de sua vida. Ana não ligava para o Escritório, parecia querer desligar-se de tudo e de todos. Ela sabia muito bem o motivo, mas não tinha idéia de qual seria a decisão que Ana tomaria quando de sua volta. Passava os dias mergulhada no trabalho. Márcia ajudou-a muito nesse aspecto, sem saber. Dava a Lívia bastante trabalho e a fez finalmente debutar em uma audiência, sob sua supervisão é claro! Lívia saiu-se muito bem e pensou em como teria sido bom ter Ana ao lado dela naquele momento, para ver o quanto tinha aprendido com ela, pra ter orgulho de sua discípula.
Mas os dias passavam e Ana não dava sinal algum de onde estava e nem de quando voltaria. Isso angustiava Lívia de um jeito que ela nem pensava direito nas suas ações. Chegou um dia a ir até a casa dos Pais de Ana para saber notícias dela. Mas a Mãe dela parecia ter sido bem instruída, pois não deu nem uma pista sequer. Viu que o cão-guia, Fred, estava com eles, então isso significava que ela tinha ido para um lugar onde não poderia levá-lo e que talvez demorasse...”será que saiu do País mesmo?”
O final de semana se arrastou e mais uma vez ela teve trabalho pra não encontrar com Caio. Ele insistia que deveriam conversar, mas Lívia precisava ver Ana primeiro...não queria ser cruel com Caio, mas angustiada do jeito que andava, era bem provável que agiria desse jeito com ele.
A nova semana começou e a única coisa que pensava era em Ana e em como estava sentindo a falta dela. “Uma semana sem vê-la! Meu Deus, que saudade! Como meu peito dói com a falta que essa mulher me faz!”
E assim ela transcorreu sem muita diferença para a outra semana. Apenas a saudade que sentia de Ana crescia a cada dia. Às vezes parecia que ia ser insuportável a dor, mas aí vinha a esperança de ver Ana chegando no Escritório ou ligando para sua casa de repente...e assim, os dias passavam e ela ia suportando...sofrendo...chorando à noite, no quarto escuro, pra ninguém ver...



Capítulo 16: À FLOR DA PELE...

[14/08/10]
A semana passou mais rápido que Ana imaginara. O tempo dedicado exclusivamente a si mesma e ao filho fez muito bem a sua alma e ela parecia estar bem mais leve depois da confissão feita à irmã. Mais ainda em ter a compreensão de alguém que amava, isso dava forças a Ana para pensar melhor e tentar encontrar o caminho, senão menos doloroso, pelo menos o mais acertado para sua vida.
A volta da irmã no meio da semana, trouxe ainda mais alento para Ana. Era bem mais fácil ter com quem conversar sobre tudo o que se passou, sem medos, sem amarras. E fez, então, de sua irmã sua grande confidente. Passavam horas conversando enquanto Flavinho brincava e Alice ficou bastante curiosa em conhecer Lívia. Decidiu que em breve visitaria a pequena cidade natal, não somente para ver os Pais e os irmãos, bem como para conhecer a pessoa que abalara tanto as estruturas de sua irmã.
Alice aproveitou o tempo bom que fazia e decidiu passar dois dias com a irmã e o sobrinho no litoral em São Vicente. Foi uma idéia muito boa para que os três pudessem se aproximar e dividir juntos momentos únicos em família. Há muito tempo Ana não tinha instantes tão especiais com a irmã e o filho e aqueles dias ficariam para sempre em sua mente e em seu coração.
No Sábado Ana despediu-se da irmã e voltou ao flat onde estava o marido. Eles ainda teriam que ir a Campos do Jordão para que Ana retirasse o imobilizador e deixasse a cadeira de rodas alugada de vez. A sensação de se ver livre daquele desconforto era há muito tempo aguardada e não via a hora de estar sem o peso de mais uma limitação física.
Passaram pela mesma estrada que leva a Santo Antonio do Pinhal em direção a Campos do Jordão. Ana sabia que estavam próximos ao Monte onde havia a pousada com o chalé que serviu de cenário para os dias de Paixão. Podia sentir o cheiro das flores, da mata em volta, ouvir os sons daquela pequena montanha, respirar o ar fresco. Sentiu o peito doer de saudade e segurou-se para não deixar transparecer o tremor que tomou conta de seu corpo quando pensou em Lívia e nos momentos que viveram juntas naquele local.
Alberto a levou até o hospital e Ana foi logo atendida pelo mesmo médico que a socorrera no dia do tombo. Ela foi examinada atentamente e posta para dar voltas, apoiada ao marido, a fim de saber se o pé ainda doía muito:
- Como a Sra. se sente Dra. Ana? Ainda dói muito?
- Não! Dói um pouco, mas é algo que posso agüentar. Acho que com o tempo vou ficar completamente boa.
- Tenho certeza disso, mas a Sra. irá precisar de um pouco de fisioterapia. Caso contrário, essas dores podem demorar a desaparecer ou tornarem-se uma constante, e não queremos isso não é mesmo?! Foi uma torção e em certos casos, elas são mais chatas de curar que uma fratura. Portanto, vou encaminhá-la à fisioterapia para no mínimo 20 sessões e espero que a Sra. seja obediente e não fuja disso. Acredite em mim, sem dúvida será muito melhor perder tempo com a fisioterapia que sofrer sempre.
Ana sabia que o médico tinha razão, já passara por isso antes e sabia que o melhor era o que ele recomendava.:
- Pode deixar Doutor, não vou deixar de fazer a fisioterapia não. Serei bem obediente.
Despediram-se amistosamente e Alberto falou:
- Vamos dormir aqui na cidade hoje, amanhã voltamos para casa. Segunda-feira começa tudo de novo, ou você ainda pretende prolongar essas férias?
Ana tinha um certo desânimo na voz:
- Não, não pretendo prolongar essas férias e acho que já está tarde mesmo, podemos voltar amanhã sim.
- Então me diga em que hotel você ficou da última vez? Podemos ir pra lá, afinal você gostou tanto da viagem!
Ana sentiu um enorme desconforto com o comentário de Alberto e falou secamente:
- Eu gostei da viagem sim, Alberto! Mas o hotel que fiquei da última vez foi de improviso, longe daqui. Não acho que seja conveniente irmos pra lá. Arranje um por aqui mesmo.
Alberto deu de ombros e entrou no primeiro hotel interessante que viu na cidade. O que mais queria era tomar um bom banho e descansar.
Ana estava andando com uma certa dificuldade e ainda sentia dores não muito fortes, mas incômodas no tornozelo. Por isso preferiu jantar no próprio hotel para não ter que sair outra vez. Flavinho estava muito eufórico com o novo lugar e aproveitou que o Pai estava com um humor um pouco melhor e desbravou todo o local com ele. De vez em quando se aproximava da mãe para lhe contar alguma novidade ou algo de interessante que vira.
Ana tinha a cabeça voltada para um pouco mais distante dali. Pensava em Lívia e no que ela estaria pensando da sua inesperada “fuga”. Sabia que ela deveria estar muito chateada com aquela situação, mas esperava poder esclarecer para ela seus motivos para tal. “Será que ela vai me entender? Será que está com raiva de mim? Ah, Lívia! Eu te adoro tanto e estou tão confusa com o que fazer sobre nós!”
E mais uma vez o filho se aproximava e contava alguma novidade para Ana. Ela ria e pensava como seria difícil uma decisão sem feridos.
Passaram o domingo todo em Campos do Jordão e Ana não queria ir a lugar algum, mas Alberto insistiu para que levassem o filho na “Ducha de Prata” e fossem conhecer mais um pouco da cidade:
- Ora Ana, não é porque você não pode ver que vai privar o menino das belezas desse lugar né?!
- Não seja desagradável Alberto! Eu jamais faria isso com você ou meu filho. Só estou com um pouco de dor no tornozelo e não vou poder ficar andando por aí. Claro que vocês podem passear a vontade. Eu fico por aqui sentada esperando.
E assim o dia transcorreu. Um pouco lento para Ana, e ela sentia toda aquele inquietação porque se aproximava a hora do confronto. A hora em que deveria enfrentar o dia a dia com Lívia, o momento de decidir o que fazer de suas vidas. Ela ainda não sabia, só tinha certeza da falta que Lívia fazia e de que devia boas explicações para ela.

A noite já estava alta quando chegaram em casa. Flavinho dormia no banco de trás exausto pelo dia longo de muitas brincadeiras. Alberto o levou para dentro e Ana foi para o quarto de baixo dormir. O dia seguinte seria de muita tensão!
Mal colocou a camisola e Alberto entra no quarto, aproxima-se de Ana e a toca com desejo:
- Hummm, eu estava louco que você tirasse logo esse imobilizador! Tô com um tesão armazenado há um tempão!
Ana sentiu o coração disparar e um arrepio, misto de medo e horror, quando Alberto beijou seu pescoço e subiu até chegar a boca. Gostava dele como pessoa, mas não suportava a idéia de ter que dormir com Alberto, não queria mais fazer amor com ele e o pior era ter que dizer isso naquela hora.
Ana o afastou e disse:
-Alberto, por favor, me deixe dormir! Não quero fazer amor agora. Não estou com vontade e meu pé ainda dói bastante. Tenho medo que você me machuque.
Alberto reclamou desconsolado:
- Ah, Ana! Pelo amor de Deus! Eu tô esperando você tirar essa porcaria há um tempão e não agüento mais de vontade de transar contigo! A impressão que tenho é que você está arranjando desculpas pra não fazermos amor. O que houve? Porque toda essa frieza?
Ana estava muito incomodada com toda aquela situação. Sabia que Alberto tinha razão, mas não conseguia ser mais forte que seus sentimentos. Como se entregar ao marido com a mente em outra pessoa? Como deixar que ele a tocasse depois de ter tido as mãos de Lívia em seu corpo? Era como se ele a pertencesse à partir de então e ninguém mais tivesse o direito de tocá-lo daquele jeito!
Ana tentou contemporizar:
- Não estou me sentindo bem ultimamente mesmo, Alberto. Gostaria que você fosse um pouco mais compreensivo. Me dê um tempo, alguns dias para me sentir melhor e aí poderemos conversar e resolver essa situação.
- Que situação?! Do que você está falando?! Por acaso há alguma coisa acontecendo que eu não saiba? Realmente eu tenho percebido que você está muito diferente. Me diga logo, o que está havendo?
Alberto estava muito intrigado com o comportamento estranho da mulher, principalmente nas últimas semanas e em sua decisão tão repentina de tirar duas semanas de férias. Não era uma atitude comum em Ana, que costumava planejar cuidadosamente as coisas antes de fazê-las. Ana estava com a mente muito cansada de toda aquela pressão, pediu quase em soluço:
- Por favor, Alberto! Respeite a minha vontade e me dê um tempo, ok?! Eu vou ficar por aqui neste quarto mesmo, enquanto meu tornozelo não estiver 100% e gostaria muito que você fosse compreensivo e me desse esses dias. Vou fazer a fisioterapia logo, à partir de amanhã e assim que estiver completamente boa, voltamos à falar sobre isso.
Alberto por sua vez também parecia esta um pouco cansado ou não muito animado em continuar aquela briguinha de gato e rato. A mulher não estava a fim de transar e isso tirava o seu tesão também. -“ Acho que é a famosa crise dos 10 anos. Esse casamento está ficando um saco mesmo! Nem vontade de transar ela tem mais! E eu, nem tenho vontade de querer conquistá-la. Ela só me irrita com esses “chiliquezinhos”! Tenho mais é que arrumar uma amante mesmo, ou várias...casamento chega uma hora que vai pro brejo mesmo, aí só tendo alguém fresquinho pra poder tirar a gente desse marasmo!”
Alberto desistiu da discussão e saiu do quarto batendo a porta. Ana ficou lá, ouvindo os passos do marido do lado de fora...pensava:
“Não estou sendo justa com ele. Mas o que fazer comigo? Com o que estou sentindo por Lívia? Não consigo mais imaginar Alberto me tocando, fazendo amor comigo. Não quero mais! Não sinto mais vontade de tê-lo como homem! Sei que ele não tem culpa do que está se passando comigo, mas não vou ficar enganando a ele nem a mim mesma. Não vou fingir pra alguém que foi importante pra mim. Eu o estaria enganando mais ainda. Preciso ganhar tempo pra resolver logo esse dilema. Quero que pelo menos fique algo de bom desse casamento. O respeito que sinto por ele e ele por mim!”

Era segunda-feira, duas semanas após Ana ter saído em férias. Ela acordou cedo e após o café da manhã, por volta de 8:00 h. telefonou para um serviço de táxi e pediu que a levassem para o Escritório. Precisava chegar cedo e preparar-se para o encontro com Lívia. Sabia que haveria uma sabatina de perguntas e ter pelo menos uma hora ou duas, seria muito bom pra recompor suas emoções.
Foi a primeira a chegar, o resto do pessoal começava o expediente às 9:00 h, foi para sua sala e por lá ficou, pensativa, tentando colocar em ordem o turbilhão que a invadia. Parecia ouvir a toda hora os passos de Lívia e seu coração dava a impressão de querer saltar pela boca.
De repente ouviu duas pessoas chegando ao Escritório. Era a voz de Márcia e Denise. Foi até a sala principal e cumprimentou as amigas:
- Sua louca! Onde estava todo esse tempo? Aposto como acabou com Alberto nessa nova lua-de-mel!
- Não foi bem pra isso que viajei, Márcia! Ainda mais com Flavinho junto, mas foram dias muito bons, curti minha irmã e meu filho demais e isso me fez muito bem! Estava precisando desse tempo!
-Então você estava em São Paulo? Pensei que tivesse ido pra longe, quem sabe alguma praia do Nordeste! Ah, amiga, eu podia ter te dado dicas ótimas e....
Denise e Márcia tagarelavam sem parar e nem davam tempo de Ana pensar nas respostas pra não dizer bobagem. De repente Ana percebeu que uma terceira pessoa entrara no Escritório. As outras mulheres nem notaram a tal presença, no afã que estavam em saciar suas curiosidades. Ana sentiu o perfume cítrico invadir o ambiente, aquele perfume que conhecia tão bem...ouviu um longo suspiro e os passos estancarem...só ela percebia esses detalhes, era tão etéreo, tão leve que alguém entretido em uma conversa simples, realmente não conseguiria perceber. Sabia que Lívia tinha chegado, e deveria estar parada à porta olhando pra ela. Provavelmente estava surpresa, mas será que tinha raiva dela? Que tipo de sentimento estaria passando pelo coração dela naquele momento?
Passaram-se alguns minutos e os passos de Lívia recomeçaram, as mulheres então notaram sua presença. Ana ouviu-a dizer num tom totalmente frio, sem deixar transparecer emoção alguma:
- Bom dia a todas! Seja bem vinda Dra. Ana!
E foi direto para a sala que ambas dividiam. Lívia entrou e praticamente jogou-se no sofá da ante-sala. Havia sido pega de surpresa e seu coração batia tão descompassadamente que não a permitia raciocinar com precisão:
“- Não esperava encontrá-la assim de sopetão! Pensei que ela fosse me ligar para buscá-la ou vir mais tarde, quem sabe num outro dia! Estou muito surpresa e preciso me recompor pra não dar mancada! Ela nem sequer se despediu de mim! Não vou bancar a tola e mostrar o que ela faz comigo. Estou muito abalada e preciso ter meu equilíbrio de volta antes dela entrar aqui. Se ela não me quer eu tenho que pelo menos saber me manter de pé, erguida!”
Ana demorou um pouco ainda até conseguir se desvencilhar das amigas curiosas. Respirou profundamente e entrou na sala do seu Escritório. Sentou-se junto à mesa e sabia que Lívia estava ao lado, na ante-sala. Podia sentir sua presença de maneira tão forte que quase sentia na pele seu toque. Pigarreou e chamou por Lívia com a voz um pouco trêmula;
- Lívia! Venha até minha sala, por favor!
Ana ouviu os passos daquela a quem tanto adorava e seu coração batia tão forte que dava a impressão de poder ser ouvido ao longe. Lívia entrou na sala sem dizer palavra alguma, apenas esperando o que Ana tinha a lhe contar:
- Eu acho que temos muito a dizer uma a outra, mas não sei como começar e nem se deveríamos ter essa conversa agora, aqui...
Lívia a interrompeu com a voz num tom entre o ríspido e irônico:
- Porque não começa me dizendo porque fugiu sem nem se despedir de mim...sem dizer palavra alguma e me deixou como uma louca aqui todos esses dias, sem saber o que havia acontecido, para onde você tinha ido, se você estava bem...claro que você estava bem! Idiota sou eu em pensar que não, afinal você estava na companhia do maridinho e devem ter tido ótimos momentos juntos.
Agora tinha perdido o controle de vez, só procurava manter o tom de voz baixo, pra não chamar atenção das mulheres no outro ambiente:
- Você não se dignou a me dar um telefonema sequer...quis realmente se ver livre de mim! Aposto como acertou os ponteiros com Alberto. Talvez eu tenha servido pra isso, né Ana?! Pra te mostrar que seu casamento era bom e podia ser salvo!
Lívia estava tão fora de si que nem pensava direito no que saia de sua boca:
- Eu não te cobrei nada! Você não precisava ter sumido! Bastava me dizer pra manter afastada e eu faria isso, Ana! Eu sei que não tenho lugar na sua vida! Mas você preferiu me fazer sentir um lixo, chutada num canto como se fosse um estorvo no seu caminho! Eu tenho quem me ame também, Ana! Não preciso mendigar o seu Amor! Não preciso de você e das migalhas que você quiser me dar! Eu quero ir embora! Que se dane esse emprego, esse lugar aqui virou um martírio pra mim! Também quero ficar longe de você! Não quero saber nada ao seu respeito, nem o que se passa na sua vida...estou indo agora mesmo!!!
E levantou-se para ir embora, quando ouvir a voz enérgica de Ana:
- Lívia não ouse ir embora sem me ouvir!!! Tranque esta porta porque não quero que ninguém entre aqui!!! Sente-se ou fique em pé, como preferir, mas cale esta boca e me ouça!
Lívia acatou o pedido de Ana e voltou mantendo-se de pé para ouvir o que ela queria lhe dizer. Tremia muito e sentia-se por demais abalada emocionalmente. Ana também se postou de pé e começou a dizer numa voz um pouco rouca e nervosa:
-Primeiro eu quero que você não me interrompa. Me ouça e depois faça o julgamento que quiser!
Mexeu as mãos nervosamente e virou o rosto na direção em que Lívia se encontrava. Era incrível como Ana sabia exatamente onde ela estava parada, pra onde direcionar o seu olhar. Ver os olhos parados de Ana, olhando para o nada e marejados de água, dava um nó na garganta de Lívia que não a permitia sequer mover-se de onde estava, que dirá dizer algo:
- Desculpe sair sem falar com você. Mas eu não podia! Não tive forças pra dizer que precisava deste tempo. Que precisava estar longe pra pensar melhor. Acho que fui covarde sim, em pelo menos não ter te avisado, mas depois que fiz, achei que era melhor pra nós duas. Tive medo que isso acabasse acontecendo. Esse seu rancor pela minha atitude! Não fique com raiva de mim, Lívia. Eu posso suportar muita coisa, mas seu ressentimento seria doloroso demais!
Ana tentava segurar as lágrimas e isso aumentava ainda mais sua angústia:
- Eu fui para São Paulo. Fiquei por lá essas duas semanas e a maior parte do tempo passei com minha irmã e meu filho, no apartamento dela. Ela foi meu Porto Seguro, alguém com quem pude conversar e contar tudo o que aconteceu entre nós. Quando fui procurá-la, não tinha a intenção consciente de contar a ela, mas aos poucos fui vendo que precisava muito partilhar com alguém aquele conflito e ela foi maravilhosa comigo! Não fez julgamentos, não me recriminou, apenas me acolheu!
Lívia estava estupefata em saber que Ana havia contado tudo para a irmã. “- Que louca! Logo o marido ou a família dela vai estar sabendo também!”
Ana continuou:
- Me senti tão bem depois, que parecia ter as coisas mais claras na minha mente! Mas não é bem assim...meu casamento com Alberto está fracassado! Eu não consigo deixá-lo me tocar desde que ficamos juntas e sei que isso se deve ao fato de estar tão apaixonada por você. Eu estou num conflito terrível, ele é meu marido, sempre foi um bom chefe de família, um bom companheiro, até que nosso casamento começou a ficar monótono, vazio, sem emoção alguma...por outro lado, ele é o Pai do meu filho, ele é o homem com quem estou casada há tanto tempo, como então rejeitá-lo sem explicação alguma?
Lívia ficou incomodada com as conjecturas de Ana sobre Alberto, sentia ciúmes...
- Mas é exatamente isso que tenho feito, Lívia! Rejeito Alberto sistematicamente todos os dias e não me imagino mais com ele na cama. Só penso em você e em como nós poderíamos nos fazer felizes se tanta coisa na minha vida não impedisse esse Amor de se realizar! Eu a amo demais e não quero que você fique longe de mim! Mas se você quiser mesmo ir embora, eu vou entender seus motivos. Você é jovem, bonita, deve ter um monte de rapazes atrás de você e sei que você ainda tem o Caio a hora que quiser. Não posso também exigir que você se sujeite as minhas necessidades! Eu posso até indicá-la pra um amigo que tem um Escritório aqui na cidade também, mas...
Nesse instante, Lívia interrompe Ana. Aproxima-se dela e diz com a voz embargada:
- Só preciso ouvir uma coisa de você Ana...você quer, do fundo do coração, que eu vá embora ou fique?
Ana não consegue mais controlar o choro, deixa as lágrimas correrem e vai na direção de Lívia...toca seu rosto e a puxa pra si num abraço apertado e urgente...esperado há tantos dias...fala em seu ouvido entre soluços:
- Eu quero você pra mim! Quero ser sua por toda a vida! Não se afaste, por favor! Nem que eu peça por isso! Vai ser mentira! Meu coração grita o tempo todo que quer você perto, junto de mim! Fica comigo..
Lívia não controlou mais a vontade que tinha de tocar Ana, de beijá-la...e o fez com furor! Era tanta a vontade de estar com ela, foi tanta a saudade naqueles dias, que toda sua mágoa caiu por terra com aquelas palavras e as lágrimas de Ana. Amava aquela mulher com toda sua alma e não sabia mais existir sem Ana. Sabia que se tivesse que ficar longe dela, seria apenas um Zumbi, só um corpo sem alma! Sem Ana era nada! Só havia o vazio!
As bocas se buscavam gulosamente, numa ânsia de descontarem o tempo de distância. As mãos de Ana tocavam o corpo e o rosto de Lívia como se quisessem gravar cada partícula dela em suas digitais... agarravam-se aos cabelos, puxava o rosto pelas orelhas e sugava aquela boca de forma sedenta e medrosa...sim, sentia medo de ter que ficar longe dela outra vez, não queria mais isso, era como se tivesse nascido para ser de Lívia e não queria mais fugir disso!
Lívia também não podia resistir aos apelos de seu corpo...ele clamava a todo instante por Ana e não tinha como lutar contra esse desejo imenso...só que era mais que isso, amava Ana! Tinha certeza disso, pois estava disposta a ficar longe dela se isso a fizesse feliz! Se contentaria em saber que ela estava bem, mesmo que essa atitude platônica a destruísse por dentro. Mas Ana a queria também, com a mesma força, com a mesma intensidade e não poderia deixá-la nunca mais!
Os papeis de cima da mesa foram lançados ao chão...não interessava se eram importantes ou não, o que importava naquele momento era ter um leito pra saciar duas mulheres com sede de Amor uma pela outra. Ana sentou-se na mesa e Lívia, de pé tirava sua blusa à medida que sua boca descia ao longo do corpo. Beijou os seios, esfregou o rosto neles e sentiu o perfume que vinha da fenda no meio dos dois. Sugou cada mamilo e os fez ficarem duros. Ana gemia a cada toque, não conseguia mais controlar aquele desejo represado e entrelaçou as pernas no tronco de Lívia pra senti-la melhor junto de si. Esta continuou seu passeio e tirou a saia e as meias que Ana vestia. Deixou sua mulher só de calcinhas, linda, toda entregue a si e àquele momento! Beijou sua barriga, enfiou a língua no umbigo e Ana estremeceu sentindo o desejo invadi-la bem no baixo ventre através daquela dorzinha tão característica que a alertava! As mãos de Lívia acarinhavam as pernas de Ana na parte de trás, entre as coxas, subia até as nádegas e novamente dirigia-se para a parte interna da perna, abrindo-a. A boca seguiu seu curso tocando a virilha e beijando o sexo sobre a pequena peça de tecido que Ana usava. Lívia afastou a calcinha sem tirá-la e tocou com a língua aquela fenda que tanto amava! O clitóris estava duro como pedra e ansiava pela língua de Lívia quase gritando por isso, mais embaixo uma pequena corrente de desejo escorria pelas pernas e pelo rego de Ana. Ela contorcia-se na mesa movendo os quadris conforme a dança da língua de Lívia, pegou uma das mãos de Lívia e a fez penetrá-la gostosamente com os dedos. Estava muito molhada e a sensação de tê-la dentro de si, quente e escorregadia era deliciosa, mais ainda com aquela boca sugando seu “nervinho” do prazer. Ana mordeu o braço para abafar seus gemidos e gozou com aquela chupada como sonhara durante tantas noites...o corpo se convulsionou num delicioso tremelique de prazer e ficou ainda por uns bons minutos sentindo as ondas elétricas passarem por todo ele.
Lívia subiu pelo tronco de Ana e a beijou para que esta sentisse seu próprio gosto através de sua boca. Era bom sentir o gozo misturado à saliva da sua amada e saber que aqueles fluídos eram a projeção do prazer que havia proporcionado a ela.
Ana levantou-se vagarosamente e pegando Lívia pela mão, a levou até o sofá que ficava na sala. A fez sentar-se na borda e disse sussurrando no seu ouvido:
- Eu já sei como você gosta!
Tirou a roupa de Lívia e a deixou completamente nua. Tocou cada centímetro de pele daquele corpo tão querido e baixou o rosto para sentir o perfume cítrico que ela conhecia tão bem. Nem precisava tocar o sexo de Lívia para saber o quanto ela estava molhada, o tanto de tesão que saía daquelas pernas, daquele ventre...ficou de pé e foi baixando o corpo bem lentamente, numa deliciosa tortura, até que os dois sexos se encontrassem. A baba que saía deles deixou-os completamente encharcados e fios daquele tesão todo apareciam a cada vez que elas se afastavam um pouco para depois voltarem a se encaixar com vontade. Ana realmente aprendera a dar prazer a Lívia exatamente como ela gostava, sentindo o corpo da sua amada rebolando junto ao seu, esfregando sem pudor seus sexos em busca do gozo compartilhado. Sentir uma a outra de modo tão íntimo, tão unido era o melhor daquele intercurso, era a sublimação do prazer carnal! Os corpos suavam com aquela dança e as bocas se encontravam e se deixavam para beijar o pescoço, o colo, os seios, e então voltavam a se encontrar, com línguas ansiosas e quentes, quase no mesmo ritmo dos corpos. Lívia segurava Ana pelas ancas e a fazia vibrar no mesmo ritmo que ela, queria que ela também pudesse ter a mesma sensação gostosa do prazer chegando...do gozo se avizinhando...e assim foi...aumentaram o ritmo daquela deliciosa dança e, quase que simultaneamente, chegaram a um orgasmo profundo e gostoso!
Ficaram ali, por longos minutos, reconfortando-se uma na outra, apaziguando os corpos em transe. Quiseram tanto estar ali daquele jeito, durante todos aqueles dias afastadas, que não deixariam nada atrapalhar aquelas horas preciosas. Ana deitou recostada no encosto do sofá e Lívia ficou agarrada a ela, num minúsculo espaço, de um jeito tão forte, que não a deixava cair no chão. Diziam palavras de Amor uma a outra e se beijavam com ardor, por longos minutos. O tempo não importava mais...queriam estar ali daquele jeito e nada mais interessava...não ligavam para os outros que estavam do outro lado do Escritório, e parecia que eles também não, pois o burburinho dos empregados em mais um dia de trabalho continuava o mesmo, inabalável. Ana não se importou, sabia que ninguém entraria em sua sala sem que ela autorizasse através da secretária e que poderia ficar ali com Lívia durante todo o dia se assim quisesse.
E elas quiseram...entregaram-se de várias formas...pareciam querer descobrir num só dia tudo aquilo que dava prazer a outra...tudo que as fazia feliz no sexo...
Lívia fez Ana apoiar-se no encosto do sofá e ficar de pé, de costas para ela. Ela acariciou e beijou as costas de Ana até sentir que ela novamente tinha seu corpo mais quente que o normal. Mordiscou sua bunda, fez Ana colocar os joelhos no assento e abrir bem as pernas, com o dorso arrebitado. A visão de Ana naquela posição tão sexy acendia o tesão em Lívia violentamente. Era demais vê-la assim, tão feminina, tão sensual, com os quadris ligeiramente levantados, esperando pela promessa do gozo de viria. Lívia beijou e mordiscou suas nádegas, passou o dedo pelo rego, sentiu o orifício anal contraído e desceu até aquela racha úmida, completamente babada de desejo...penetrou-a com dois dedos e sentiu Ana apertá-la por dentro. Era tão gostoso sentir suas paredes internas contraírem e tentar mastigar seus dedos...decidiu substituí-los por sua língua, enfiou o mais fundo que conseguia e sentiu na boca as contrações do sexo de Ana. Ela apertava sua língua e gemia pedindo mais, segurou a mão de Lívia e levou seus dedos até seu grelo duro. Mexia os quadris cada vez mais forte e dizia palavras desconexas e ligeiramente obscenas. Lívia segurou Ana pelos quadris com uma das mãos e meteu a língua o mais fundo que podia, sentindo-a pulsar por dentro...percebeu quando o gozo viria...aumentou o ritmo no clitóris e proporcionou a ela um prazer novo, indescritível! Ana se abandonou àquelas sensações e esqueceu de onde estava, soltando um grito na hora de gozar. Ao terminar, Lívia puxou levemente os cabelos de Ana e virou seu rosto pra dar-lhe um beijo molhado, com cheiro de sexo, que ela adorava sentir e saborear...seu “odor di femina”! Ana sentou-se no sofá e estava um pouco mole do prazer que havia acabado de experimentar, mas não deixou que Lívia se sentasse. Pediu que ela continuasse de pé e a pôs de frente pra ela, com uma das pernas flexionada e apoiada no sofá. O sexo de Lívia ficou exatamente na altura da boca de Ana e agarrando a bunda dela por trás, Ana proporcionou a Lívia um gozo compatível com o que ela a havia dado minutos antes e fez Lívia sentir tremedeira nas pernas, quase indo ao chão na hora do prazer...depois jogou novamente seu corpo sobre o dela pra descansar e se abandonaram uma a outra, com a luxúria saciada e o coração mais calmo!
Ficaram por horas daquele jeito, agarradas uma a outra...Lívia não tirava os olhos de Ana e de sua expressões lindas e involuntárias...Ana não conseguia deixar de acarinhar aquele corpo macio e tão amado, que lhe proporcionava tanto prazer e bem estar...tinham medo de quebrar o encanto daqueles instantes e nenhuma das duas tinha coragem de ser a primeira a fazê-lo.
De repente o telefone toca, Ana levanta-se, ainda nua e antes de atendê-lo, Lívia diz:
- Deixe que eu atendo! Assim dá tempo de você ir ao banheiro se recompor. Eu me arrumo mais rápido!
Do outro lado Márcia fala:
- Lívia, diga a Ana que precisamos conversar sobre o caso da Vale do Rio Doce, está meio complicado e quero sua opinião. Denise e Fábio também querem uma reunião pra acertarmos os detalhes dessa ação que é muito importante. Acho que você também tem que participar. A Ana está aí ao lado?
- Não, ela está no banheiro! Estamos terminando algumas minutas e em dez minutos eu abro a porta pra começarmos a reunião, Ok?!
- Combinado.
Em cinco minutos Ana saiu do banheiro já vestida, com o rosto lavado e batom nos lábios. Eles não perceberiam nem de longe o que acabara de acontecer ali. Apesar do rosto levemente rubro pelo esforço empreendido, Ana estava recomposta e pronta pra continuar o trabalho. Lívia também já havia se vestido e foi lavar-se. Falou com Ana sobre o telefonema de Márcia e abriu a porta do Escritório pra que a reunião se realizasse.
Terminaram de trabalhar por volta de sete horas da noite e Lívia levou Ana para casa de Táxi. Chegando lá, saltaram do carro e ficaram paradas uma de frente pra outra...Ana falou:
- Não temos como fugir desse Amor. Ele é forte demais e isso que aconteceu hoje, vai acabar virando rotina e não quero que seja apenas isso. Você quer?
- Claro que não! Eu adoro você e estar na sua companhia é a melhor coisa do mundo pra mim, mas eu também quero mais...quero partilhar tudo com você...mas sei das suas dificuldades.
- Que bom que você compreende isso! Eu realmente preciso resolver minha situação em casa. Não quero ficar tendo encontros furtivos com você e continuar enganando Alberto. Não sou desse jeito e não quero esse tipo de coisa pra minha vida nem pra sua. Eu queria te pedir uma coisa....
- Diga...
- Não vamos continuar como amantes enquanto eu não resolver esse problema. Me dê um tempo. Algumas semanas...sei lá quanto tempo será preciso, mas me dê esse tempo! Eu preciso disso pra decidir sobre meu casamento. Temos que ser cuidadosas conosco e principalmente preservar meu filho! Me ajude e ser forte, Lívia! Por favor!
Ana deixava transparecer seu dilema na voz e estava ali, implorando pela compreensão e ajuda de Lívia:
- Eu te amo Ana! Vou estar ao seu lado seja qual for a decisão que você tomar! Só não posso prometer continuar por aqui se você decidir me deixar! Vou sofrer demais e não quero estar por perto vendo você retomar sua vida com seu marido!
Segurou Ana pelo pescoço e quase a beijou, quando então lembrou-se de onde estavam:
- De qualquer maneira, você terá o tempo que achar necessário pra decidir sobre isso. Eu saberei esperar...
- Eu também te amo muito e disso eu não tenho dúvidas! Tenha certeza que não vou demorar mais que o necessário pra tomar as medidas que julgar acertadas. Só não quero correr o risco de perder meu filho...isso seria duro demais pra mim, entende?
- Claro que sim! Nem eu quero ser o pivô desse tipo de coisa. Pense e tome a decisão que julgar melhor!
Ana pegou na mão de Lívia e a acariciou com muito amor. Levou a mão aos lábios e beijou cada dedo, sentindo o perfume dela entrar em si. Lívia controlou-se pra não beijá-la ali na frente da casa dela. Retirou a mão e já estava indo embora, quando lembrou-se de algo:
- Ah, Ana! Tinha me esquecido de uma coisa....meu Pai quer vê-la urgente! Parece que tem novidades no seu tratamento!
Lívia viu Ana parar de costas pra ela, de frente pra sua casa...não se virou, nem disse absolutamente nada...após um breve momento, continuou caminhando em direção ao portão, entrou, o fechou e deixou Lívia lá fora, imaginando no que será que ela estaria pensando sobre tudo aquilo!



Capítulo 17: A DECISÃO...A SEPARAÇÃO...O CHOQUE!

[15/08/10]

Ana entrou em casa pensativa sobre o que Lívia lhe dissera por último: “...meu Pai quer vê-la urgente! Parece que tem novidades no seu tratamento!” – Não gostava de ter falsas esperanças sobre a possibilidade de um dia voltar a enxergar...já tinha cansado de se decepcionar com as várias cirurgias sem sucesso algum, as quais se submetera na adolescência, e que de alguma forma, trouxe muita dor à Ana e seus Pais. Não daria muita importância àquela novidade, pois já tinha muito mais com o que amofinar suas idéias...
O clima em casa não estava muito bom. Alberto mantinha-se afastado e frio com a mulher, como se também já estivesse enfadado com aquele casamento. Ana por sua vez, sentia o incômodo da omissão, da traição...não conseguia encarar Alberto por muito tempo e tinha que dar um jeito de resolver aquele impasse logo, pois não era de sua natureza fazer “jogo duplo” com ninguém, ainda mais com Lívia a quem amava e o Pai de seu filho, que merecia todo respeito. Mas havia algo que era ainda maior que o incômodo da mentira, o desejo que sentia por Lívia e isso havia ficado bem claro naquele dia no Escritório. Não conseguia conter-se na vontade de beijá-la, abraçá-la e tê-la junto de si e isso a dominava mais que qualquer outro sentimento de consideração que pudesse ter por Alberto. Por isso o traía e não sentia tanta culpa assim! Podia parecer cafajeste, cínico, mas era a sua verdade...não sentia tanta culpa, apenas um incômodo!
Quando estava em casa, sua grande alegria eram os momentos que passava com seu filho...ele era uma criança feliz e divertida e ajudava, sem saber, a aliviar o peso dos problemas que Ana tinha que enfrentar. Aliás, era justamente Flavinho sua grande preocupação em relação à decisão que precisava tomar sobre o seu casamento. Sabia que não tinha como fugir desse enfrentamento com Alberto por muito tempo e que seu pequeno filho seria bastante atingido pela batalha que estava por acontecer.

Os dias se passavam e traziam para Ana sensações diferentes...era como se durante o dia, quando estava com Lívia, ele voasse! Logo pela manhã, Lívia a buscava para irem a Fisioterapia e de lá direto para o Escritório...passavam juntas todo o tempo, trabalhavam muito e tentavam (muitas vezes em vão) dispersar as idéias de desejo e Paixão uma da outra. Mas era inevitável aproveitarem os pequenos descuidos para se tocar sutilmente...era um leve toque de mãos, um ligeiro suspiro próximo ao ouvido, uma partícula qualquer que era providencialmente retirada delicadamente da boca ou da face... enfim, todos os momentos eram experimentados com emoção e angústia por ter que ser abafado. Ainda bem que Lívia podia andar de braços com Ana sem levantar suspeita alguma! Porém, evitavam qualquer contato mais íntimo, Lívia respeitava a vontade de Ana e procurava não ir adiante em nenhum desses momentos, não queria deixá-la mais confusa ou sentindo-se culpada pelo que acontecia.
Por outro lado, quando chegava em casa à noite, vinha o desconforto do convívio com o marido a quem não amava mais...eram as cobranças sobre sua distância e frieza, as reclamações sobre a forma arredia com que Ana o tratava e evitava qualquer tipo de contato físico, o barulho que Flavinho fazia que não o deixava ver a TV ou terminar algum relatório...Alberto andava – diga-se de passagem, com razão – bastante irritado com a vida que levava em família. Nunca havia pensado antes em como seria bom voltar à época de solteiro, mas ultimamente essa idéia não lhe saía da cabeça. Estava muito aborrecido com a mudança de comportamento de Ana e desconfiava que ela podia estar interessada em alguém, mas quem? “Talvez algum advogado ou alguém que trabalhasse no Fórum, sabe-se lá! Devia ser alguém relacionado ao trabalho dela, mas quem poderia ser? Vou descobrir e se Ana estiver me traindo, vou levá-la à Justiça para dar o troco! Isso é muito pior que arrumar uma amante! Mesmo que eu não queira realmente, vou contestar a guarda do nosso filho...isso sim a arrasaria! Nem sei se a amo mais, talvez sim, acho que nosso casamento está apenas desgastado, mas não vou perdoar uma traição!”
Uma noite, ao chegar em casa do trabalho, encontrou Alberto a esperando. Ele caminhou em sua direção, a enlaçou pela cintura e disse em seu ouvido:
- Quero fazer Amor agora, antes do jantar, estou com muito tesão e quero aproveitar que Cininha ainda não chegou com o Flavinho. Venha, vamos para o quarto. Faz muito tempo que não te tenho, estou com saudades...
- Não!
Ana falou alto e bruscamente, empurrando Alberto! Assustou-se com sua própria veemência! Rejeitou Alberto de maneira tão contundente que ficou surpresa! Não esperava aquela abordagem e sua primeira reação foi de defesa e repulsa!
Alberto ficou extremamente irritado e retrucou:
- Eu quero saber agora o que está acontecendo, Ana! Sei que não é mais o seu pé, porque você já está a um mês nessa fisioterapia e já anda perfeitamente por aí. Outro dia mesmo vi você dançando com o Flavinho e brincando com ele no jardim. Inventa outra! Quem é esse cara que você tá interessada? Será que já está saindo com ele? Me conta, Ana! Quero saber de tudo! Não nasci pra ser corno e agir passivamente, quero saber quem é e o que você pretende!
Ana estava muito nervosa! Não esperava ser pega de surpresa desse jeito e de repente tinha que tomar a tal decisão que estava adiando há tanto tempo!
- Eu não tenho ninguém Alberto! Você pode investigar os lugares por onde ando e não irá encontrar amante algum meu! Mas tenho que admitir que meus sentimentos em relação a você e ao nosso casamento mudaram! Não somos mais felizes e isso é mais que visível! Minha família já percebeu, seus Pais também já fizeram perguntas sutis sobre o assunto e eu não sei o que responder mais! A única coisa que tem ficado mais forte em mim dia a dia é a vontade de me separar de você Alberto. Quero que você vá embora ou então eu vou para outro lugar com o Flavinho! Não estou conseguindo mais sustentar essa situação de mentira...eu quero a separação!!!
Tudo havia sido dito num só fôlego e Ana achou por bem não magoar o marido com verdades fortes demais para a ocasião, melhor que ele descobrisse depois. Alberto ficou por alguns momentos estático, sem ação! “Diversas vezes pensara em passar mais tempo em São Paulo longe da família, de repente pedir até uma transferência pra ficar mais tempo longe e assim quem sabe tentar recuperar o marasmo por que passava seu casamento, ou então enterrá-lo de vez. Se tivesse uma amante, talvez isso o deixasse mais relaxado e desfocado de Ana. Não sabia se a amava, mas não queria se separar desse jeito. Era de fato um choque!”
- Eu não acredito Ana! Até admito que nosso casamento já vinha meio monótono há algum tempo, uns dois anos pra cá, mas até chegar a separação é muita distância! Você está querendo separar porque se apaixonou por alguém! Quem é esse homem, Ana? Me diga! Vai ter coragem de jogar no ralo 11 anos de casamento, uma família, uma vida como a que nós construímos, por uma aventurazinha qualquer?! Por uma Paixonite?
- Não tem paixonite alguma! Eu quero a separação porque nosso casamento acabou, Alberto! Ele durou o tempo que tinha que durar, foi bom! Passamos por momentos bons e outros nem tanto, tivemos nossos momentos felizes, ele caiu na monotonia e começou a ficar ruim agora no final. Quero preservar pelo menos o respeito que temos um pelo outro. Teremos contato pelo resto de nossas vidas, pois temos um filho em comum, por isso quero que esse carinho que sinto por você permaneça. Não quero correr o risco de chegarmos ao ponto de nos detestarmos. Nosso casamento deu certo por 10 anos, agora não dá mais, vamos ser adultos e tentarmos não nos magoar com essa decisão!
- Ora Ana! Não banque a Psicóloga civilizada que tem solução para todos os problemas e escreve na coluna de “auto ajuda” da revista “NOVA”! Nosso casamento não acabou! Não ainda! Eu sou seu marido e não vou admitir que você se encontre com outro cara e desrespeite o compromisso que nós firmamos diante da Igreja e da nossa família! Não vou ser o corno manso que aceita os deslizes da mulher calado! Você ainda é casada comigo e por enquanto eu quero que continue assim, até eu decidir o que pretendo fazer!
- Não reduza a minha inteligência às suas piadinhas! Não estou bancando a Psicóloga, apenas estou sendo sensata e propondo algo que será inevitável pra nós dois. Gostaria apenas que fosse um pouco menos doloroso! A separação não será uma decisão unilateral sua, Alberto. Eu já a tomei e não vou voltar atrás...venho pensando sobre isso há quase dois meses e agora sei que não terá outro jeito, aceite você ou não, a minha decisão já está tomada!
Ana demonstrava uma firmeza que no fundo não sentia. Estava arrasada com toda aquela situação, mas sabia que não havia outra solução a tomar. Amava Lívia e queria estar com ela e para isso tinha que se separar. Não conseguia mais ser mulher do Alberto e não podia esmagar sua dignidade traindo-o e mantendo Lívia como amante de Escritório...seu Amor por ela era grande demais pra ser reduzido a isso.
- Eu não vou aceitar isso, Ana! Eu tiro o Flavinho de você ouviu bem? Você acha mesmo que tem condições que cuidar do nosso filho sozinha?
Alberto já havia perdido a sensatez e descambava para a apelação.
Ana deu um sorriso irônico e falou:
- Muito engraçado isso né? Quer dizer que não tenho condições de cuidar do nosso filho? E o que eu tenho feito todos esses anos? Você não é um Pai que se possa chamar exatamente de zeloso e presente! Veja se te enxerga Alberto, já que eu não posso fazer isso com os olhos, apenas com a alma!
Virou-se e foi para o seu quarto, deixando Alberto na sala. Sentia-se arrasada! Não conseguia explicar porque, mas apesar de saber que essa era a decisão acertada, a angústia a dominava! Separação nunca era algo fácil, mesmo quando não havia mais Amor, e Ana estava dando fim a algo que durante anos havia sido muito bom. Era o término de uma fase, até então, a mais importante da vida dela!
Chorou, expurgou sua angústia, suas dores...depois ligou para Márcia e contou sobre a decisão de se separar e que precisaria dela para ser sua advogada. Não queria agir em causa própria, preferia que outra pessoa a representasse no tribunal, rezava para que a ação fosse consensual e que Alberto não quisesse realmente um litígio como havia ameaçado.
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A notícia sobre a separação de Ana e Alberto foi um choque para todos que os conheciam! Eram tidos como um casal modelo na pequena cidade. O tipo de casal que provocava inveja em muitas pessoas por parecerem perfeitos...tinham uma bela casa, eram bonitos e charmosos, bem sucedidos profissionalmente, um lindo filho, amigos e famílias em volta e apenas a cegueira de Ana parecia macular o quadro de perfeição que se desenhava diante de toda gente!
E na verdade, assim foi por 10 anos! Mas algo imprevisível aconteceu! Quando o casamento, aparentemente imaculado, começou a ficar monótono e sem graça, ambos tornaram-se vulneráveis a uma possível nova Paixão e, para Ana, uma coisa ficou clara...o Amor que sentia por Alberto não era tão sólido quanto imaginara! Nunca havia sentido por ele o desejo avassalador que sentia por Lívia, a vontade de estar junto a ponto de sentir falta de ar e o peito doer intensamente, a ânsia de ficar o tempo todo perto e já sentir saudade quando ainda nem se foi!
Era isso que sentia por Lívia, foi por esse sentimento que buscou e até tentou encontrar no marido, mas nunca havia conseguido. Sentia por ele um enorme carinho do homem que ele sempre havia sido para ela e a família...íntegro, correto, honesto, amigo...é certo que nos últimos anos ele estava bem menos atencioso com a mulher, menos paciente com o filho, mas talvez fossem reações naturais da sua própria constatação que as coisas haviam mudado, tanto para Ana quanto para ele também, apenas custava mais a admitir isso a si mesmo. O fracasso de uma relação é algo muito difícil de querer admitir e encarar...é doloroso e muito desgastante desvencilhar-se de um compromisso que não fará mais bem a nenhuma das partes! É duro admitir o fracasso! Mas, na verdade, não há fracasso! Apenas acabou-se o que foi bom por um tempo e não dará mais frutos nem prazer aos envolvidos. É como cortar uma carne necrosada...dói, deixa uma cicatriz, mas é essencial para a sobrevivência saudável do resto do corpo!
Alberto resolveu sair de casa e deixar Lívia com Flavinho na residência que ocuparam a vida toda de casados. Era o mais sensato a fazer. O menino estava acostumado ao espaço, a ter um cão em casa, a poder brincar na piscina e nos jardins...não seria justo fazê-los deixar o lugar. Foi para uma casa menor num bairro um pouco mais afastado do de Ana e o filho, mas passava a maior parte do tempo em São Paulo. A empresa deixava a sua disposição um flat na cidade e achou melhor aproveitar a situação para recomeçar sua vida num local que gostava muito. Muitas vezes sonhara com aqueles dias de paz e tranqüilidade longe da bagunça do filho e da frieza com que Ana passara a tratá-lo nos últimos meses. Só que agora que estava livre e podia fazer o que quisesse, não sentia vontade de ir para a farra com os amigos, nem paquerar as mulheres disponíveis que surgiam. A separação é realmente algo que mexe com qualquer um e a tristeza era inevitável! Decidira acatar a decisão de Ana e dar-lhe a separação de maneira amigável. Era o melhor a fazer por causa do filho. Porém ao invés da empolgação de “mais novo solteiro cobiçado do pedaço”, sentia muita melancolia por não ter conseguido superar as dificuldades pelas quais seu casamento passara e que nem eram tão grandes assim. “ Conheço casais que passam por situações complicadíssimas e ficam mais fortes juntos, solidifica mais ainda o casamento. Não entendo como isso aconteceu conosco! Nada me tira da cabeça que Ana se apaixonou por outra pessoa! Só não consegui descobrir ainda quem!!! Ela encobre muito bem esse homem, será que é casado? Algum dos nossos amigos? Ana não é volúvel nem leviana, ela não se envolveria com outro homem se não estivesse verdadeiramente apaixonada! Mas uma coisa é fato...não vou deixar meu filho com ela se esse cara não for alguém confiável. Não quero um qualquer ocupando o meu lugar e sendo Pai para meu filho. Eu tiro ele de Ana!”
Os Pais de Alberto e Ana ficaram chocados com a separação de ambos, pelos mesmos motivos que todos os demais...pareciam perfeitamente felizes! Os Pais de Ana, apesar de pessoas humildes, eram esclarecidos e apoiaram em tudo a decisão da filha. Mas Alice, irmã de Ana, sabia muito bem os motivos e foi a pessoa, depois de Lívia, que mais deu suporte emocional a Ana. Óbvio que ninguém mais além de Alice, sabia dos verdadeiros motivos daquela separação e por esta razão tornava-se a pessoa ideal com quem Ana conseguia desabafar e chorar suas dores.
Flavinho também sentira bastante a falta do Pai! Apesar da pouca paciência de Alberto com ele, o menino estava habituado aos detalhes da convivência diária com o Pai e a Mãe juntos e essa rotina, quando quebrada, agita o emocional. No entanto, em pouquíssimo tempo já propagava para os Avós e os amiguinhos o quanto estava empolgado com o fato de ter duas casas agora! As crianças têm seus próprios métodos de se defenderem das suas dores, e o bom é que realmente conseguem superá-las com muito mais facilidade!

Para Ana a separação também não foi fácil, apesar de ter consciência que era imprescindível! Ela havia combinado com Lívia que enquanto tudo não estivesse formalmente solucionado, ambas deveriam manter-se apenas como a Advogada e sua Assistente! Não podiam correr o risco de serem pegas em alguma situação suspeita ou serem flagradas num beijo ou algo mais quente. Isso poderia chegar facilmente aos ouvidos de Alberto e a reação dele era algo que Ana sabia que seria extremamente negativa para ela.
Lívia por sua vez sentia-se em muitas ocasiões enciumada! Sabia que deveria colaborar com Ana e não pôr em risco a harmonia com que as coisas estavam sendo encaminhadas na Justiça, mas não conseguia evitar o medo de que Ana ainda sentisse falta do casamento e quisesse desistir no meio do caminho. Ou então, que o medo de perder a guarda do filho a afastasse de vez! Adorava o Flavinho e queria protegê-lo também de qualquer sofrimento, mas não ter Ana junto de si como sua mulher todo o tempo, a fazia sofrer muito. Sonhava tanto com o dia em que Ana estaria completamente livre pra ficarem juntas, no entanto sabia que ela sempre carregaria junto de si o peso de responsabilidades que o preconceito poderia atingir fatalmente...era a guarda de seu filho...o nome que construíra com sua competência e a bela carreira...a cidade conservadora...
Por isso Lívia tinha medo...muito medo!
- Olhe pra mim, Lívia! Meus olhos não conseguem enxergar, mas sabem transmitir o que sinto...sinta o Amor que tenho por ti através deles...veja! Ouça meu coração e como ele bate forte quando estamos juntas! Meu Amor, não duvide nunca do que sinto! Eu te amo e não vou desistir de você! Já dei o primeiro grande passo, que é a separação, agora só temos que ter mais paciência pra não estragarmos tudo! Quero muito que possamos morar juntas logo, mas tudo tem que ser de modo bem discreto! Não podemos levantar suspeitas por enquanto!
Ana procurava sempre transmitir a Lívia seus verdadeiros sentimentos, para dar-lhe segurança e não fazê-la sentir-se em segundo plano. Afinal era por ela também que Ana tomara aquela decisão crucial em sua vida!
O que a deixava mais tranqüila era que cada vez que estavam juntas, parecia que aqueles sentimentos tornavam-se mais fortes, mais consolidados. Era como se todas aquelas adversidades servissem para cimentar ainda mais o Amor delas. E tudo era esquecido! Todas as inseguranças sumiam...a certeza de um dia poderem estar juntas de vez crescia...cada vez que se amavam, a força para acreditarem num “final feliz” aumentava...e assim elas seguiam...

Capítulo 18: A REVELAÇÃO...

[16/08/10]
O dia da Audiência de Conciliação entre Ana e Alberto finalmente chegou! Ele demonstrava ter sentido mais a separação que Ana; estava abatido e alguns quilos mais magro. Por sua vez, Ana também estava triste com o término daquela relação de tantos anos, mas muitíssimo aliviada! Agora estava livre para viver seu Amor com Lívia. Sabia que tinham que ser discretas e tentar não atrair a atenção das pessoas para elas. Tudo tinha que ser construído aos poucos...sabiam que os comentários viriam, que as pessoas notariam certos detalhes, como os olhares diferentes, os pequenos gestos, mas o importante era serem respeitadas e protegerem o pequeno Flávio. Ana tinha muito medo que o filho sofresse com o preconceito. Ela não se importava em ter sua vida como tema de mexericos, desde que o filho não fosse atingido.
Márcia havia sido orientada a não por obstáculos quanto às visitas do Pai ao filho. Ana entendia que Alberto deveria ter o direito de estar com o filho sempre que quisesse, que sentisse saudades e vontade de estar com o menino. Seria bom para Flavinho ter o Pai por perto e sentir que ele participava de sua vida com o total apoio da Mãe.
Alberto mostrava-se muito civilizado e disposto a entrar em acordo com a ex-mulher em todos os detalhes da separação legal...bens, pensão, visitas...sabia que Ana era uma pessoa muito íntegra e não criaria nenhuma situação que o prejudicasse.
Assinaram o acordo e, com a melancolia no ar, desejaram-se uma “boa vida” dali pra frente.
Quando Ana saiu do Tribunal, Lívia a esperava do lado de fora, ansiosa pelas novidades. Decidira não acompanhar Ana para que esta não ficasse constrangida em certos momentos...sabia que era uma história que não lhe pertencia e que era um assunto entre Ana e o ex-marido. Não conseguiu disfarçar a alegria quando Ana contou os detalhes da Audiência e que o acordo havia sido amigável em todos os termos...não se contendo, abraçou Ana ali mesmo na porta do Fórum, o que gerou uma certa estranheza em Márcia. Ana tentou disfarçar e disse:
- Lívia! Sei que você torce pelo meu bem estar, mas vou ficar bem e tudo dará certo! Obrigada pela torcida!
Lívia percebeu a gafe:
- Sim, claro! Já que o casamento acabou mesmo, fico feliz que tenha sido da melhor maneira possível, principalmente por causa do Flavinho.
- Alberto foi um “gentleman” como sempre e não criou nenhum problema. Ana também foi ótima e aceitou não impor dias nem horários para as visitas de Alberto ao filho.
Márcia falou com sensação de dever cumprido. Ana acrescentou:
- Nem poderia fazer isso! É pelo bem de meu filho e acho até que esta separação pode aproximar Alberto de Flavinho. Ele andava tão impaciente com o menino antes da separação e ultimamente tenho notado que ele anda muito mais carinhoso e atencioso com o filho. Isso me faz muito bem!
As três desceram as escadas e nem notaram de longe Alberto observando o pequeno grupo...
“Estranho essa tal de Lívia ter abraçado a Ana tão feliz! Qual é a dela?! Parecia estar muito alegre com a consumação da separação! Não tô entendendo! Será que ela sabe quem é o cara por quem Ana está apaixonada e torce pelo tal sujeito? Tenho que descobrir que é de qualquer jeito!”
Ana decidiu ir para casa descansar um pouco da tensão daquele dia. Tudo havia corrido bem, mas no fundo sentia-se desgastada pelas emoções que sentiu. Também queria estar só com Lívia e pediu que Márcia cuidasse de tudo no escritório por aquele dia. Despediram-se dela e Lívia foi dirigindo o carro até a casa de Ana.
- Eu quero que você fique comigo hoje, pode ser?
Lívia não conseguia acreditar no que ouvia:
- Você está me convidando para ficar na sua casa hoje? Dormir aí com você?
- Sim, quero que você venha ficar comigo aos poucos...durma aqui de vez em quando...acho que preciso acostumar as pessoas aqui em casa com sua presença...não quero que eles estranhem quando você se mudar pra cá de vez!
- Meu Amor! Não acredito no que estou ouvindo! Esperei tanto por este dia...o dia em que você me convidaria pra ficar com você, partilhar da sua vida fora do escritório! Eu quero muito ficar, é o que mais quero Ana!
Lívia não se conteve e abraçou Ana com força...pegou sua mão e a fez sentir o quanto seu coração pulava...
- Sinta, Ana! Sinta o quanto meu coração bate louco por você! Esse é um grande dia pra mim e só não será o melhor porque este será quando nós formos finalmente morar juntas! Te amo demais!
Ana beijou de leve os lábios de Lívia e disse:
- Só te peço pra ter paciência, minha amada! Você já foi bastante compreensiva até agora e te agradeço muito por isso, mas temos que continuar viver nosso Amor bem discretamente até que eu sinta que não poderemos mais ser atingidas pelo preconceito ou pela falta de entendimento das pessoas. Penso muito no meu filho...você me entende?
- Eu te entendo Ana e não vou criar problema pra nossa vida por causa disso. O importante pra mim é estar com você, é ter você comigo, é partilharmos a vida juntas. Entendo que tenha que ser aos poucos sim...por mim não haveria problema algum em assumi-la publicamente...mas sei que pra você não será tão simples assim...te amo mais que tudo e vou esperar o tempo que for preciso pra morarmos juntas e tê-la definitivamente como minha mulher! O que importa agora é que já posso tê-la como minha mulher de fato, que interessa que não seja de “Direito”?!
Dito isso, Lívia levou Ana pra dentro da casa...encontraram Cininha arrumando a sala e quando ambas entraram com cara de felicidade a moça estranhou:
- Oi Doutora Ana! Parece que foi tudo bem lá no Juiz, né?!
- Foi sim, Cininha! Estou aliviada por ter posto um ponto final numa situação que nos fazia sofrer muito, e feliz por ter acabado de maneira civilizada e amigável! Ouça bem uma coisa...Alberto pode vir aqui em casa ver o Flavinho a hora que ele quiser tá bom?! Só quero que você me avise quando ele estiver aqui para eu não ser pega de surpresa...não precisa ficar vigiando eles, deixe-os bem a vontade, como se ele ainda morasse nesta casa. Não quero que ele fique constrangido de jeito nenhum.
- Tá bom Doutora, pode deixar que tratarei seu Alberto do mesmo jeito de sempre. A Dona Lívia vai ficar pra almoçar?
- Sim Cininha, vai ficar pra almoçar e passar o dia aqui em casa hoje. Vamos subir pra trabalharmos um pouco e daqui a uma hora desceremos pra comer.
Subiram as escadas e Ana levou Lívia até seu quarto...quando entrou naquele recinto, Lívia sentiu um misto de curiosidade e incômodo...vários porta retratos ainda enfeitavam o local, com fotos de Ana, Alberto e o filho; num outro canto, uma caixa de cigarrilhas aberta jazia meio que deslocada... não gostava de pensar que Ana dividira aquele espaço com Alberto por tantos anos e não se sentia parte daquele ambiente...Ana notou o ar um tanto pesado:
- O que houve?
- Nada!
- Hummm, sinto um nada tão carregado, o que foi?
- Ah, Ana! Pra dizer a verdade, não me sinto à vontade aqui neste quarto! Afinal foi aqui que você viveu tantos anos com Alberto...faziam amor nesta cama, tiveram momentos de felicidade aqui...não quero pensar nisso, mas estou com ciúmes e não quero ter você aqui neste lugar!
- Mas Lívia, acabou! Quando estou com você não penso em mais nada além de nós, nada irá macular nossos momentos aqui e...
- Ana, essa casa é enorme, sei que tem outros quartos aqui, então por favor, vamos ficar em outro?
- Mas...
- Não tem “mas”...já disse que não me sinto bem aqui neste quarto! Você pode até continuar dormindo aqui, mas não comigo!
Lívia estava bem chateada, sentia um ciúme meio sem sentido do passado recente de Ana e não queria aquelas lembranças perturbando o tempo que tinham pra ficar juntas. Ana decidiu não discutir mais...pegou Lívia pela mão e a levou até o quarto de hóspedes que ficava no final do corredor, bem separado do quarto dela e de Flavinho:
- Vou pedir a Cininha pra preparar este quarto pra você. Quando você quiser ficar aqui...
Lívia enlaçou Ana e colou sua boca na dela num beijo exigente e enciumado:
- Não apenas quando eu quiser ficar aqui...este será o quarto onde ficaremos juntas...você pode continuar no seu quarto quando eu não estiver aqui... mas o “nosso” quarto será esse!
Puxou Ana para dentro e fechou a porta! Enroscou os dedos por entre os cabelos de Ana e mostrou a ela com seu beijo urgente e apaixonado que não aceitaria fantasmas de espécie alguma entre elas...eliminaria todos!
Ana se abandonou aquele beijo...esperou tanto por aquele momento, em que poderiam ficar juntas na sua própria casa sem se sentir uma traidora, em paz com sua consciência...queria estar com Lívia mais que tudo e poder se entregar a ela sem medo era bom demais!
Abandonaram-se aos sentidos...era dia, mas o quarto estava na penumbra devido às cortinas pesadas encontrarem-se cerradas...era a luz perfeita pra a visão de Lívia...adorava ver Ana daquele jeito, nua, com o seu corpo contornado por uma luminosidade fraca que a fazia parecer uma pintura de Rembrant com seu jogo de luz e sombras...
Tirou sua próprias roupas e Ana sentiu seu calor antes mesmo que seus corpos se tocassem...estavam a meio palmo, mas o desejo era tanto que latejava na pele e gerava uma corrente que fazia arrepiar todos os pelos do corpo.
Ana levantou a mão e sabia exatamente a que distância estava o rosto de Lívia...fez o contorno da face com a ponta dos dedos e quando chegou ao queixo, fez os polegares deslizarem pela boca úmida e de lábios carnudos...aproximou até que seus seios se tocaram e os mamilos ficaram rijos mostrando o desejo latente...as bocas se procuravam, se sugavam e corriam soltas pelo pescoço, ombro, colo, seios, abdômen, ventre...entregavam-se sem pudor algum em mostrar seus corpos, seus sexos abertos, oferecidos uma à outra, escancarados á espera do gozo certo, a dança que faziam pra alcançá-lo melhor, seus gemidos sensuais, as frases desconexas, indecentes, desavergonhadas...
Nada era feio! Nada era impróprio! Nada era errado!
A beleza contemplava aquele instante de duas mulheres que se amavam além das convenções.
Estavam entrelaçadas, após fazerem amor, quando Lívia falou:
- Eu quero te pedir uma coisa...
- O que é?
- No dia em que formos morar juntas definitivamente, eu gostaria que fôssemos para outra casa...para a “nossa” casa...só assim eu sentiria estar realmente “casando” com você...começando vida nova, num novo lugar...
- Mas essa casa é tão boa...grande...o Flavinho adora esse lugar...
- Ana, você pode até comprar outra igualzinha a esta, mas que não seja esta casa! Você comprou ela com o Alberto para viverem juntos...acabou o casamento, desfaça-se dela junto. Como te disse antes, não quero fantasmas, lembranças do seu casamento junto da gente...claro que não posso apagar o que você viveu com ele, mas pelo menos não quero ficar me lembrando dele no lugar em que for viver com você! Vamos ter a nossa casa, decorar juntas, do nosso gosto...por favor!
Ana compreendeu as razões de Lívia...realmente havia muito de Alberto na casa, ele influenciou muito mais na decoração que Ana, inclusive na cor dos ambientes, afinal ela não enxergava para decidir que tom ficava melhor...por isso ela entendia o que Lívia queria dizer:
- Tá bom, Amor! Não quero que você se preocupe com isso agora! Quando sentirmos que é a hora certa, vamos procurar outra casa e mudaremos para o nosso canto. O lugar que escolheremos juntas e que iremos decorar do nosso jeito, onde você sentirá que é seu também!
- Por isso que te adoro tanto!
E cobriu de beijos a sua Doutora.
Desceram para almoçar e quando estavam à mesa, Ana falou pra Cininha:
- Cininha, por favor, prepare o quarto de hóspedes pra quando a Lívia quiser dormir aqui. Não gosto quando ela sai à noite por aí e fico mais tranqüila se ela dormir aqui de vez em quando. Deixe sempre toalhas limpas no banheiro e o quarto arrumado.
- Pode deixar que arrumo hoje mesmo, Doutora.
O dia passou rápido para elas...ficaram no “novo” quarto de Lívia a tarde toda e só saíram de lá quando Flavinho chegou da escola e subiu as escadas chamando pela Mãe. Ana saiu do quarto e veio receber o filho com um beijo, querendo saber como havia sido na escola...Lívia veio atrás e também beijou o menino e pegou sua mochila para levá-la ao quarto dele. Ambas conversaram e brincaram com o garoto, até que Ana pediu no ouvido de Lívia que ela os deixasse um minuto para conversarem sobre o ocorrido no Fórum pela manhã.
- Flavinho, você sabe que mamãe e papai se separaram hoje de vez, não sabe? Já tinha conversado com você sobre isso antes, lembra? Só quero te dizer que de agora em diante você terá duas casas...essa que é a sua de verdade e a casa do seu Pai quando você quiser ir ficar com ele.
O menino ficou um pouco pensativo e logo falou:
- Sabe, eu até gosto de ter duas casas...assim eu não enjôo!
Ana riu da inocência do filho:
- E o papai vai poder vir te ver a hora que ele quiser e quando você sentir saudades dele, também pode ligar quando quiser ou ir ficar com ele, desde que não tenha que faltar a escola, tá bom?
- Acho isso bom, mãe! Assim o papai fica com saudades de mim e não briga mais comigo quando eu faço barulho!
- É filho, vai ser bem melhor assim. Papai e mamãe já estavam brigando muito e isso não era bom pra ninguém! Nós somos amigos um do outro e amamos você demais!
- Vocês vão namorar de novo com outras pessoas?
- Acho que sim, filho! Pode ser que daqui a algum tempo, não sei quanto tempo, a mamãe e o papai queiram namorar de novo. Você vai ficar triste com isso?
- Não sei! Se forem legais, eu acho que não! Mas se forem chatos, sim!
Ana riu muito:
- E você acha que eu vou arrumar alguém chato?
- Tomara que não!
Ana beijou o filho e desceram pra ver televisão com Lívia.
Ana ficou observando o modo como Lívia brincava com Flavinho e às vezes conversava com ele como se tivessem a mesma idade. Era engraçado e comovente vê-los juntos e se dando tão bem. Pensou em como teria que dizer ao filho, algum dia, que amava Lívia de modo diferente de uma amiga. Sabia que não seria fácil e nem imaginava como começaria tal conversa, mas tinha certeza que seria inevitável este momento, mais cedo ou mais tarde, só rezava para que fosse no tempo certo!
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Os meses foram passando e parecia que a cada dia as pessoas se acostumavam mais a ver Ana e Lívia juntas. Fossem os amigos, a família, em casa...sempre perguntavam por Lívia quando Ana estava só (e eram raríssimos esses momentos) e vice-versa. Lívia ficava cada vez mais na casa de Ana e, nessas ocasiões, Ana dormia no quarto de hóspedes com Lívia. Desde que estava casada com Alberto, Cininha sabia que só podia subir para arrumar os quartos depois que os patrões já tivessem descido e o hábito se manteve. Isso deixava Ana mais tranqüila em não ser flagrada saindo do quarto pela funcionária da casa. Mas ficava um pouco temerosa que um dia fosse surpreendida pelo filho saindo do quarto dela.
Um dia, Alice, sua irmã, ligou dizendo que gostaria de passar uns dias na casa de Ana. Estava de férias e não queria ir para o exterior como sempre fazia. Decidira ir para a sua pequena cidade e matar as saudades dos Pais, irmãos e da querida irmã e sobrinho. Ana ficou muito feliz, mas um pouco receosa sobre o que a irmã acharia da presença tão constante de Lívia em casa.
Conversou com Lívia e esta disse que se Ana quisesse, até deixaria de dormir lá por uns dias, só pra não constrangê-la perante a irmã...mas Ana não aceitou:
- Não Lívia! Alice sabe que me apaixonei por você e é melhor que saiba de uma vez que não pretendo abrir mão desse amor por causa de convenções...
- Mas Amor, eu não quero te colocar numa situação difícil...
- De jeito nenhum! Ela foi maravilhosa comigo quando contei pra ela o que tinha acontecido entre nós e acho que não haverá problemas quando ela estive aqui...além do mais, você quer me matar de saudades é? Ficar sem você aqui pertinho de mim, nem pensar!!!
E Ana não estava errada. Alice chegou e ficou no quarto de baixo, que foi preparado pra ela. Nos dias que ficou com Ana, tornou-se a grande aliada do Amor que as duas viviam. Adorou Lívia e as duas passavam horas conversando sobre as viagens que Alice fazia ao redor do mundo, dos seus amores complicados e de como admirava a irmã por todas as dificuldades que enfrentara ao longo da vida para superar sua deficiência:
- Admiro Ana demais! Ainda mais agora com outro obstáculo a superar...devo confessar que acho este muito maior que a cegueira dela. Você sabe que terão que ter muita coragem e peito pra encarar o que virá pela frente não sabem?
Lívia ergueu o queixo e disse:
- Sei sim Alice! E sei mais ainda que farei de tudo pra que essas pedras no nosso caminho só ajudem a fortalecer o nosso Amor. Sei que teremos muito o que enfrentar e que não será pouca coisa...tenho receio pelo trabalho de Ana, pelo Flavinho, pelos seus Pais e irmãos...mas estou disposta a tudo o que puder fazer para mantê-la comigo e estar junto dela sempre.
Alice olhou para Lívia com ternura. Naqueles poucos dias aprendera a admirar aquela jovem determinada e boa gente, que sabia amar tanto a sua irmã...e afinal, não era o Amor o gatilho para a felicidade? Então que fosse abençoado este Amor!
- E vocês terão todo o meu apoio em todas as decisões que tomarem. Sei que Ana pretende morar com você daqui a algum tempo e até pretendem comprar outra casa pra marcar este compromisso. Saiba que fui convidada e aceitei o convite para ser madrinha e dar minha benção a este compromisso.
Lívia abraçou a “cunhada” e sentiu que, pelo menos da parte de Alice, ela tinha a aprovação de alguém da família de Ana.
Os Pais de Ana também gostavam muito de Lívia. Eram pessoas simples, que moravam num sítio retirado, mas todas as vezes que Ana os visitava ou eles vinham ficar com ela e o neto, tratavam Lívia com muito respeito e educação. Claro que não imaginavam o tipo de relacionamento que unia as duas, mas de qualquer forma, se sentia bem vinda naquela família.
Em casa, Lívia não teria problemas quando a verdade fosse revelada. Sabia que os Pais poderiam até ficar surpresos e um pouco chateados no começo, mas não criariam óbices á escolha da filha. A irmã de Lívia então, Laura, era muito tranqüila quanto a esse assunto...tinha amigos Gays e sempre fora muito amiga da irmã...saberia compreender aquele Amor fora dos padrões.
Seu problema na verdade era Caio. Mesmo passados tantos meses da separação de ambos, ele ainda sentia falta de ex-namorada e não se conformava com o “fora” que havia tomado do dia pra noite. Ligava pra Lívia como se fosse seu amigo e estivesse apenas querendo saber como ela estava, mas ficava sondando tentando descobrir se havia algum outro homem na vida dela.:
- Está namorando, Lívia?
- Não Caio! Não estou querendo ninguém na minha vida por enquanto. Está bom assim e tenho muito trabalho a fazer. Tô sem tempo pra isso...
- Pra isso??? Não acredito! Logo você que sempre foi tão fogosa!
- Vamos parar com esse papo de “cerca Lourenço” que eu tô cheia de trabalho pra fazer...
- É, deve ter muito trabalho mesmo, até dorme na casa da Patroa!
- Caio, eu não quero mais conversar sobre isso...se quiser falar comigo sobre outros assuntos, tudo bem, mas pare de ficar querendo saber da minha vida pessoal. Não vou conversar com você sobre isso, entendeu bem?!
- Tudo bem...tudo bem...fique calma que eu não vou mais te perguntar sobre isso...vamos mudar de assunto então...
E assim ele fazia...ligava para Lívia, mas parecia estar sempre a espreita, querendo saber quem era a “bola da vez” na vida dela...não acreditava que ela estivesse sozinha – “Ela está muito bem! Linda, com uma cara de felicidade! Com certeza ela tem alguém escondido e eu ainda vou descobrir quem é!”
Quando esses telefonemas aconteciam, e Ana estava por perto, era chateação na certa. Ana detestava quando Caio ligava pra Lívia e acabavam sempre tendo uma discussão. Depois desse telefonema, Ana havia ficado tão aborrecida que Lívia decidira não mais atender aos telefonemas de Caio e se ele insistisse, seria direta e objetiva com ele. – “Não quero mais que ele me ligue! Vou cortar logo isso! Não vou ficar me aborrecendo com Ana por causa dessas ligações, não tem o menor cabimento!”
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Alberto costumava passar boa parte do tempo em São Paulo, inclusive nos finais de semana; mas de vez em quando aparecia na casa de Ana sem avisar...sabia que Cininha sempre estava por lá e se por acaso Ana fosse pra algum lugar com o filho, avisaria a ele. Essas visitas não tinham dia certo. Quando batia a saudade do filho e até mesmo da ex-mulher e do lugar onde haviam morado, Alberto ia até a antiga casa. Gostava de chegar assim de surpresa e ver que Ana ainda tinha os mesmos hábitos e parecia estar sozinha.
“Talvez tenha sido cisma da minha cabeça! Pra Ana arranjar outra pessoa, teria que conviver com ele, ter contato próximo. Com ela o “affair” não pode começar com troca de olhares como geralmente começa. Além do mais, essa tal de Lívia não larga do pé dela, mais ainda depois que separamos, ela praticamente mora aqui agora! Como é que Ana poderia ter outra pessoa?! Mas que é estranho, isso é...ela está tão feliz, tão bem! Eu sei que não fazia mal a ela, nosso casamento não era um flagelo! Tem algo mais aí...”
Numa noite, ao chegar em frente a casa de Ana e do filho, percebeu que um rapaz estava parado em frente ao portão, olhando pela fresta tentando ver lá dentro. À princípio, ficou apreensivo pensando ser um meliante...chegou sorrateiro e ficou observando do outro lado da rua para ver qual seria o passo seguinte do sujeito...
Ele continuou olhando durante alguns minutos e depois, como que cansado de não conseguir ver nada, encostou-se na moto que estava parada, pegou o celular, falou nele e ficou como que esperando que alguém saísse.
“Será que é por esse carinha que a Ana está apaixonada? Não é possível! Ele é um fedelho! Deve ter uns 22 ou 23 anos! Não...não é o tipo que Ana se envolveria! É um Playboyzinho, tipo “filhinho de papai”...será???”
Depois de alguns minutos o portão se abre e Lívia aproxima-se do rapaz com ar de extrema irritação. De onde ele estava não ouvia direito o que eles conversavam, apenas algumas palavras soltas. Podia perceber que Lívia estava muito aborrecida com o tal sujeito e pedia que ele não a procurasse mais, que não estava mais interessada e que amava outra pessoa.
O rapaz se descontrolou e começou a sacudir Lívia com raiva, perguntando quem era o homem por quem ela estava apaixonada e que não conseguia esquecê-la...
Alberto não gostava muito de Lívia, mas notou que o rapaz estava a ponto de perder a cabeça e poderia até agredir a moça e machucá-la. Resolveu então intervir naquela briga antes que algo mais sério acontecesse...
- Ei! O que é isso aí?! Larga a moça agora mesmo, cara! Você vai acabar machucando ela!
Alberto chegou apartando as mãos de Caio que sacudiam Lívia vigorosamente, deixando marcas nos seus braços.
Lívia nunca imaginara que um dia viria a gostar de ver Alberto chegando de surpresa!
- Não se meta! Isso aqui é briga de namorados!
- Namorado uma ova! Já terminamos há muitos meses, mas parece que você não entendeu o que já disse pra você...chega, Caio! Acabou! É o fim! Não quero mais, ouviu bem?! Será que agora você entende?
Lívia estava possessa com o jeito agressivo de Caio e sentia dor nos braços.
Alberto interveio:
- Eu não tenho nada a ver com a história de vocês, mas ouviu o que a garota disse rapaz? Cai fora que ela não te quer mais...gosta de outro e não vai adiantar você ficar aí se humilhando...vai pra casa, bota a cabeça no lugar...ou então vai pra um bar encher a cara e beijar na boca...tem um monte de mulher dando sopa por aí...desencana!
Caio estava inconformado:
- Você é o marido da Doutora cega, né?! Não se meta que o assunto não é seu! Qual é a tua? Será que é você o cara com quem ela tá tendo um caso?
Alberto riu irônico:
- Tá louco?! A gente nem vai muito com a cara um do outro! Só não quero que você machuque a menina. Ela trabalha pra minha mulher e Ana gosta muito dela. Se você continuar importunando a moça, tenho certeza que Ana vai tomar providências junto à Polícia e a Justiça contra você. Tô falando pro seu bem, deixa a Lívia em paz que é melhor pra você.
Caio de repente parou e fez uma cara de quem começava a entender algo até então obscuro pra ele...
- É...acho que estou começando a entender...Ana gosta muito de Lívia....
Estalou os dedos como se tivesse descoberto algo que era tão óbvio! Virou-se pra Lívia e disse:
- Desde que você foi trabalhar com essa Doutora Ana, tudo ficou diferente entre nós...você mudou, ficou estranha, mais introspectiva, calada, só ficava bem quando estava com a Dra. Cega...agora começo a entender...
Alberto olhava a cena e não entendia direito o que Caio queria dizer...este virou-se pra ele e acrescentou:
- É, meu irmão, você também dançou igualzinho a mim! Não se tocou de nada não?! Acho que o Amor secreto da minha namorada é a ceguinha da sua mulher! Não enxerga, mas sabe muito bem como seduzir a secretária! Meu Deus! Como não percebi antes! Realiza, cara! Os cegos aqui somos nós!
Alberto sentiu como se um forte soco tivesse atingido seu ouvido. Ficou zonzo e as palavras de Caio pareciam vir de um pesadelo, ao longe...
Caio voltou-se para Lívia e completou:
- Agora sou eu que não te quero mais! Não quero saber de uma Sapatona na minha vida! A concorrência seria desleal! Competir com outra mulher já é demais!!!
Subiu na moto e saiu acelerando forte, fazendo muito barulho e girando num “cavalo de pau”...deixou pra trás um Alberto estupefato e ao seu lado Lívia, sem saber o que dizer...

Capítulo 19: TEMPO DE DOR...

[17/08/10]
Lívia estava estática, não movia um músculo sequer! O medo fazia a adrenalina acelerar seus batimentos a ponto de sentir o coração pulsar na base do pescoço! O chão parecia ter-se aberto sob seus pés e a sensação de desamparo era enorme!
“Meu Deus! O que Caio fez! Como Alberto vai reagir? O que faço agora? E o nosso Amor...Ana...” - A confusão mental era tamanha que Lívia não conseguia completar sequer um simples raciocínio.
Alberto olhava para o rosto de Lívia, mas não era ela que ele enxergava naquele instante. Um filme começou a se desenrolar em sua mente e de repente era como se as peças de um quebra-cabeça tosco começassem a se encaixar e formasse um quadro nítido da realidade.
“O modo como Ana falava ao telefone com Lívia, lembrava o jeito como eles se falavam no começo do namoro... as corridas diárias que a faziam tão feliz...o carinho especial que Ana sempre teve no trato com ela...a viagem a Campos de Jordão que se estendeu por muito mais tempo que o necessário...a volta de lá, quando Ana ficou diferente comigo e não quis mais fazer amor... o tom de voz de Ana que muda toda vez que se refere a Lívia...e agora, ela praticamente morando aqui nesta casa...não pode ser! Então não era homem algum! Ana me disse isso um dia...não há homem algum! Mas há uma mulher! Não posso acreditar nisso!”
Os pensamentos borbulhavam na mente de Alberto, uns atropelando os outros e a cada segundo pareciam tornar mais claro o que por tantos meses ficou obscuro pra ele e pra tanta gente.
Alberto se aproximou de Lívia, olhou bem pra ela e segurando seu braço perguntou num tom entre o desespero e a descrença:
- É você? Diz pra mim que não...não pode ser!
Lívia estava gélida! Tinha seus movimentos e a capacidade de pensar coerentemente paralisados pelo receio do que poderia advir depois daquela descoberta.
Alberto a soltou com uma certa rudeza e entrou pelo portão quase correndo. Lívia foi atrás.

Dentro da casa Ana estava na sala lendo um livro em braile quando Caio ligou para Lívia dizendo que estava em frente a casa dela. Ele insistia para que ela fosse até o portão conversar com ele e Ana havia ficado bastante chateada com a situação. Detestava aqueles telefonemas insistentes daquele garoto e sentia um ciúme incômodo, mesmo sabendo que Lívia a amava e que não queria mais nada com ele.
Lívia decidiu então ter uma conversa definitiva com ele e dizer que não a procurasse mais. Não permitiria mais que Caio gerasse conflito entre ela e Ana.
Só que Lívia estava demorando mais que o normal e Ana ficou bastante apreensiva quando ouviu vozes vindo do lado de fora como se fosse uma discussão. Não conseguia distinguir o que diziam, mas sabia que estavam brigando. Mais estranho ainda quando ouviu uma terceira pessoa chegar como se estivesse se interpondo na briga. Apurou os ouvidos e pensou em chamar Cininha, que estava nos fundos da casa, para ver o que se passava e chamar a Polícia caso fosse preciso. Tinha muito medo por Lívia. – “Aquele troglodita poderia fazer algo contra ela!”
Mas quando se levantou, ouviu o ronco do motor da motocicleta de Caio e decidiu ir até o portão pra ver se Lívia estava bem. Antes mesmo que pudesse alcançar a maçaneta da porta de entrada, esta foi aberta e Alberto entrou quase a derrubando no chão.
- Ah! Você está aí?! Então é isso, Ana!
Alberto falava entre dentes, como se tivesse que fazer muita força para as palavras saírem. Ele estava transtornado pela sua mais recente descoberta. O choque havia sido tão grande que não sabia como agir e nem exatamente o que dizer. Precisava apenas saber...saber a verdade...o que acontecia ali dentro daquela casa, dentro daquele escritório, dentro do coração de Ana.
Ana estava surpresa com o tom de voz de Alberto. Não conseguia distinguir exatamente o que havia naquela voz, mas sabia que era algo grave que o havia deixado furioso.
- Alberto! O que houve? Porque este tom de voz? “Então é isso” o que?!
Nesse momento, Ana sente que Lívia também entrou na casa.
- Ana! O Caio falou um monte de bobagens para o Alberto e ele parece que acreditou no que....
- Cheeegaaa!!! Cale esta boca! Eu quero ouvir o que a Ana tem a me dizer! Quero saber se ela vai ter coragem de mentir pra mim! Diga, Ana! Segure a minha mão e diga se o que acabei de ouvir é verdade! Diz pra mim!!!
Alberto estava muito nervoso e segurou as mãos de Ana, pois sabia que seria através delas que sentiria se Ana estava dizendo a verdade ou não. Se ela se esquivasse, estava mentindo...era assim que fazia...ao invés de desviar o olhar que não via, ela desviava as mãos que sentiam!
Ana não entendia nada. Não tinha a menor idéia do que estava se passando, mas sentiu um frio subir-lhe pelas costas quando as mãos frias e suadas de Alberto seguraram as suas com força além do normal.
- Dizer o que, Alberto??? Não estou entendendo nada!!! Lívia, o que...
- Diga pra mim que é mentira que você tem um caso com essa mulherzinha! É isso que quero ouvir...é isso que preciso ouvir...diz pra mim, Ana!!!
A última frase foi dita num tom bem mais alto e Alberto apertou ainda mais as mãos de Ana.
“Então é isso! Ele descobriu tudo!” – Ana sentiu um aperto no peito bem maior que a pressão que Alberto fazia nas suas mãos. Não tinha mais como fugir daquela verdade ali tão exposta, tão clara! A mentira, fosse por ação ou omissão, não cabia mais naquela estória.
Ana devolveu a Alberto o aperto firme em suas mãos e disse num só fôlego:
- Não é mentira! Eu e Lívia nos amamos sim e de um jeito diferente que meras amigas! Até hoje eu e ela vivemos da maneira mais discreta possível esse Amor para que outras pessoas não sofressem, inclusive você e principalmente nosso filho! Mas eu não tenho do que me envergonhar! Esse Amor é lindo, puro e sincero! Feio é o preconceito das pessoas que costumam não aceitar tudo aquilo que foge ao convencional! Desculpe te dizer isso, Alberto, mas vou lutar contra tudo e todos que tentarem intervir no nosso caminho! Eu e Lívia somos muito dignas, não temos que ter receio ou vergonha de nos amarmos. Farei o que estiver ao meu alcance para manter esse sentimento entre mim e ela cada vez mais sólido, doa a quem doer!
Ana soltou as mãos de Alberto e foi para a direção de onde pensava estar Lívia. Esta segurou seu braço e o toque fez Ana sentir que não era apenas para saber onde ela estava, mas sim para ampará-la e dar-lhe força naquele instante que sabia ser tão difícil, especialmente para Ana.
A curiosidade que sentia em ver o rosto de Alberto naquele momento era enorme, queria saber o que se passava pelos seus olhos. Já Lívia, podia enxergar perfeitamente a enorme confusão de sentimentos pela qual Alberto passava, que estava claramente estampada na sua face. Naquele rosto ela pôde distinguir numa fração de minuto, a raiva, a indignação, a surpresa, a posse e até mesmo uma leve admiração, talvez pela coragem com que Ana falou tão abertamente sobre tudo, sem rodeios.
O silêncio foi longo e pesado. O ar estava carregado de pura tensão e ambas estavam na expectativa do que Alberto diria a seguir, mas o que parecia era que ele ficara mudo, totalmente sem palavras diante da surpresa da verdade. No entanto, quando ele falou, não havia surpresa para Ana nem Lívia nas suas palavras...era exatamente o que elas esperavam dele:
- Vocês não tem vergonha de dizer na minha cara que são amantes e que vivem essa sacanagem toda aqui na minha casa, com o meu filho por perto?!
A voz dele detonava toda a revolta que ele sentia...imaginava quantas vezes havia sido traído com aquela garota...”será que alguém mais sabia? Será que Flavinho já havia percebido algo?”
Ele então olha na direção da área de serviço e vê Cininha parada na porta, ouvindo a discussão.
- E você, Cininha? Já sabia que essa pouca vergonha acontecia aqui nesta casa? Você é conivente com elas?
Cininha estava muito assustada com a revelação e mais ainda com o que poderia vir de Alberto ou acontecer com aquelas duas mulheres que ela admirava e gostava tanto.
- Não seu Alberto. Eu não sabia de nada. Estou sabendo agora que ouvi a Dra. Ana dizer. Mas quero que elas fiquem sabendo que eu vou continuar a mesma, porque adoro as duas e não me interessa o que elas fazem fora das minhas vistas. Eu e meu menino sempre fomos respeitados e tenho certeza que assim vai ser sempre.
- Então você aprova essa pouca vergonha? Tá do lado delas? Também o que eu poderia esperar de alguém ignorante que nem você!
E voltou-se para Ana e Lívia:
- Escute bem vocês duas. Eu não vou permitir que meu filho seja criado por duas lésbicas que pensam que estão brincando de casinha com a minha vida! Vou amanhã mesmo procurar meu advogado e pedir a guarda do Flavinho.
Olhou para Lívia e completou:
- Você roubou tudo de mim! A minha mulher, a minha casa, o meu carro, até mesmo o meu cachorro, mas não vou deixar que você banque o Pai para o meu filho. Isso ele só vai ter a mim. Esse negócio de família moderna, com duas mães, fica muito legal na TV com o filho dos outros! O meu não!!!
Depois começou a falar como se falasse pra si mesmo:
- Elas são umas vagabundas! Há quanto tempo deviam me trair na minha cara e eu nem desconfiava que era com essa fanchona de merda! Quando eu ia desconfiar que minha Ana, tão feminina, tão delicada, ia ter tesão numa garota mal saída das fraldas?! E uma mulher ainda por cima!
Lívia chegou a abrir a boca pra dizer algo, mas Ana não deixou. Segurou forte sua mão e ela sentiu que não era hora de dizer nada. Alberto estava em choque com aquela descoberta e era até plausível que ele sentisse uma certa revolta. O preconceito é inerente às pessoas e na maioria das vezes fica bem escondido por nós mesmos, no fundo da alma, até que um gatilho qualquer faça disparar o que nosso inconsciente guarda com vergonha, mas que acaba por ser mais forte que a própria razão. São nesses momentos de ira, de revolta, que deixamos aflorar o Preconceito guardado e ele se liberta como uma fera enjaulada, causando dilacerações e sofrimento a quem é dirigido.
- Seu Pais sabem dessa safadeza toda, Ana? Aposto que não! Eles não iriam concordar com isso! E os seus Pais, sua Putinha, sabem disso? Claro que não!!! Pois à partir de amanhã todo mundo vai saber! Eu não vou ser o vilão dessa história sem que as pessoas saibam o que está acontecendo. Eles vão saber o porquê de eu querer tirar o Flavinho de você. E você sabe muito bem né Ana, o quanto os boatos se espalham pela cidade com uma ação como essa! Será que você vai conseguir manter sua carteira de clientes depois que eu jogar tudo no ventilador?
Deu uma gargalhada irônica e completou:
- Aposto que não! Você já era Ana! Todo mundo vai saber o quanto vocês são canalhas, o quanto eu fui enganado e não vão mais confiar em você! Seu nome, vai pra lama junto com sua safadeza, e é lá que vocês vão viver, mas sem o meu filho!!!!
Alberto virou-se e foi em direção à porta, quando passou por um pedestal onde havia um abajur, deu um chute e quebrou a peça, que sabia ser uma das preferidas de Ana, pois ela podia distinguir suas cores diferentes.
Ana estremeceu com o barulho, mas ainda mais com as palavras cruéis de Alberto.
- Ana, venha você precisa sentar um pouco. Cininha, por favor, pegue um copo de água bem gelada pra ela e outro pra mim também.
As lágrimas começaram a brotar dos olhos de Ana e Lívia sentiu uma dor enorme no peito. Ela agüentaria qualquer sofrimento, poderia receber os olhares preconceituosos que fossem, as chacotas, as piadinhas de mal gosto....mas não suportaria ver o sofrimento de sua Ana!
- Meu Amor! Não fique assim! Ele estava transtornado pelo choque! Será que ele vai mesmo te expor pra cidade inteira e expor o filho dele também? Não sei...
Ana tocou os lábios de Lívia e disse:
- Ele fará isso sim, Lívia! E eu terei que ser bem forte pra enfrentar o que está por vir. Eu posso suportar qualquer coisa, mas não vou permitir que meu filho seja usado pra me atingir. Vou tentar protegê-lo da melhor maneira possível e acho que pra começar, tenho que dizer pra ele a verdade. A melhor forma de torná-lo forte e saber se defender do que virá será mostrando a ele toda a verdade sempre! E eu vou lutar muito pra ter o meu filho junto de mim, e quero que ele saiba que o Amor que sinto por você é digno e deve ser respeitado!
- Eu acho que já entendi, mamãe! Eu não quero ir embora daqui! Não deixe papai me tirar de você, por favor!
Lívia e Ana deram um pulo de susto! Não esperavam ouvir aquela vozinha chorosa, pedindo ajuda, vinda do alto da escada. Parecia que o menino estava ali o tempo todo. Não sabia o quanto ele tinha ouvido, mas a verdade sobre elas ele estava sabendo.
Flavinho desceu as escadas correndo e se jogou no colo da Mãe chorando. Ver aqueles olhinhos tão tristes em lágrimas cortava o coração de Lívia. Ele agarrou-se ao pescoço da Mãe e disse:
- Eu não quero morar com o Papai! Não me importa que você namore a tia Lívia, eu não ligo! Eu gosto dela também! Porque papai quer me tirar de você só porque você namora com ela, mamãe?
As crianças, na sua simplicidade infantil, sempre são mais sábias que a média geral da população.
Ana abraçou e beijou muito o filho e disse com emoção:
- Meu amado! Mamãe vai lutar até as últimas forças contra qualquer pessoa que queira tirar você de mim! O papai está confuso por saber que eu e tia Lívia namoramos, ele não gostou, mas vai acabar acostumando. Não fique com raiva dele, querido, ele pensa que está querendo o melhor pra você, mas ele logo vai perceber que o melhor pra você é ficar aqui conosco. Deixe o tempo passar e não chore! Mamãe vai falar com o Juiz e você também vai poder falar e tudo vai ficar bem...não chore...confie na mamãe!
Ana consolava o filho, mas no fundo sentia muito medo de não poder cumprir a promessa que fazia naquele momento. Tinha receio de como as pessoas reagiriam, seus Pais, seus colegas de trabalho, seus amigos, clientes...sabia o quanto cruel elas podiam ser quando dominadas pelo preconceito.
O filho ouviria piadinhas no colégio e teria que saber como se defender delas...elas seriam olhadas de modo diferente pelas pessoas, isso não a incomodaria por não enxergar, mas Lívia com certeza sentiria esse olhar na pele...a família poderia cobrar delas e até mesmo segregá-las do convívio...os clientes que muitas vezes confundem a vida pessoal de seu advogado com a confiança em seu trabalho...enfim, era muita coisa pela frente a encarar!
Mas Ana parecia estar encontrando uma força extraordinária para enfrentar tudo o que viria e ela sabia muito bem de onde vinha essa força. Lívia abraçava os dois com imenso carinho e Flavinho agarrava-se ao seu pescoço e ao mesmo tempo segurava uma das mãos de Lívia, como que a apoiando também. Era dali que vinha sua energia...do seu Amor por aquela mulher maravilhosa e por seu filho adorado, do apoio que ambos estavam dando a ela. Tinha ali, naquela sala, sentados no sofá, as pessoas mais preciosas e fundamentais para sua existência e era justamente das duas pessoas que mais amava que obtinha todo o apoio que precisava para prosseguir e lutar contra as coisas menores, contra a mesquinharia e pequenez humanas.

 

Capítulo 20: A LUTA...

[18/08/10]
O litígio foi inevitável! Como Ana previra, Alberto não quis mais saber de conversa ou tentar entender o que para ele era incompreensível: ser trocado por uma mulher!
No dia seguinte a descoberta da verdade, ele procurou seu advogado e entrou com uma ação na Vara de Família a fim de pleitear a guarda do seu filho, sob argumentação que a Mãe não tinha condições “morais” de cuidar do menino.
Ana já esperava esta atitude da parte dele, mas foi com um certo choque que recebeu o Oficial de Justiça em sua casa a fim de intimá-la da Audiência dali a dois meses.
Apesar de não ter impedido em nenhum momento que Alberto continuasse as visitas ao menino, Flavinho muitas vezes não queria ficar sozinho com o Pai. Ana tentou conversar com Alberto para que este não tentasse colocar o menino contra ela ou usá-lo para atingi-la, mas percebia que era o que Alberto fazia em diversas ocasiões, o que deixava Flavinho confuso e bastante nervoso com a situação.
- Mãe, eu não quero sair com meu Pai hoje!
- Porque filho? O que houve?
- Ele fica falando mal de você e da tia Lívia e eu não quero ouvir, não quero saber disso. Gosto de ficar aqui e também gosto do meu Pai, mas ele fica muito chato com isso.
- Meu querido, ouça bem o que mamãe vai lhe dizer...seu Pai está muito chateado com a mamãe por namorar a tia Lívia. Ele não entende o nosso tipo de Amor e isso faz com que ele diga coisas feias e bobas sobre nós. Mas com o tempo, ele vai acabar se acostumando com tudo isso e vai esquecer. Aí, nós também não vamos mais lembrar desses momentos chatos, tá bom?! Fique tranqüilo que vai passar! Basta você não prestar atenção no que ele diz de mal sobre nós. Não dê importância e ele vai cansar! Pense apenas em uma verdade: Eu e você nos amamos além de qualquer coisa! Nada neste mundo será capaz de abalar este Amor, que é sem fim, entendeu?!
- Entendi, mamãe! Não vou mais ligar quando ele começar a falar e vou ficar quieto fingindo que não estou ouvindo.
Ana riu e beijou o filho pegando-o no colo
- Isso mesmo, querido. Não adianta as pessoas falarem bobagens sobre mim ou tia Lívia. Nós nos amamos e amamos você mais que tudo, por isso não vamos ligar nem dar ouvidos para as maldades. Se alguém xingar sua mãe ou você, dizendo coisas feias, não ligue....diga que sua mãe é uma pessoa honesta, trabalhadora, de caráter e que te ama muito, portanto, nada do que eu seja irá mudar ou atrapalhar isso. Isso sim é a verdade sobre nós, meu Amor! Aprenda a dizer para as pessoas: E daí? Minha mãe vive com uma mulher e daí? Elas são felizes, são pessoas boas e me tratam muito bem, que importância tem isso?
- É mesmo. Porque isso chateia tanto eles todos?
- Porque é algo fora do comum. E tudo que foge aquilo que a maioria das pessoas fazem, costumam julgar e falar mal. Só que aqueles que são diferentes também são pessoas boas e merecem viver em paz. Quando você for maior, perceberá melhor o que mamãe está te dizendo agora. Sempre que você quiser conversar comigo sobre isso, fale meu bem! Eu estarei aqui pra ouvir e tentarmos achar juntos uma solução pra qualquer coisa que te faça sofrer, está bem? Não deixe que ninguém te aborreça ou perturbe sem uma resposta firme. Eu te ensino, tá?!
- Tá bom!
E o menino saiu mais alegrinho. Parecia estar mais seguro para enfrentar outras “chateações”.

Os meses que se seguiram ao primeiro confronto com Alberto foram muito difíceis e ao mesmo tempo, cheio de surpresas para Ana e Lívia. Algumas agradáveis e outras nem tanto.
Alberto sempre via o filho em lugares diferentes da casa de Ana ou então vinha até a casa quando tinha certeza de não encontrá-la. Ele também estava muito indignado com toda aquela estória e não sabia como agir direito. Estava com o orgulho ferido e queria muito fazer Ana enxergar a bobagem que estava fazendo. Não se conformava em vê-la com Lívia praticamente morando juntas e pensava que com esse tipo de pressão, de repente conseguiria fazê-la ver que a realidade pra esse tipo de relação pode ser bem difícil. A única arma que tinha era tentar atingir Ana através das pessoas que os cercavam. Por isso fez questão de contar aos Pais e familiares de ambos, bem como aos amigos mais próximos, inclusive Márcia que era sócia de Ana no escritório.
Alberto não economizou em palavras e contava a todos que perguntavam sobre a separação dele e de Ana que havia sido traído com uma outra mulher e por isso ia lutar para ter seu filho junto de si.
Os Pais de Ana ficaram muito abalados com a novidade e foram até a casa dela numa tarde de domingo para ouvirem da filha as explicações para aquela estória. Ao vê-los chegar, Lívia cumprimentou-os e subiu para o quarto a fim de deixar a todos à vontade. Mas não deixou de perceber o cumprimento frio que recebeu. “ Ninguém disse que seria fácil!”
- O que está acontecendo nesta casa, Ana? Alberto nos contou uma história muito esquisita e não conseguimos acreditar nele. Precisamos ouvir de você o que está realmente se passando por aqui!
Disse a Mãe de Ana.
A conversa não foi fácil! Ana contou toda a verdade e ouviu, principalmente de sua Mãe, uma séria de explanações sobre o quanto ela sofreria e faria o filho sofrer com aquela escolha absurda. O Pai mantinha-se quieto e, às vezes balançava a cabeça concordando e outras discordando do que a mulher falava. Ana usou todos os argumentos racionais e emocionais ao seu alcance para justificar sua decisão aos Pais e finalizou dizendo:
- Vocês criaram uma pessoa reta, de muito caráter, muito digna! Eu decidi viver esse Amor, porque é com ela que sou feliz e não vou abrir mão disso por causa de convenções sociais! E sabem quem foi que me ensinou a lutar pelo que sempre quis na vida? Vocês dois! Eu sou uma projeção do que vocês me ensinaram a ser e não vou deixar de ser quem sou por pressão de ninguém! Eu amo vocês e sei que vocês me amam incondicionalmente também, independente se ajo como vocês gostariam ou não. Não peço que entendam as minhas razões e muito menos as minhas emoções, mas espero que pelo menos vocês aceitem o que escolhi pra minha vida. Vou lutar com todas as minhas forças pra manter meu filho comigo e depois que conseguir isso, estarei realizada como pessoa e como mulher!
Mais algumas coisas foram ditas, que soariam repetitivas aqui. A mãe de Ana parecia estar mais inconformada que o Pai. Este abraçou Ana e disse:
- Eu sou um homem do mato, filha! Fui criado meio sem estudo e não sei bem se essas coisas são certas ou erradas. Meu grande medo e da sua mãe também, é que você sofra muito com isso e faça nosso pequeno sofrer também. Mas se você conseguir ficar bem e se sentir feliz assim...só tenho que pedir que Deus a abençoe e nos dê paz!
Beijou a filha e selou ali sua decisão de respeitá-la sempre. A mãe de Lívia, ao ouvir as palavras do marido completou:
- Só espero que isso não seja contra a lei de Deus! Nós te amamos sim, de qualquer jeito, filha! Mas tomara que isso não te traga infelicidade!
E foram embora. Daquele dia em diante, vinham a casa de Ana e ela ia na casa deles, sempre acompanhada de Lívia, que era tratada com respeito, porém com certa reserva. Talvez, um dia, o tempo os deixasse mais à vontade. Não tocaram mais no assunto e evitavam conversar sobre a Audiência. Era algo que deixava a todos tensos e incomodados.
O mesmo se passou com seus irmãos e cunhadas. Alguns foram mais compreensivos, outros mais reticentes. O fato era que as pessoas acabariam por acostumar com a idéia e um dia, poderiam até achar normal aquela relação.
No trabalho Ana foi olhada com estranheza quando um dia chegou ao escritório. Não percebeu nada, pois não podia ver os olhares questionadores, mas Lívia notou cada expressão de curiosidade e algumas de uma leve ironia maldosa. Márcia entrou na sala de ambas e foi logo dizendo:
- O Alberto foi lá em casa ontem e contou um monte de coisas sobre vocês duas. Desculpe abordar esse assunto, Ana, mas acho que é algo que pode vir a influenciar muito em nosso trabalho.
- Pode dizer o que você pensa, Márcia. Somos amigas há muitos anos e você sempre teve total liberdade pra isso.
- Sim, somos muito amigas. E quero que você saiba que continuaremos assim sempre. Eu te adoro, também gosto muito de você Lívia e não me interessa o tipo de relação que vocês duas têm fora do escritório. Eu as respeito do mesmo jeito e admiro mais ainda a coragem de vocês! Vou continuar freqüentando a sua casa, eu e meu marido, e faço questão que vocês estejam sempre com a gente na nossa casa. Mas confesso que a situação aqui no escritório me preocupa bastante!
- Porque? Aconteceu algo?
- Ainda não! Mas Alberto espalhou o que aconteceu entre vocês pra metade da cidade e a outra metade vai ficar sabendo logo, logo! Tenho medo que os clientes comecem a fugir de nós! Seja por preconceito ou por medo de que um escândalo possa atrapalhar sua atuação como advogada!
Ana também tinha essa preocupação:
- Mas alguém já comentou algo ou desistiu de nossos serviços?
- Até agora não! Mas vamos ver até quando!
- Eu tenho uma idéia, Márcia!
Disse Ana com entusiasmo.
- Que idéia?
- Temos duas ações muito importantes, que envolvem muito dinheiro, entre a Prefeitura da cidade e duas Grandes Empresas multinacionais que atuam na cidade, por fraude no recolhimento dos impostos. As ações estão em fase final e em breve teremos uma solução para este caso. Tenho 90% de certeza que ganharemos essas ações. O que precisamos é que assim que as ações forem ganhas, espalharmos propaganda pela cidade alardeando nossa vitória. O Prefeito deve muito ao nosso escritório e não se negará a autorizar que façamos marketing disso. Os clientes vão saber que nosso escritório está indo muito bem e ganhando ações como sempre, sem ser abalado por boatos ou verdades que sejam!
- Grande idéia, Ana! Cliente quer saber de ganhar ação! Que se dane com quem sua advogada dorme! O importante pra eles é o dinheiro no bolso ou a indenização pelo seu dano! Genial essa idéia de fazer propaganda! Podemos até espalhar alguns outdoors pela cidade!
Lívia estava empolgada com a idéia. Ana era muito inteligente e não deixaria tantos anos de trabalho irem para o ralo por causa do preconceito das pessoas. A energia com que Ana fazia as coisas encantava não só Lívia, mas também a todos que a cercavam e não era diferente com os colegas de trabalho. Márcia ficou bem mais relaxada e decidiu pôr mãos à obra e trabalhar com muito mais afinco naqueles dois litígios.
- Soluções práticas como sempre, né Ana? Simples e eficazes! Não é à toa que não me arrependo nem um minuto sequer de trabalhar neste escritório com você! Vamos à luta! Você tem todo o meu apoio, querida! Para qualquer situação, ok?!
E mais uma etapa havia sido passada sem muita preocupação. Ana sabia que a idéia da propaganda daria certo e que sua clientela continuaria fiel, nem que fosse por curiosidade sobre as Doutoras Lésbicas que ganhavam todas.

Em casa, Lívia não teve problemas com os Pais. A mãe, psicóloga, pareceu compreender mais facilmente que o Pai, porém a preocupação com a felicidade da filha era inevitável. O discurso era sempre o mesmo...o quanto sofrido seria enfrentar o preconceito e a maldade das pessoas.
Doutor Olavo ficou um pouco abalado em saber que a filha estava com sua paciente de tantos anos. Gostava muito de Ana, a admirava por sua determinação em ser uma vencedora apesar da cegueira, mas saber que ela estava tendo um caso com sua menina era demais para sua cabeça! Ficou bastante chateado, mas sabia que nada que fizesse demoveria Lívia de sua decisão. Ela parecia estar amando de verdade Ana e não caberia a ele interpor-se entre elas. Que a vida se encarregasse de mostrar as duas o melhor caminho para o bem viver, fosse juntas ou separadas...só o tempo diria se a decisão fora acertada ou não.
Algumas vezes, andava pela rua segurando o braço de Ana, e percebia algumas pessoas olhando na direção delas e fazendo comentários sussurrados. Estavam sendo o alvo principal dos mexericos da pequena cidade nos últimos meses. Eram perfeitas para as bocas fuxiqueiras que precisavam de alguma novidade e de serem alimentadas por acontecimentos fora do ordinário.
Nessas ocasiões, Ana percebia o incômodo de Lívia e costumava dizer:
- Eles vão cansar, meu Amor, acredite! Um dia vai deixar de ser novidade e os olhares inconvenientes irão parar também. Seja paciente e deixe o tempo passar...
Então Lívia dava de ombros e seguia o conselho de Ana. “Um dia vai passar...”

E chega o grande dia do confronto entre Alberto e Ana nos tribunais. A tensão havia se instalado na casa de Ana desde muito cedo. Flavinho parecia senti-la no ar e estava bastante agitado brincando com seu vídeo game de modo mais agressivo que o normal.
Ana estava muito nervosa e preferiu não ir ao escritório naquele dia. Queria tentar se tranqüilizar e estar mais leve para a batalha que viria. A Audiência seria no começo da tarde, logo após o almoço e Lívia pediu que Cininha mantivesse Flavinho entretido enquanto elas iriam para o Fórum. Quando estavam saindo pela porta, o menino agarrou-se às pernas de Ana e disse choroso:
- Mãe, eu não vou ficar com meu Pai! Quero morar aqui com você e com tia Lívia! Eu gosto muito daqui e não me importa o que as pessoas digam, eu quero ficar aqui com vocês!
Ana abraçou o filho e disse:
- Estou indo conversar com o Juiz sobre isso, meu filho. Vou dizer a ele tudo o que você me disse e se ele quiser, podemos levar você até lá outro dia para que você diga isso pra ele, tá bom?
- Tá! Eu falo tudo pra ele, mãe!
- Eu sei, meu Amor! Vamos ver o que ele diz...já volto! Comporte-se e obedeça a Cininha!
Saíram juntas, Ana e Lívia, como sempre estavam nos últimos meses. Não se desgrudavam e não faziam mais a menor questão de tentar esconder o sentimento que as unia dos outros. Dali a minutos seriam expostas diante de um Juiz, de um Curador de Menores e de seus advogados com minúcias de detalhes. Mas o que importava nisso tudo, era a vida de seu filho, era o fato de poder criá-lo ou não. Esse sim seria um marco na sua trajetória e na sua história com Lívia. A decisão que aquele Juiz tomaria seria o ponto chave que determinaria quem venceria aquela batalha: O preconceito ou o Amor incondicional!
A grande luta havia de fato começado...



Capítulo 21: E A LUTA CONTINUA....

[19/08/10]
A sala de Audiências estava bastante gelada, parecia refletir o interior de Ana. Amparada por Márcia, que estava atuando como sua advogada, ela sentou-se e ficou esperando o início da leitura do processo. Sabia que Lívia não poderia entrar para assistir, pois processos de Vara de Família correm em segredo de Justiça e apenas as partes, advogados, o Juiz, Secretário e Promotor podem estar presentes, fora as testemunhas que por ventura existam. Até achou melhor que assim fosse, porque sabia que Lívia poderia ficar aborrecida com certos detalhes que seriam expostos.
Márcia falava baixo em seu ouvido a disposição em que cada um se encontrava no ambiente, para que Ana pudesse voltar-se para a direção correta de onde estavam, quando fosse preciso falar.
O Juiz começou a ler e fazer um resumo do conteúdo do processo, deu algumas instruções ao seu Secretário e começou com as perguntas de praxe. O advogado de Alberto era o Dr. Luiz Carlos, o mesmo que Ana havia enfrentado numa ação em Campos do Jordão a qual ganhara. Lembrou-se que aquele advogado havia dado em cima de Lívia, o que provocara muito ciúme em Ana na ocasião. Agora ele sabia porque ela não dera “bola” pra ele.
O Juiz era um Homem de meia idade, em torno dos 55 anos. Ana ouvira dizer que ele costumava ser bem justo nas suas decisões, mas rigoroso com o seu próprio conceito do que considerava justo. Tinha posições firmes e equilibradas, mas Ana não tinha conhecimento sobre uma situação como a sua ter sido julgada antes por aquele tribunal, pelo menos não tão explícita. Era muito difícil fazer uma previsão do que aconteceria ali naquela sala, pois não havia precedentes para comparar. Portanto, dependeria muito mais da discricionariedade do Magistrado, daquilo que ele entenderia como adequado, dos seus valores pessoais, que das provas ou depoimentos que fossem recolhidos no processo.
O advogado de Alberto começou a fazer a explanação dos motivos do seu cliente para ter ajuizado aquela ação:
- Excelência, o fato é que meu cliente está muito preocupado com o tipo de criação que seu filho pode ter com duas mulheres vivendo juntas como um casal. O Senhor há de convir que não é algo natural nem agradável que uma criança veja sua Mãe aos beijos e em demonstrações afetivas com outra mulher dentro de casa. Meu cliente diz que seu filho já começou a sofrer com as brincadeiras de mau gosto dos coleguinhas na escola. São piadinhas sobre ele ter duas mães, que ele é filho de sapatão e outras coisas do gênero. O menino já começa a dar sinais de estar abalado e seu rendimento no colégio caiu sensivelmente por conta dessa situação. Tudo está devidamente documentado nos autos.
Nós gostaríamos de arrolar testemunhas que irão corroborar o que meu cliente alega. E requeremos a V.Exa. uma liminar para que a guarda do menino seja dada imediatamente ao Pai, a fim de poupá-lo de maiores sofrimentos até a decisão final.
Ana percebeu que o Advogado era bom e não economizaria em palavras duras ou ironias preconceituosas para conseguir a vitória do seu cliente. Conversou meio minuto ao ouvido de Márcia, antes que ela começasse com suas alegações:
- Excelência, meu colega começa suas alegações com inverdades sobre o que se passa na casa de Ana Mendes. Antes de tudo, é bom que se saiba que minha cliente jamais trocou beijos com a Srta. Lívia em público, fosse em casa na frente do filho ou da empregada ou em qualquer outro lugar. Não que ache o beijo homossexual um crime ou uma agressão, mas porque sabe que por não ser algo convencional, ainda incomoda bastante muitas pessoas. Por esta razão e por uma questão de respeito a si e as pessoas que convivem com ela, decidiu que isso não acontecerá. Na minha petição que está acostada aos autos, eu trago provas que minha cliente tem condições financeiras tão boas quanto o Sr. Alberto de proporcionar uma vida excelente para seu filho, além de ter mais tempo pra se dedicar ao filho que o Pai aqui presente, pois trabalha bem próximo a sua casa e procura estar sempre presente nas refeições com o filho e nas atividades da escola. Também possuímos um rol de testemunhas que irão provar que a mãe tem toda a condição moral e social de criar seu filho adequadamente, independente da sua opção sexual. Pedimos que o menino continue na guarda da mãe até que a decisão final seja tomada por este tribunal, pois não há razão plausível, além de puro preconceito, para que isto ocorra.
Foi então ouvido o Promotor de Justiça, atuando como Curador de menores, sobre a guarda da criança:
- Lendo atentamente os autos, pude constatar que o Pai se preocupa com possíveis danos psicológicos que seu filho possa vir a sofrer, por estar sendo exposto a esta situação atípica em sua própria residência. Diz que a criança vem sofrendo com chacotas no colégio e que presencia gestos de afeto entre sua mãe e a companheira dela. No entanto, esta curadoria não vê motivos fortes o suficientes para que o pedido de liminar seja atendido e o menor fique na guarda do Pai até o término deste litígio, pois se há algum mal provocado pela relação homossexual de sua mãe, este já foi feito e ele provavelmente não deixará de sofrer com o preconceito de seus colegas de classe, caso fique na guarda paterna. Por este motivo, pede a Promotoria, que seja negada a liminar.
Ana ouviu aquela explanação com imensa alegria e alívio, mas ainda tinha a decisão do Juiz:
- Este Tribunal acata a promoção do Curador de Menores e rejeita a Liminar. O menor continua na guarda da mãe até que este processo tenha sua decisão final. Designo Audiência para o dia 20 de setembro, às 14:00 horas, daqui a exato um mês e que as testemunhas de ambas as partes sejam arroladas em cinco dias para as devidas intimações. Dou por encerrada esta sessão.
E todos levantaram, porém não com o mesmo humor. Ana estava muito feliz em manter o filho na sua guarda e não conseguia nem pensar na terrível possibilidade de perdê-la. Alberto demonstrou toda a sua fúria ao aproximar-se de Ana e comentar baixo:
- Você pode até ter ganhado esta pequena batalha, Ana, mas não vencerá a Guerra. Eu vou ter meu filho de volta e já tenho várias testemunhas que irão mostrar ao Juiz e a esse Promotor de merda que você é uma irresponsável que colocou aquela lésbica vadia pra morar na nossa casa e expõe o nosso filho à sua safadeza diária com ela. Eu vou acabar com você!
Ana nada disse, pegou no braço de Márcia e ambas saíram para o corredor. Lívia estava do lado de fora esperando ansiosamente pelo resultado.
- E aí? O que foi decidido?
Márcia falou primeiro:
- Por enquanto, só foi decidido o pedido de liminar. O Flavinho continua com vocês!!!
- Que notícia maravilhosa!!! Mas eu pensei que ele fosse dar logo o veredicto!
- Não, Lívia, ele terá que ouvir as testemunhas para formar sua convicção. A Audiência definitiva está marcada pra daqui a um mês. Até lá, teremos que ter muito cuidado com Alberto. Ele está possesso com o resultado de hoje e não poupará esforços para nos prejudicar.
- Entendo, meu Amor! Vamos ter cuidado sim...agora vamos para casa relaxar um pouco e curtir nosso Lindão! Estou doida pra contar logo a novidade pra ele.
- Mas não vamos criar muita expectativa nele, tá?! Ainda tenho muito medo do que pode acontecer daqui a um mês. Vamos ser cautelosas, por favor!
E todos foram embora.

Nas semanas que se seguiram Ana e Lívia tentaram passar tranqüilidade para Flavinho.
Sabiam que o Juiz poderia voltar atrás e conceder a guarda ao Pai e isso seria um golpe muito duro para todos. O menino gostava do Pai e estava até se dando melhor com ele, agora que estava separado de Ana, que antes; mas gostava mesmo era de viver com a Mãe. Era nela que encontrava segurança, carinho, verdade!
Ana arrolou algumas testemunhas, como Cininha, a Professora de Flavinho e sua própria irmã, Alice. Lívia pediu ao Pai, Dr. Olavo, que testemunhasse em favor de Ana no tribunal para dizer ao Juiz que ela tinha plena capacidade de cuidar do filho, pois era independente e muito bem adaptada ao ambiente e às suas dificuldades. Num primeiro momento, Dr. Olavo não achou que deveria, não aprovava 100% o relacionamento de Ana com Lívia, no entanto, não podia ser injusto e deixar de dizer a verdade em favor de sua cliente mais especial. Alberto também tinha seus trunfos e Ana sabia que a luta não seria fácil.
Chegado o dia da Audiência definitiva, onde seria decidido o destino do pequeno Flávio e de seus Pais. Ana saberia, enfim, o que haveria de vencer...o Amor ou o Preconceito!
Primeiro foram ouvidas as testemunhas do lado do Pai. Alberto havia arrolado a Inspetora do colégio do filho, bem como seus Pais, a mãe de uma coleguinha de escola do menino e Caio, que se dispôs a contar ao Juiz tudo o que sua mente despeitada conjeturava sobre Ana e Lívia.
Não vamos aqui nos ater aos detalhes de todos os depoimentos, que levaram por volta de duas horas, mas é importante que se ressalte que é muito bom ver o bom senso prevalecer em detrimento de conceitos arcaicos e fósseis.
Cininha relatou ao Juiz o que de fato acontecia naquela casa no dia a dia. Ana e Lívia não se beijavam em público ou em casa na frente de outras pessoas, no máximo um olhar apaixonado que não se pode esconder e a felicidade que pairava no ambiente. Tratavam o menino com imenso amor a carinho e dedicavam a ele a atenção necessária que uma criança requer nessa fase da vida.
A Professora de Flávio contou ao Juiz que de fato o menino havia sofrido algumas chacotas de colegas de classe, no entanto teria se saído muito bem ao não dar incentivo para que as troças continuassem e os “amiguinhos” inconvenientes simplesmente haviam desistido de espezinhá-lo, cansaram de não ter repiques e fizeram como toda criança normal costuma fazer, esqueceram e voltaram às brincadeiras comuns com o menino. Que Flavinho estava completamente socializado na classe e nada havia que atrapalhasse seu desempenho escolar. Que realmente havia tido notas inferiores nos últimos meses, mas que isso se devia provavelmente à separação dos Pais e às novas mudanças em sua vida, coisa que é comum acontecer entre crianças de Pais separados heterossexuais também.
Alice deu seu apoio público à escolha que a irmã fizera, era o suporte de alguém da família que poderia ajudar na formação da opinião do Juiz.
Dr. Olavo foi crucial quando, com suas observações de especialista, fez o Juízo entender que alguém com a deficiência de Ana poderia ter uma vida plena e normal, sendo completamente capaz de cuidar e criar uma criança.
As testemunhas de Alberto fizeram aquilo que se esperava de cidadãos médios comuns: A Inspetora do colégio em que Flavinho estudava salientou o quanto o menino foi debochado por alguns colegas de escola, e das vezes em que ele brigou com outras crianças por conta de sua mãe namorar outra mulher. Que apesar das chacotas terem cessado, ela conhecia bem as crianças e sabia que quando o menino discutisse com algum colega, certamente as piadinhas e ofensas viriam à tona novamente; bastaria um deslize para jogarem na cara dele que sua mãe era uma lésbica.
Os Pais de Alberto deram seus respectivos depoimentos bem parecidos, demonstrando toda a indignação que sentiam ao saber que a ex-nora havia deixado seu filho por outra mulher.
A mãe de uma amiguinha de escola de Flávio disse que a filha chegou em casa numa tarde perguntando se era normal uma mulher namorar outra, se ela podia fazer aquilo com uma colega de classe. Ela acrescentou o quanto achava aquela situação um mau exemplo para as crianças e adolescentes e que esse tipo de anormalidade não deveria ser considerado algo comum; se existe, deveria ficar com cada um e não ser exposto a todos.
Caio foi ainda mais contundente em sua opinião sobre a relação de Ana e Lívia. Disse ao Juiz o quanto Lívia era amorosa e boa namorada até ir trabalhar com Ana Mendes e que, provavelmente pela sua pouca idade, havia sido seduzida pela advogada. Que achava que Ana traía deliberadamente o marido há muito tempo assim como era traído por Lívia. Que as duas não tinham como criar uma criança juntas, pois seria uma imoralidade e uma coisa fora da natureza.
Por fim, o Juiz e o Promotor quiseram ouvir a opinião da Assistente social que por três vezes havia ido à casa de Ana e ao colégio para conversar com Flavinho.
Ouvidas as testemunhas, os advogados apresentaram suas alegações finais oralmente e uma repetição condensada de tudo que havia sido dito pelas testemunhas foi exposta, com cada um dando ênfase aos pontos que julgavam mais importantes para o êxito de seus clientes.
Alberto parecia bastante satisfeito com seu Causídico e Ana estava muito nervosa com o que seria decidido ali naquela tarde. Confiava em Márcia, sabia que ela tinha dado o melhor de si para aquela causa e em defesa da amiga Ana, talvez ela mesma não tivesse feito melhor. Porém receava que o julgamento pessoal daqueles dois homens à sua frente pendesse para o lado do tradicionalismo e da intolerância; e não apenas o modo como levaria sua vida dali em diante estava em jogo, com também de seu pequeno filho.
O Promotor começou sua explanação resumindo os pontos cruciais que ambos os advogados destacaram, salientando as coisas positivas e negativas que aquele relacionamento trazia para o cotidiano dos envolvidos. Após uma longa pausa, fez sua promoção final:
- Esta Promotoria tem como função precípua a proteção aos direitos do menor aqui envolvido. Sabemos que uma separação traz dores e sofrimento, ainda quando necessária ao bem estar das partes. Quando se tem filhos dessa relação, todo o sofrimento fica ainda maior e mais cuidados devemos ter para que esses filhos sejam protegidos e não sirvam de joguete aos interesses dos Pais. Temos aqui em questão, um casal que já não vivia uma vida plenamente harmoniosa, senão provavelmente outra pessoa não teria o espaço suficiente para interpor-se entre eles, fosse homem ou mulher. Temos também uma criança de apenas 7 anos que sofre com esta separação como tantas outras em nossa sociedade. A mãe refez sua vida amorosa rapidamente com outra mulher e o Pai aparentemente encontra-se só. A questão é saber se o fato da mãe ter um relacionamento amoroso com outra mulher e não um homem, traz mais sofrimento ainda para esta criança. Na opinião desta Promotoria, o sofrimento maior para esta criança é a intolerância que presencia contra sua mãe...é o fato de perceber, apesar da pouca idade, o quanto cruel podem ser as pessoas com aqueles que julgam diferentes de si ou fora do padrão normalmente aceito pela sociedade. O sofrimento com a separação dos Pais é natural e superável, como acontece todos os dias no mundo todo. Mas o sofrimento com a intolerância será permanente se as posturas não forem modificadas aos poucos e nas pequenas decisões. Não creio que privá-lo do convívio com a mãe irá tornar essa criança mais feliz. A própria assistente social pôde constatar em suas conversas com o menor o quanto feliz ele se sentia por viver com a mãe e sua companheira e que seu maior incômodo era justamente não compreender porque as pessoas se incomodavam tanto com o fato de sua mãe ter uma namorada e não um namorado. Esta Promotoria não acha que colaborando para fomentar esse sentimento de segregação com o que é diferente irá colaborar com o bem estar do menor em questão. Não importa qual é a opinião pessoal deste Curador em relação à homossexualidade ou se é viável que um casal homossexual crie uma criança. Devemos saber quando quebrar os tabus que a comunidade nos impõe e nos despojar de opiniões pré-concebidas sobre o que é normal ou não. Os “pré-conceitos” apenas sombreiam os nossos olhos e nos impedem de enxergar algo muito mais simples e que realmente importa na vida de um ser humano: que é a capacidade de se criar uma pessoa com dignidade e Amor, independente de pra que lado pende a sua sexualidade. E neste ponto, a mãe aqui presente, mostrou-se sempre uma pessoa idônea e respeitável, sendo reconhecida como uma mulher de caráter e fibra e admirada por seus pares e pela comunidade que bem a conhece. Por esta razão, esta Promotoria opina pelo indeferimento do pedido do Autor e que a guarda do menor Flávio Mendes Figueira, continue com sua mãe Ana Mendes, ficando o Pai autorizado a visitação conforme decisão já anteriormente tomada.
O coração de Ana pulava de alegria! “A primeira etapa havia sido transposta, agora é com o Juiz!”
Quando o Magistrado finalmente falou, causou grande surpresa para alguns e alívio para outros:
- Após ouvidas atentamente cada uma das testemunhas, os advogados aqui presentes, a opinião tão bem lançada da Douta Promotoria e analisar cada peça do processo, este Juízo decide para que o menor continue na guarda de sua mãe, Ana Mendes, acatando a promoção do Ministério Público, como Curador dos interesses do menor em tela, com seus fundamentos tão bem expostos e que em muito ajudou a esclarecer as dúvidas que por ventura tenham acometido este Magistrado. Intimem-se as partes em Audiência. Transitada em julgado. Arquive-se.
E assim foi! Rápido e sucinto como ninguém imaginava que fosse ser! O Juiz decidiu sem rodeios e deu a Ana a maior felicidade de sua vida: poder viver em paz com a pessoa que escolhera para dividir a vida e seu querido filho, eram as duas pessoas que mais amava e que completavam sua existência. Enfim, a luta entre a intolerância e o respeito à dignidade humana havia tido um final e, felizmente, um final bastante esperado por tantos que sofrem discriminação como elas. Pelo menos, naquele pequeno caso, naquela pequena cidade, no interior do mundo, alguém havia reconhecido que o Amor e o caráter deveriam prevalecer ao “Apartheid” das minorias.
E a cidade inteira falou sobre o assunto. O tema foi até mesmo objeto de várias crônicas e resenhas no principal jornal da cidade, tendo direito até mesmo a um editorial na edição de Domingo. Outros periódicos também publicaram reportagens sobre o assunto, não apenas na cidade como também fora dela e em algumas grandes capitais.
As opiniões se dividiam, mas uma coisa era comum...era uma decisão ímpar e não havia precedentes, até então, em nenhuma outra cidadezinha dos arredores. O Promotor e o Juiz ganharam instantânea notoriedade e passaram a ser ainda mais respeitados por terem gerado uma jurisprudência num caso atípico. Podiam concordar com eles ou não, mas o importante era que tiveram coragem de quebrar uma barreira invisível que impedia o exercício completo dos direitos de todos, sem distinção de opção sexual. Virou até objeto de monografia de colação de grau e Ana e Lívia viraram quase celebridades na pequena cidade.
Claro que tudo que é exposto, acaba gerando controvérsias...algumas pessoas demonstravam apreço e admiração pela coragem de ambas, mas outras as olhavam com reprovação, como se fosse impuras.
Elas não se importavam com essa parte da população. A felicidade por estarem juntas e terem Flavinho compensava qualquer olhar “torto” que pudessem receber vez ou outra.

Alberto ficou bastante chateado com a decisão do Juiz, mas depois de algum tempo, decidiu não interferir na vida pessoal da ex-mulher, em consideração aos anos de boa convivência que tiveram e principalmente ao filho que estava muito feliz por viver com a mãe. Decidiu respeitar a vontade dele, pois também o amava e sabia que brigar com Ana só traria mais sofrimento para ele. Ser preterido é muito ruim e o despeito é o sentimento mais comum nesses casos, mas passa...especialmente quando nosso Amor próprio é forte e nos move pra frente e assim foi com Alberto.
Meses depois já desfilava pela cidade na companhia de belas mulheres e um dia, provavelmente encontraria novamente alguém com quem dividir a vida.

Ana cumpriu o prometido a Lívia e logo que a situação se normalizou e o assédio a elas passou, compraram uma nova casa, no mesmo estilo da anterior, decoraram juntas e foram morar. O sonho das duas estava realizado!
Uma manhã de Domingo, os Pais de Lívia foram almoçar na casa delas e Dr. Olavo começou a conversa com um certo tato:
- Ana, estou há bastante tempo pra ter essa conversa com você, mas você sempre se esquiva ou não me deixa completar o que quero te dizer...
- Já sei sobre o que vai falar, Dr. Olavo, mas é que eu não estou interessada...
Ana estava um pouco incomodada com o rumo daquela conversa e sabia exatamente aonde aquilo acabaria.
- Ana, me deixe terminar, por favor! – Dr. Olavo falava firme.
- Deixe Papai falar, Ana. Talvez depois você pense diferente. - Lívia ponderou.
Ana deu um suspiro longo e aquiesceu com a cabeça. Dr. Olavo continuou:
- Ana, como já te disse antes, a medicina teve enormes avanços na área oftalmológica desde a sua última operação. Sei das vezes em que você ficou cheia de esperanças de voltar a enxergar e nada aconteceu! Entendo que a decepção te abateu muito e tirou suas esperanças de uma pequena melhora que fosse. Só que agora, as chances são bem maiores. Não há promessas fúteis e acho que uma pequena recuperação, que seja, na sua visão, já trará excelentes benefícios para sua qualidade de vida e das pessoas que a cercam. Pense nisso e deixe sua intransigência de lado um pouco. Faça por você essa tentativa, mas também faça por Lívia e pelo seu filho! Imagine o quão felizes eles ficarão se você voltar a enxergar mesmo que pouco! E se por acaso não der certo outra vez, eles estarão do seu lado para confortá-la e tudo continuará igual. As chances de você voltar e ver são grandes, mas a qualidade de sua visão é que pode ficar abaixo de suas expectativas, portanto, quero que você tenha plena consciência que poderá ver sim, mas não perfeitamente. Na minha opinião pessoal, como amigo, acho que pra você só haverá lucro. Mesmo que a visão venha fraca, é melhor que a escuridão total. Pense nisso, Ana. Na pior das hipóteses você continuará como está, pior não tem como ficar.
Ana estava confusa, não sabia se valia à pena arriscar, mas como Dr. Olavo mesmo dissera, o que tinha a perder se não enxergava nada? Seu maior sonho era poder ver o rosto do filho e de Lívia e seria muito bom se isso pudesse acontecer, mesmo que com uma visão fraca.
Lívia segurou sua mão de um lado e Flavinho de outro e ambos disseram quase que simultaneamente:
- Tente!


CAPÍTULO 22

E A LUZ SE FEZ...

[20/08/10]
A operação durou cerca de uma hora e vinte minutos. Muito para um transplante de córnea, que costuma levar de 40 a 50 minutos. Mas o caso de Ana parecia ser um pouco mais complicado devido às intervenções cirúrgicas anteriormente feitas sem sucesso. Além disso, concomitante com o transplante, foi feita uma cirurgia para reparação de uma catarata congênita que também afetava Ana.
Dr. Olavo finalizou seu trabalho com um suspiro de alívio, pela tensão que uma cirurgia delicada como aquela gerava. Durante sua carreira não havia feito muitos transplantes, era mais clínico que cirurgião. De qualquer maneira decidira por operar Ana por conhecer tão bem seu caso e todos os reveses que ela já sofrera. Possuía a qualificação e a formação necessária para fazer o transplante e o lado sentimental também falou mais alto. Usaria sua melhor técnica, daria o melhor de si para que tudo desse certo para Ana. Sabia muito bem o quanto feliz estava sua filha Livia pela decisão de Ana em aceitar fazer a operação e não pretendia decepcioná-la de jeito nenhum.
Ana preferiu tomar anestesia geral e logo que a cirurgia terminou, foi levada para o quarto onde Lívia e seus Pais a esperavam ansiosamente.
Quando Dr. Olavo entrou no quarto logo após, foi abordado pela turma de desesperados querendo saber como tinha sido a cirurgia, e pergunta em cima de pergunta, ninguém entendia nem consegui falar nada...
- Como foi Pai! A Ana vai voltar a enxergar logo?
Lívia era a mais tensa de todos, pois os Pais de Ana já haviam se acostumado pelas outras cirurgias que Ana já havia feito...já estavam acostumados com o fracasso delas...talvez, então, o possível sucesso desse transplante, gerasse neles uma expectativa diferente!
- Dr. Olavo, o senhor acha que minha filha tem realmente chances de voltar a ver? Perguntou a Pai de Ana.
- Calma todos vocês! Toda essa tensão e expectativa não vai ajudar em nada! Ana tem que se sentir calma e relaxada quando voltar da anestesia e vocês estão agitados demais! Se continuarem assim, vou tirar todos do quarto!
Todos se aquietaram e Dr. Olavo continuou…
- Hoje em dia esse tipo de transplante é muito simples, porém como toda operação, é bem delicada! A córnea era de um rapaz jovem, de 23 anos que morreu em um acidente de moto. Como vocês devem saber, só foi operado um olho e a outra córnea foi para outro paciente. Até que Ana teve sorte e ficou pouco tempo na fila de espera…5 meses é bem rápido comparando com outros lugares do País onde chegam a esperar mais de um ano por uma córnea…acho que mais uns 4 meses, se tudo der certo, poderemos operar a outra vista.
- Mas, Pai, ela vai voltar logo a ver ou não?
- Lívia, eu já conversei com você e com a Ana sobre isso...expliquei tudo detalhadamente sobre a cirurgia e as implicações que ela traria...falei também sobre a possibilidade de rejeição e de como a visão dela voltaria aos poucos...
- Mas, Pai! Eu queria que você explicasse tudo outra vez para eu ter certeza que não entendi nada errado e para que os Pais de Ana também saibam o que fazer caso precisem ajudá-la.
- Tá bom, querida! Eu entendo a sua aflição.
Dr. Olavo, aprendera a aceitar o relacionamento de Ana e Lívia e, muitas vezes, já nem lembrava mais que eram duas mulheres e não um casal hetero convencional. No fundo até achava que Lívia, sem dúvida, era muito mais feliz com Ana que seria com qualquer outro Homem. Começou devagar sua explanação, como se estivesse dando uma aula para novos médicos:
- O transplante de córnea é atualmente uma cirurgia bastante segura, embora o seu sucesso dependa da técnica cirúrgica e do pós-operatório. Faz-se necessário um cuidadoso acompanhamento, com remoção dos pontos no momento correto, que será daqui a três meses. Os pontos são invisíveis a olho nú, pois são microscópicos, mas nem por isso deixam de ser pontos e deve-se tomar muito cuidado com eles. Também é fundamental que uma possível rejeição seja imediatamente identificada e tratada como tal, para garantir uma boa qualidade visual e minimizar as possibilidades de uma possível reintervenção no futuro. A rejeição é rara. Costuma-se controlá-la com medicação tópica ou sistêmica. Ocasionalmente pode ser necessária medicação imunossupressora...
- Pai, por favor, explique melhor em linguagem para leigos...a gente não entende direito esses termos médicos!
- Bem, o que quero dizer é que vocês devem ficar atentos se o olho de Ana começar a ficar vermelho e ela reclamar da visão piorar...
- Como assim piorar! Ela é cega! - Comentou a Mãe de Ana com espanto.
- Deixe eu acabar de explicar! - Ponderou o Dr. Olavo.
- Ninguém interrompe mais! Deixa o médico falar! - Clamou o Pai de Ana.
- A recuperação visual é gradativa e ocorre em um período variável de tempo. Alguns pacientes já têm uma visão boa em dois ou três meses, outros só após um ano, quando a cicatrização deve estar completa. Eu expliquei isso muito bem a você, Lívia, e a Ana antes da cirurgia.
- Sim, eu lembro bem desse detalhe Pai!
- Recomenda-se curativo oclusivo por alguns dias, ou seja, eu faço questão de ir a casa de vocês todos os dias cuidar do curativo de Ana. Não quero nem pensar em possíveis riscos de contaminação...quero acompanhar de perto essa recuperação. Depois disso a proteção será feita através de óculos com lentes coloridas...óculos escuros pra ser mais preciso. Ela pode ter muita fotofobia nos primeiros meses e a vista tem que ser protegida por muito tempo ainda. Geralmente há pouca dor após a cirurgia. Pode haver sensação de corpo estranho ao piscar e lacrimejamento, não se assustem, é comum e passa com o uso tópico dos colírios que vou prescrever. Os colírios são de corticóide e a recuperação rápida ou não de Ana vai depender e muito da correta aplicação dos colírios, entenderam bem?
- Sim! - foi dito em uníssono pelos três.
- E qual a possibilidade dela voltar a ver normalmente, Pai? Pode ser o mais claro possível, quero saber quais as chances reais que a Ana tem de ver como eu vejo.
- Bem filha, vou ser o mais realista possível...não se tem previsão da acuidade visual final. Isso quer dizer, em linguagem coloquial, que não posso saber exatamente o quanto de visão Ana irá recuperar...50%, 70%, 90%...a média costuma ser 80% da visão. É quase certo que ela precise usar óculos, e mais tarde quando estiver com a córnea totalmente recuperada dos pontos, lentes de contato. É possível também que ela tenha astigmatismo depois de recuperar a visão, por isso o uso dos óculos ou lentes corretivas...outra cirurgia refrativa pode ser necessária para uma boa visão após o transplante de córnea estar totalmente recuperado, em um ano mais ou menos.
- Tomara que não seja mais preciso cirurgia alguma...Ana está cansada de tanta cirurgia e de tanta decpeção! Tomara que dessa vez minha filha dê sorte e consiga voltar a enxergar para poder ver o rosto lindo do filhinho dela! - Disse a mãe de Ana com voz embargada de emoção.
Dr. Olavo continuou:
- É muito importante que vocês e Ana estejam sempre atentos à possibilidade de rejeição! O período crítico para rejeição é no primeiro ano. Porém, o paciente pode apresentar rejeição até quando viver. Grande parte das rejeições podem ser tratadas com sucesso se forem diagnosticadas no início, por esta razão todo mundo deve estar sempre atento se o olho apresentar vermelhidão sem motivo aparente e ela começar a perder a visão novamente...claro que não é pra virar paranóia e me ligar todas as manhãs quando ela acordar com os olhos cheios de remela e vermelhos, ok Livia?! Bom senso, por favor! Na pior das hipóteses, existe a possibilidade de se realizar outro transplante após a rejeição!
Lívia riu e o Pai continuou...
- Deve-se evitar esforço físico no período de cicatrização e dormir do lado contralateral ao olho operado. Isso eu tenho certeza que você irá cuidar bem, filha! Nada de deixar ela pegar sol demais ou ficar brincando com o Flavinho como se fosse outra criança da idade dele. Ana possui uma grande vantagem, ela enxergou até os 16 anos, por isso não terá problemas pra voltar a ver formas e dimensões que ela já conhece. Ela possui uma completa percepção espacial e sabe muito bem identificar formas e imagens tridimensionais. Pela experiência que possuo, acho que Ana voltará e ver logo e muito bem. Quando operarmos o outro olho então, será o sonho se tornando realidade...sem falsas esperanças!
- Ah, Doutor! Que suas mãos tenham sido abençoados por Deus e que tudo o que o senhor disse agora se torne verdade! - Disse a Mãe de Ana segurando as mãos de Dr. Olavo.
Lívia abraçou o Pai e todos olharam ao mesmo tempo para a paciente que jazia no leito dormindo pelo efeito da anestesia. Parecia tão tranqüila e usava um curativo numa das vistas. Ana não sabia da presença dos quatro ali no quarto e sua inconsciência lhe trazia um sonho estranho...colorido, com rostos desconhecidos e uma voz bem familiar que lhe fazia tão bem...a voz de sua amada Lívia!
Ana dormiu por quase 6 horas e quando acordou, tudo estava como sempre...escuro!
- Tem alguém aqui comigo?
Os três levantaram ao mesmo tempo de seus lugares, estavam cochilando quando ouviram Ana chamar. Lívia foi a primeira e segurar sua mão e dizer:
- Estou aqui, querida! E seus Pais também! Pedi que Cininha ficasse com Flavinho hoje e só trouxesse ele amanhã...mais tarde ligo pra eles e dou notícias...agora me diga como você está se sentindo?
Os Pais de Ana postaram-se do outro lado da cama e acarinhavam sua mão e cabelos.
- Bem, parece que não mudou muita coisa...continuo não vendo nada!
Ana ria, pois sabia que não tinha como ver, afinal tinha um curativo na vista operada e a outra ainda era cega. Todos riram também e a mãe de Ana disse:
- Filha, o Dr. Olavo conversou conosco e explicou direitinho como vai ser...você vai começar a ver aos poucos, a vista vai começar a clarear, você vai ter uma tal de foto...foto...qualquer coisa e depois vai começar e ver de novo, pode até ver tudo igual via antes...
- Lembra que Papai conversou com a gente antes da cirurgia? Ele voltou a dar os detalhes e dizer que teremos que ter muito cuidado com uma possível rejeição...você está sentindo alguma dor? Algum incômodo na vista?
- Não...não sinto absolutamente nada!
- Não tenha pressa! Tudo vai acontecer no seu tempo...cada dia será uma nova surpresa...você verá uma luz a mais, reconhecerá aos poucos os objetos, tudo irá ganhando mais nitidez...
Lívia tentava passar pra Ana a calma que na verdade não sentia. Queria tanto que ela pudesse voltar a ver...ver seu rosto, do filho, ver a natureza, seus Pais, amigos...ver a vida! Estava ansiosa, mas tinha que manter o equilíbrio pra não passar essa ansiedade pra Ana, pois isso poderia atrapalhar sua recuperação.
- Isso mesmo, filha! Tudo tem seu tempo e o melhor a fazer é esperar que sua visão volte como quando você era menina. O Dr. Olavo disse que vai fazer os curativos todos os dias na sua casa. Ele é um homem muito bom, Ana! Sempre cuidou de você e apesar das operações anteriores não terem dado certo, com certeza não foi culpa dele e sim da ciência que ainda não tinha cura pro seu caso...agora eu tenho certeza que você voltará e ver o mundo, filha! Através das mãos desse médico, Deus devolverá a luz aos seus olhos!
O Pai de Ana era um homem de poucas palavras, mas quando falava, era sempre sábio em sua simplicidade.
- Sim Pai, dessa vez acho que estou mais confiante! Tenho tanta vontade de voltar a ver o rosto de vocês...poder ver meu filho...você Lívia!
Apertou mais forte a mão de Lívia que a segurava. Depois perguntou:
- Quando volto pra casa?
- Papai disse que amanhã mesmo...desde que você se comporte direitinho e prometa cumprir tudo o que ele falou...nada de pegar peso ou fazer esforço nos próximos 3 meses...não passar os dedos nos olhos nunca...usar os colírios e tomar o antibiótico direitinho...sol nem pensar...depois de tirar os pontos, aos poucos a gente vai te liberando pra algumas coisinhas...
- Nossa! Vou ser uma prisioneira em casa! Ou então vou ficar mal acostumada e querer essa boa vida pra sempre...todo mundo me paparicando!
- Que injustiça! Você já é a mulher mais paparicada dessa cidade! Por todos nós...seu filho, seus colegas de trabalho, a Cininha...todo mundo baba em cima de você!
Lívia sorria com carinho.
- Nada disso! Eu que paparico vocês todos...além do mais vou enjoar em uma semana de ficar em casa sem fazer nada...ai, ai...fazer o que! Qualquer esforço é válido pra voltar a ver...vai valer a pena, com certeza!
- Sim, com certeza!
Todos falaram, como que combinados, numa só voz.
No dia seguinte, Cininha levou Flavinho para ir buscar a Mãe. O menino já tinha sido avisado de todos os detalhes do pós-operatório e de como seria lenta a recuperação da mãe. Como criança, ele não podia criar uma expectativa de que a Mãe pudesse vê-lo logo que tirasse o curativo. Estava muito eufórico e bombardeou a mãe de perguntas:
- Mãe tá doendo? Eu posso ver o Doutor Olavo fazer os curativos? Sei que não vamos poder brincar de cócegas nem na piscina tão cedo, mas você vai poder me ver depois como eu vejo você, Mãe?
Ana ria da ansiedade do filho.
- Bem primeira pergunta, Não! Não estou sentindo dor...segunda pergunta, sim, você poderá ver o Dr. Olavo fazer os curativos, só não pode ficar falando nem fazendo perguntas enquanto ele estiver trabalhando...terceira pergunta sim, não vamos poder brincar tão cedo, mas aos poucos eu vou poder ver seu rosto, meu querido, e isso é o que mais quero, poder ver seu rostinho que sei que é lindo!
- Bem, todos prontos pra irmos pra casa?
Então vamos logo que sei que Cininha preparou um almoço especial pra Ana ! - Disse Lívia com alegria.
- E tem uma sobremesa mais especial ainda, que ela adora! - Flavinho falou baixinho, como que confidenciando.
- Xiiii...seu linguarudo! Eu sabia que você não ia deixar de contar a surpresa! - Cininha brincou de ralhar com o menino.
E fora todos embora do Hospital com os corações cheios de esperança e promessas de coisas boas pela frente.

Como prometido, Dr. Olavo ía todos os dias na casa de Ana para trocar o curativo. Nesse período tinham conversas amenas e alegres que o aproximavam ainda mais de sua cliente mais especial. Aproveitava pra ver Lívia e de vez em quando ía com a mulher Lúcia e ficavam pro jantar.
Ana estava seguindo à risca as recomendações médicas o que tornava as coisas muito mais fáceis...principalmente com a supervisão de Lívia e de Flavinho, que a todo tempo fazia recomendações cuidadosas à mãe.
Certa noite, Dr. Olavo chegou como de costume e retirou o curativo de olho de Ana. Fez a assepsia de rotina e pingou o colírio...depois levantou-se e disse:
- E então, vamos jantar?
Todos ficaram surpresos e Ana falou:
- Mas e o curativo, o Senhor não vai colocar outro?
- Não, Ana. À partir de hoje você ficará sem o curativo oclusivo e sua vista começará e distinguir um pouco mais que a luz...não quero influenciá-la, mas pode ser até que você consiga perceber vultos de pessoas e objetos. Agora não se empolgue com tudo, pois sua mente também pode enganá-la.
- A mente me enganar! Como assim?
- Você ficou cega por muitos anos...mais precisamente 18 anos...os cientistas descobriram há não muito tempo, que quem enxerga não é o olho, mas o cérebro...é ele quem primeiro vê e depois passa a informação para o olho através de estímulos nervosos...por isso é muito comum em pessoas que voltam a enxergar depois de um longo período de cegueira, verem coisas que não estão realmente lá! Você pode estar andando pela sua casa e ver uma pedra no meio da sala que na verdade não está lá, é apenas um reflexo daquilo que um dia você já viu em algum momento da sua vida. Por isso, à partir de agora, descreva com detalhes tudo aquilo que você conseguir ver, mesmo que seja pouco ou quase nada...quem estiver perto de você dirá o que é realmente e isso te ajudará a ir reconhecendo as formas e reaprendendo a enxergar e definir objetos, pessoas, animais, o que é sombra e o que é massa corporal. Mas não exagere nem fique ansiosa por querer definir tudo de uma vez só...em casos como o seu, a pressa é a maior inimiga, o lema é devagar e sempre...sem afobação, entendeu bem mocinha?!
- Sim Doutor! Posso abrir o olho agora?
- E ele está fechado por que? Não tenha medo...vamos, abra devagar...me diga o que você consegue definir?
Lívia e Flavinho olhavam Ana com nervosismo e uma alegria tensa...a expectativa era muito grande!
Ana abriu os olhos e piscou várias vezes...ficou quase um minuto abrindo e fechando os olhos devagar, tentando se acostumar sem o curativo pressionando-lhe as pálpebras, quando Dr. Olavo ligou uma pequena lanterna na direção de seu olho operado, Ana deu um grito:
- Ai!!! O que é isso no meu olho?! Tem uma claridade muito grande que me incomoda!!!
Ana virou o rosto e sentiu uma leve dor no fundo do olho.
Dr. Olavo sorriu com prazer e pegando Ana pelos ombros disse:
- Parabéns, Dra. Ana Mendes! Mais uma vez você supera as expectativas! Essa pequena luz que seu olho não gostou de ver mostra que seu cérebro está funcionando perfeitamente bem em comum com o nervo óptico e que seu olho recebeu a mensagem e a processou mais rápido que eu esperava! Maravilha! Talvez mais rápido do que eu esperava, vamos ter uma Dra. Ana Mendes dirigindo por esta cidade!
- Dirigir?! O Senhor acha que algum dia eu poderei dirigir?
- E porque não? Quando operarmos a outra vista, você terá grandes chances de fazer tudo o que qualquer outra pessoa que enxergue faz! Mas isso é coisa pra mais adiante...agora temos que nos ater à sua recuperação...o que mais consegue distinguir? Qualquer coisa que seja!
Ana voltou a piscar lentamente os olhos e virou-se na direção de Lívia e Flavinho que estavam mudos de emoção...
- Consigo definir a luz e duas partes mais escuras...uma maior, outra menor...mas não posso dizer que é um vulto de alguém, pois não consigo distinguir cabeça, membros, tronco....vejo apenas como se fosse um monte escuro maior e outro menor! Tem uma luz atrás deles! O que é?
Dr. Olavo parecia bastante contente com a descrição do que Ana estava vendo...
- É assim mesmo Ana! Tirei o seu curativo há exatos três minutos e você já conseguiu sentir fotofobia pela luz da minha lanterninha...já conseguiu ver dois montes escuros que são Lívia e seu filho e ainda por cima conseguiu perceber a luz que vem do corredor! Fantástico! Estamos indo muito bem! Lembre-se, é seu primeiro dia, não queira ver tudo ao mesmo tempo, pois pode cansar...não fique ansiosa e relaxe que a cada dia você irá distinguir algo diferente, irá perceber a cada momento uma coisa nova! Deixe que o tempo e os remédios te ajudarão a realizar seu sonho!
Ana ria como uma criança e abraçou Lívia e Flavinho chorando de emoção!
- Hoje uma nova etapa na minha vida começa e o melhor de tudo é ter vocês dois aqui comigo pra me ajudar. Amo vocês!
- Nós também te amamos muito, Mãe. Você já até conseguiu ver minha sombra!
Todos riram bastante e foram pra sala jantar. Mais tarde, Lívia fez questão de telefonar para os Pais de Ana contando a novidade.

As coisas começaram a acontecer exatamente como Dr. Olavo disse que seria...a cada dia, Ana conseguia distinguir melhor a luz e as sombras das pessoas e dos objetos...aos poucos tudo ia ganhando uma silhueta e ficando mais nítido...ainda não podia ver as feições de Lívia e de seu filho, mas podia já distinguir perfeitamente seus vultos...sabia quando era Lívia e quando era Cininha paradas na sua frente...Lívia era menor, mais magra, tinha as formas mais proporcionais...Cininha era mais alta e grande na sua estrutura...adorava ficar sentada na sala tentando distinguir os objetos de cima da mesinha de centro...não os tocava, apenas olhava e apontava pergutando pra Lívia:
- Aquele objeto meio retangular é o livro sobre o Egito e as pirâmides que trouxe para o Flavinho?
- Sim, é o livro! Você já consegue vê-lo?
- Ainda não...só percebo o seu formato...ainda está tudo muito escuro...mas quando tenho uma luz de fundo, ajuda muito a notar o formato dos objetos e seus vultos pelo contraste de sombra e luz. Ah, Amor! Eu fico tão ansiosa querendo ver melhor tudo...sei que você é linda, mas quero ver suas feições que já conheço tão bem com minhas mãos...quero ver seu corpo em todos os detalhes, saber reconhecer cada cicatriz, cada pintinha...as curvas eu já conheço todas muito bem, quero ver os traços que meus dedos já percorreram tantas vezes! Quero ver como seus olhos falam...o que dizem quando olham pra mim...o jeito que me vê...quero ver seu jeito de andar, de comer, seus gestos, seu sorriso! Sinto falta disso, que ainda não conheço, mas que me é tão familiar!
Lívia ficou emocionada e deitou a cabeça no colo de Ana...
- Você terá todo o tempo do mundo pra ver o que quiser, meu Amor! Quando você conseguir ver meus olhos, a única coisa que lerá neles é que te amo demais!

Numa manhã clara, Ana acordou e ao abrir os olhos, viu mais que a sombra do lustre sobre sua cabeça...levantou o corpo e recostou-se nos travesseiros...olhou na direção de um enorme quadro que cobria um terço da parede em frente à cama...sabia que era um pôster que Lívia mandara fazer das duas...era uma enorme foto com “close” de seus rostos, onde Lívia olhava de cima pra baixo Ana, que de olhos fechados sorria e tocava o rosto de Lívia com uma das mãos...era uma foto singela, em preto e branco, que transmitia a quem visse o quanto aquelas mulheres se amavam!
Ana firmou a vista e conseguiu distinguir mais que a sombra que estava acostumada a ver...olhou na direção da enorme porta de vidro que dava acesso à varanda do quarto e que deixava entrar mais luz que o habitual, pois Lívia havia deixado as cortinas meio abertas...e distinguiu uma luz azul que vinha de fora!
Levantou-se e caminhou até a porta da varanda, abriu-a e consegui ver! Sim, conseguiu ver a luz que vinha da piscina de sua casa...a luz azul era o reflexo do sol na água da piscina e refletia diretamente na porta da varanda de seu quarto! Ana conseguiu ver toda a extensão da piscina, distinguiu seu formado sinuoso e ovalado e as espreguiçadeiras brancas que havia por toda a volta! A claridade a incomodava bastante! Voltou pra dentro do quarto e foi direto para o pôster da parede...e ela viu! Conseguiu ver seu rosto...e o de Lívia...”como é linda o meu Amor!!! Eu sabia que ela era muito mais linda que minhas mãos podiam ver!” . Ainda não distinguia com perfeição as feições, mas já conseguia ver a disposição dos olhos, nariz, boca, cabelo...não estava nítido, mas já via sua Lívia!
Neste instante chamou alto por Lívia...que entra correndo no quarto, assustada pensando que algo de grave acontecera com Ana pelo seu tom de voz...
- O que houve, meu Amor!!! Aconteceu alguma coisa?! Você caiu?!
Lívia estava tão preocupada se Ana estava machucada que nem percebeu o sorriso bobo em seu rosto e as lágrimas que caiam pela face...quando se deu conta, Ana estava sorrindo, olhando pra ela e tocando seu rosto, chorando de emoção...tocou com a ponta dos dedos as sobrancelhas, o contorno dos olhos, o nariz e finalmente pôs-se a acarinhar os lábios que tanto adorava beijar...a covinha delicada no meio do queixo e o contorno harmonioso de seu rosto...as mãos acompanhavam os olhos e tudo o que Ana encontrava no rosto de Lívia, tinha que ser tocado também, como que precisasse ainda do tato para ver melhor...tocou os cabelos de sua amada e disse:
- Estou te vendo, Amor! Estou vendo seu rosto, consigo ver como seus cabelos são lindos, de uma cor tão diferente ! Eles têm a mesma cor dos seus olhos! Que lindo!!! E sua boca...é muito mais linda ainda de se olhar do que a minha mente havia imaginado! Lívia, estou conseguindo vê-la e você é muito mais bonita que minhas mãos disseram!!!
Lívia não cabia em si de tanta emoção e deixando cair as lágrimas que teimavam em brotar dos seus olhos, beijou Ana com Paixão!
Saiu correndo do quarto e trouxe em seguida Flavinho pela mão...
- Olhe, Ana, veja como também é lindo seu filho!
E Ana viu...tocou o filho...chorou e beijou cada pedacinho daquele rosto tão amado! A emoção de conseguir ver com maior nitidez o rosto das pessoas que mais amava era muito mais forte ainda do que Ana imaginara!
À partir daquela manhã, um novo mundo começou a descortinar para Ana! Cada dia com uma descoberta nova, com algo diferente para se olhar com mais atenção! Às vezes ela parava em frente de algum objeto e ficava vários minutos admirando sua forma, sua cor, sua textura...adorava sair para o jardim e ver a profusão de cores que vinha das suas flores, os diferentes tons de verde da vegetação em volta, dos arbustos, das gramíneas, das árvores...como eram lindos os Oitis que circundavam a casa!
Tomou cuidado com o que alertara o Dr. Olavo sobre possíveis reflexos da sua mente, por isso sempre perguntava se o que estava vendo era real! Muitas vezes queria saber se as cores que via eram intensas daquele jeito mesmo...se a paisagem era tão bela como enxergava, se a água do Rio ainda era tão limpa como antes...se Lívia era linda daquele jeito mesmo ou se estava criando imagens irreais! Nessas horas ria bastante implicando com sua amada.
Foi tão bom voltar a ver o rosto dos Pais...estavam mais velhos pelos anos passados, mas ainda eram do mesmo jeito que guardava na lembrança! Num Domingo, fez um almoço em casa e convidou todos os familiares, a irmã Alice, veio de São Paulo passar o final de semana, vieram os irmãos com as famílias...pôde rever todos e conhecer o rosto das cunhadas, dos sobrinhos...era como se estivesse reencontrado a família depois de um longo tempo fora. Como era bom poder resgatar algo tão precioso e simples, que muitas pessoas não dão o valor devido...a vida estava de volta aos seus olhos e não queria perder um minuto sequer da chance que estava tendo novamente de poder admirar a beleza do mundo, das formas, das pessoas à sua volta...tudo era lindo ao seu ver, mesmo que não fosse uma beleza convencional...e até o feio era admirado!

Uma de suas maiores surpresas foi ver o próprio rosto em frente ao espelho, depois de tanto tempo! Passados 18 anos, via-se mais velha, com algumas pequenas diferenças, o rosto ainda era jovem, mas não era mais aquele rosto de menina de 16 anos que via à sua frente...era uma mulher, mais madura, mais sensual, achava-se até mais bonita! Os olhos ainda tinham o mesmo brilho de antes e o sorriso estava mais belo que nunca! Admirou o próprio corpo, de formas generosas e curvas sinuosas...riu ao olhar-se nua e encontrou os olhos de Lívia admirando-a pelo espelho...olhar lânguido, de desejo...
- Por isso que você caiu de amores por mim! Até que eu não sou de se jogar fora né?! Você acha que estou meio fora do peso para os padrões?! Não acha que tenho curvas generosas demais?! Acho que tenho que voltar a correr logo que puder...
Lívia sorriu, um sorriso maroto, de tesão pela visão que sua fêmea provocava nela...aproximou-se por trás de Ana e tocou seus seios, cada mão em um, circundando as auréolas com a ponta dos dedos, sussurrou em seu ouvido com voz baixa e quente...
- Você é toda linda, meu Amor! Amo cada milímetro desse corpo e não permito que você mexa em nada, ouviu bem?! Eu me apaixonei por você ainda criança...nem entendia direito o que era aquela fixação pela sua imagem que eu tinha! Meus olhos te seguiam pelas ruas...eu parava tudo o que estava fazendo cada vez que a via passar e ficava como que hipnotizada por você... no dia do seu casamento, eu estava lá, do outro lado da rua, vendo você entrar toda linda na Igreja, como uma fada! Lembro de cada detalhe da sua roupa, de como estavam os seus cabelos e do sorriso lindo que você estampava...lembro também que senti uma tristeza profunda e que passei o resto da semana numa melancolia inexplicável! Hoje eu sei porque, naquela época ainda não entendia! Eu já te amava, Ana! Por isso nunca consegui amar outra pessoa, nunca me apaixonei de verdade...no fundo eu esperava por você...queria que você me notasse, me reconhecesse, se lembrasse de mim...mas como poderia, se você nunca havia me visto?!
Beijou o lóbulo da orelha de Ana e desceu a língua pelo seu pescoço...Ana olhava pelo enorme espelho do camarim do banheiro, que permitia se verem quase que de corpo inteiro...o coração batia desordenado...era tão lindo ver Lívia admirando seu corpo, beijando-a toda de olhos fechados para sentir melhor seu perfume, sua textura...Ana estava encantada! Queria ver tudo! Ficou paralisada de prazer olhando Lívia beijar os bicos dos seus seios, um por um e ajoelhar-se na sua frente pra prosseguir o passeio com sua boca....no umbigo, no ventre...
- Vamos pra cama... – pediu Lívia cheia de desejo.
- De jeito nenhum! Eu quero ver tudo! Quero olhar você me amando em todos os detalhes...quero ver pelo espelho!
Dizendo isso, fez Lívia sentar-se no vaso sanitário e pôs uma das pernas na borda, a outra ficou apoiada no chão e Ana fez com que seu sexo ficasse exatamente na frente da boca de Lívia, abriu-o com as mãos e ofereceu ao seu Amor como se fosse uma flor desabrochada...
- Vem...me enche de prazer como você faz tão bem...me coma, me sugue como se fosse uma fruta bem suculenta e beba o gozo que vou te dar...quero ver tudo pelo espelho! Quero sentir e ver sua boca me engolir...sua língua brincar com meu grelo...quero ver e sentir sua boca me chupar como só você sabe fazer, Amor...vem...
Lívia obedecia...fazia tudo o que Ana pedia e mais ainda o que sua vontade exigia...Ana olhava a boca de Lívia em seu sexo e o prazer parecia aumentar cada vez que via os lábios de Lívia colados aos seus outros lábios...via a língua mexer, ora delicada, ora firme, seu pedacinho de carne teso e vermelho...o desejo era tão intenso que o mel que saía de seu sexo escorria pelo queixo e pescoço de Lívia...e ela sorvia tudo, com fome, com tesão!
Poder ver Lívia pelo espelho chupando sua xana era muito excitante, mais ainda que Ana podia imaginar...vê-la assim, aparentemente subjugada, mas ao mesmo tempo subjugando, era muito gostoso! Ana rebolava na boca de Lívia e sentiu que, apesar de não querer gozar logo, não agüentava mais segurar o prazer, que veio explosivo, intenso! Dessa vez teve que fechar os olhos...não conseguiu segurar mais! Gozou e gozou tanto que esqueceu que estava em pé e só lembrou quando as pernas bambearam e ela quase caiu, não fosse Lívia segurá-la e fazê-la sentar em seu colo. Abraçou Lívia e disse em seu ouvido:
- Adorei te ver desse jeito, me dando tanto prazer...agora eu quero ver como é seu rosto quando está gozando...vem pra cama, vem...
Ana sabia que Lívia adorava meter-se entre suas pernas...era uma das posições favoritas dela e queria vê-la gozar desse jeito, em cima dela, cavalgando e sentindo os sexos molhados se esfregando...encharcados...esfomeados...querendo devorar-se de tanto tesão! Lívia já estava excitadíssima e não demorou muito a gozar para que sua Ana visse, com deleite indescritível, o prazer que sentia quando amava aquele corpo tão adorado! Depois deitou-se e puxou Ana pra cima de seu peito...Ana olhava-a intensamente, parecia não querer perder uma expressão sequer daquele rosto...
- Sempre que nos amarmos, eu quero olhar você! É tão linda a cara de prazer que você faz, Amor! Quero conhecer todas as suas expressões...poder me perder nesses olhos de mel e sentir o Amor que tem neles...não quero deixar de ver nada! Fiquei tempo demais no escuro...agora quero luz! Vamos comprar mais abajures pro quarto...quero uma luz difusa ali entre as sancas, pra não incomodar a gente...mas suficiente pra que eu possa te olhar sempre...ah, outra coisa! Quero espelhos espalhados por todo esse quarto! Um bem grande ali naquele parede, outro perto da porta da varanda e um no teto pra eu não perder nada !
Lívia gargalhava alto dos gestos e da excitação de Ana com as novidades que a luz trazia aos seus olhos! Era tão lindo vê-la assim, como uma criança descobrindo o mundo, as maravilhas tão simples e cotidianas que muitas vezes não percebemos e nem damos importância...
- Pode deixar, minha paixão! Vou providenciar todos os espelhos e luzes que você quiser! E cada vez que te olhar, saiba que é o Amor mais profundo que sai dos meus olhos pra você!
E recomeçaram as brincadeiras de Amor...


CAPÍTULO 23
EPÍLOGO

[21/08/10]
Quase 16 anos haviam se passado desde que Lívia entrara por aquela sala pela primeira vez! “Tanta coisa mudou em nossas vidas! E pra muito melhor!” – pensava emocionada! Estava sentada em sua sala, onde haviam duas mesas de trabalho, a sua e a de Ana. Depois que se formou, começou a trabalhar com Ana como advogada junior e em pouco tempo já estava como sócia do Escritório. Márcia e Fábio ajudavam a formar o time do Escritório que era considerado campeão de ações naquela região entre São Paulo e Minas Gerais. Denise saíra do Escritório 10 anos atrás quando resolvera casar-se e mudar de cidade com o marido.
Lívia não sabia dizer porque havia sido acometida pelas lembranças do que aconteceu durante todos aqueles anos assim de repente, mas sentia-se levemente saudosa e extremamente feliz por tudo o que elas tinham conseguido superar durante todos aquele tempo juntas! Ana estava em sua mesa separando os processos e mostrando para os dois Estagiários tudo o que eles deveriam preparar na sua ausência e de Lívia. Márcia já estava instruída das ações mais importantes e sabia que elas não deixariam de ligar durante a viagem para saber se tudo corria perfeitamente bem. Sempre foi assim! Elas adoravam viajar juntas e, pelo menos duas vezes por ano, faziam uma grande viagem fosse pelo Brasil ou para fora, mas tinha que ser sempre um lugar diferente, às vezes exótico, às vezes romântico, muitas vezes desafiador! Márcia aprendera a admirar a relação tão bonita e harmoniosa de suas melhores amigas. Achava lindo o modo como Lívia e Ana se tratavam sempre carinhosamente e com muito respeito. Havia realmente um Amor muito grande entre elas e o tempo parecia apenas ter solidificado isso.
Lívia olhava para Ana e continuava em suas divagações sobre a vida que levavam e de como era feliz ao lado daquela mulher maravilhosa! Estavam juntas há mais de 15 anos, mas ainda sentia o mesmo desejo por sua mulher! Adorava o modo como Ana se cuidava, como mantinha o corpo saudável, a pele, o cabelo, como tinha bom gosto para as roupas. “E esse sorriso lindo que me comove até hoje!” - era incrível como ainda sentia o coração bater mais rápido quando percebia o olhar de Amor com que Ana a fitava. Poucas foram as vezes, durante todos esses anos, que precisaram se separar, uma viagem ou outra a trabalho, quando as duas não podiam se ausentar do Escritório ao mesmo tempo. Lembrava muito bem que nessas ocasiões, se ligavam pelo menos umas 5 vezes por dia e quando voltavam era como se tivessem ficado longe por meses! “ Achei que o tempo pudesse diminuir um pouco a intensidade dessa Paixão, mas é como se eu a estivesse namorando ainda...acho que é isso! Ainda namoramos, como nos primeiros anos! Nunca deixamos de nos olhar como eternas namoradas!”
Ana de repente olhou na direção de Lívia e percebeu seus olhos lhe encarando, estáticos e cheios de brilho. Ficou um pouco desconcertada, pois estava na frente dos Estagiários, deu as últimas instruções, dispensou-os e virou-se pra ela:
- Incrível como você ainda consegue me embaraçar com esse jeito de me olhar! Parece que vai me despir com os olhos! Quando é que vou deixar de me arrepiar toda cada vez que você faz isso comigo?!
Fechou a porta da sala, aproximou-se de Lívia e deu um beijo gostoso, demorado em sua amada.
- Pensei que você já estivesse acostumada a esses meus olhares de paixão incontida. Não posso evitar! É mais forte que eu! Que culpa tenho se continuo achando você linda, como da primeira vez que te vi aos 6 anos de idade!
Ana riu, sentou no colo de Lívia e a abraçou dizendo:
- Ah, mas estou tão diferente daquela menina de 17 anos! Tenho quase 50 lembra?!
- Lembro e continuo achando você tão linda como aquela menina de 17. E depois aquela mulher de 34 que reencontrei e que me fez perder o chão! E agora, daqui a duas semanas, será a minha Deusa de 50 anos ! A mulher que me fez tão feliz por todos esses anos e vamos estar comemorando no lugar em que descobrimos nossa Paixão...lá em Campos do Jordão!
- Ah, Amor! Nem acreditei quando você disse ter reservado o mesmo chalé! Incrível ter conseguido! Mas deve estar diferente né?!
- Pelo que soube, diferente pra melhor! Tem mais chalés no hotel e todos estão equipados e muito mais modernos...o nosso mesmo tem uma jacuzzi com água aquecida que fica de cara pra varanda e pra aquela vista maravilhosa das montanhas!
- Não vejo a hora de irmos logo! Aqui no Escritório já tá tudo pronto! Não precisam mais da gente pelas próximas 3 semanas! Estamos de férias finalmente!
- Então vamos logo pra casa preparar nosso trajeto pra essa viagem! Há muito tempo estou querendo fazer outra viagem de carro! Tô um pouco cansada de ficar entrando e saindo de Portos e Aeroportos! Quero um pouco de chão!
- Eu queria partir amanhã mesmo...você acha que dá tempo?! – Perguntou Ana eufórica.
- Não vamos nos apressar tanto, teremos bastante tempo pela frente. Temos que arrumar as malas e pensar no itinerário que vamos seguir...quero voltar naquelas praias todas da Costa Verde do Rio até São Paulo...pegar desde Angra dos Reis, Parati, Ubatuba, Caraguatatuba, São Vicente, Ilha Bela...adoro essas praias! Depois a gente vai seguindo pras montanhas...podemos voltar por Taubaté até Campos do Jordão...quero ir parando em cada lugar, sem pressa...vamos pensar nisso em casa! Pronta?
- Sim, vamos logo! Quero aprontar tudo pra que a gente pegue a estrada no máximo sábado de manhã...hoje ainda é quinta-feira e acho que até amanhã, acabamos os nossos planos de viagem, as malas, nos despedimos de todos e pé na estrada! Você sabe o quanto adoro essas nossas viagens e o tempo que passamos só nós duas!
- Eu também adoro, meu Amor!
Beijou Ana e foram pra casa.

O tempo havia sido generoso com ambas. Claro que Lívia era bem mais jovem que Ana, mas as duas eram vaidosas na medida certa e cuidavam do corpo e do rosto, mantendo-os sadios e com aparência bem mais jovem que a média pra suas idades. Livia ia fazer 39 anos em alguns meses e Ana comemoraria seus 50 anos dali a duas semanas e, pelos planos traçados, seria em Campos do Jordão, na mesma pousada onde quase 16 anos atrás as duas haviam descoberto o verdadeiro Amor!
Fazendo um retrospecto de tudo que havia se passado naqueles anos, Ana e Lívia não podiam reclamar da sorte. Eram mulheres bem sucedidas profissionalmente e na vida pessoal mais ainda!
Depois da primeira operação de córnea, Ana recuperara mais de 70% de visão e 6 meses depois, fez o transplante no outro olho, que também foi um sucesso, com recuperação de quase 80% da acuidade visual. Recuperar a visão foi um sonho transformado em realidade pra Ana e ela deveu muito disso a Lívia e seu Pai, Dr. Olavo. Não fosse a insistência quase que diária dos dois e de seu filho Flávio, talvez ela não tivesse tido coragem de encarar novamente o bisturi e apostado suas esperanças naquela primeira cirurgia.
Um ano depois de feito o último transplante, Ana estava totalmente recuperada, usava apenas lentes de contato ou óculos para corrigir o astigmatismo que tinha ficado. Começou a fazer coisas com que sonhara desde criança e na adolescência e que a perda da visão havia adiado. Retomou o gosto pelo desenho artístico e começou a ter aulas de pintura à óleo, que adorava! Por insistência de Lívia, procurou uma auto escola e aprendeu a dirigir...o que achou até muito bom depois que começaram a viajar bastante nos finais de semana. Ana e Lívia adoravam viajar e sempre que podiam, escolhiam aleatoriamente alguma cidadezinha entre Rio de Janeiro, Minas e São Paulo para passarem o final de semana.
Enquanto Flavinho era pequeno, acompanhava-as sempre que tinha vontade...quando preferia, ficava com os Pais de Lívia na fazenda ou com o Pai. Nas férias ele sempre passava pelo menos duas semanas com Alberto e isso os aproximou bastante ao longo dos anos.
Flavinho sempre adorou morar com a mãe e com Lívia e tinham todos uma relação de muita amizade e respeito. Quando chegou na adolescência, Lívia muitas vezes compreendia melhor os anseios e as dúvidas do menino que Ana. E foi pra Lívia que Flávio contou sobre seu primeiro amor aos 14 anos de idade. Ana não tinha ciúmes, sabia que talvez fosse mais fácil para o filho falar de Amor com Lívia, que era mais como uma grande amiga, que com a Mãe ou o Pai. Gostava de ver o carinho que Lívia tinha pelo seu filho e por ter ajudado a criá-lo, sabia que ela o amava como se fosse seu filho também.
Flávio agora estava com 21 anos e decidira estudar Direito como seus Pais e como Lívia...estava no terceiro ano da faculdade e, apesar de ter um pequeno apartamento no centro da cidade, dado pelo Pai quando ele passou no vestibular, ainda assim mantinha seu quarto na casa da mãe e dormia lá pelo menos umas duas vezes por semana, além de jantar com elas quase todos os dias. Tinha uma namorada de quem gostava muito, que conhecera na faculdade, estavam muito apaixonados e já ouvia a namorada cobrando morarem juntos dali a algum tempo. Essa era uma idéia que não desagradava o rapaz, mas que ele achava que deveriam esperar só um pouquinho mais...talvez tivesse sido muito mal acostumado pelas duas mulheres mais importantes de sua vida e ainda gostava muito de ser chamado por elas de “o homenzinho da casa!”. E era assim mesmo que se sentia, o Homem que cuidava de suas mulheres...vivia cercado delas! Eram as avós dos dois lados que o mimavam, Cininha que ainda trabalhava pra elas e o tratava como se ainda tivesse 5 anos, a mãe e Lívia que o faziam sentir como se fosse o Rei da casa e agora sua namorada, por quem estava apaixonado e queria muito tornar mais sério esse relacionamento, apesar da pouca idade.
Numa noite, estavam em volta da mesa jantando, ele, a mãe e Lívia, quando abordou o assunto:
- Eu e Michele estamos pensando em morar juntos no ano que vem, o que vocês acham?
Ana levou um susto e Lívia percebendo sua aflição pegou em sua mão e disse pra o rapaz:
- Vocês namoram só há 6 meses, não acham um pouco precipitada a decisão de ir morar juntos tão rápido? Só faltam três meses para o ano que vem e vocês não terão nem um ano juntos ainda! Pense bem, Flávio. Terminar um namoro pode ser bem menos sofrido que desmanchar uma casa, um lar.
Ana completou:
- E além disso você é tão menino ainda! Só tem 21 anos, meu filho! Tanto ainda pra conhecer dessa vida…do mundo!
O rapaz parou de comer e olhou bem pra mãe e depois pra Lívia, em seguida começou a falar pausadamente:
- Vocês são bem engraçadas…olhem só pra vocês! Construiram uma vida linda juntas contrariando todas as expectativas desfavoráveis! Lívia era um pouco mais velha só que eu quando se apaixonou por você, minha Mãe e aposto minha vida que ela não se arrependeu um dia sequer de todos esses anos que vocês estão juntas. Você já era uma mulher de renome na sua profissão, tinha um casamento aparentemente perfeito e teve que engolir muita maledicência do povo dessa cidade pra poder viver o Amor que você escolheu, ou melhor, que o destino escolheu pra vocês! Entendo a preocupação de vocês, mas acho que tenho que conhecer os caminhos da felicidade ou da dor pelos meus próprios pés. Se eu for me espelhar no que vocês fizeram, sempre apostarei todas as fichas nos amores que eu tiver…arriscarei tudo, sem medo, porque tenho em minha própria casa o exemplo do que um Amor verdadeiramente forte pode superar para sobreviver a tudo e a todos!
Ana estava com os olhos marejados de lágrimas e olhou pra Lívia, orgulhosa dos valores que elas haviam conseguido passar pro seu filho…generosidade, compreensão, amor puro… levantou-se, beijou os cabelos de Flávio e disse com emoção:
- Você foi meu maior companheiro e a pessoa que mais nos apoiou todos esses anos! Não esqueço cada dia que você chegava cabisbaixo da escola dizendo que algum idiota havia feito comentários maldosos sobre nós e a maneira como você nos defendia deles…e você aprendeu muito bem a se proteger desse tipo de gente! Eu adoro a Michele, sinto que ela também ama você com sinceridade e qualquer decisão que vocês queiram tomar juntos, eu apoiarei!
Lívia levantou-se e abraçou os dois:
- Eu também! Não vejo a hora de ser avó!
- Lívia! Pare de dizer bobagem! Eu não quero ser avó agora! Morar juntos, tudo bem, mas ter filhos já é outra coisa! Eles são muito jovens ainda! Tem que ter uma relação mais sólida pra isso!
- Ah, é?! E eu que já peguei uma família pronta logo de cara!
Ana deu um tapinha no braço de Lívia e falou fazendo careta:
- Nosso caso foi bem diferente...não se encontra um Amor como o nosso a todo instante! Eu espero de coração que esse seja o caso de Flávio e de Michele, mas se não for...que vc saiba abrir seu coração pra reconhecer o Amor quando ele chegar, meu filho!
Flávio abraçou as duas e disse:
- Eu acho que é ela, Mãe! E só fazendo como vocês...arriscando pra valer, caindo de cabeça...é que vou ter certeza!
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Ana e Lívia estavam muito empolgadas com a viagem de carro. Estavam sentadas na frente do mapa, traçando todos os caminhos que queriam percorrer, as pousadas e hotéis que ficariam hospedadas, os passeios de barco, os mergulhos, as trilhas, todas as atividade que queriam praticar. Adoravam fazer viagens onde podiam também exercitar o lado aventureiro...adoravam fazer longas caminhadas, trilhas de bicicleta, mergulhos com cilindro, rafting, rapel, vôos de asa delta ou de ultraleve...já haviam experimentado uma dúzia de esportes radicais nos mais variados cantos do mundo! Em cada viagem, voltavam sempre com a mala abarrotada de fotos, vídeos e histórias de novas aventuras. Já haviam feito safári na África, mergulharam com tubarões na Indonésia, rafting no Grand Canyon, esquiaram nas montanhas geladas e românticas dos Pirineus, pescaram piranha e fizeram um belo sushi no Pantanal Mato-grossense, mergulharam com golfinhos e tartarugas marinhas no Paraíso de Fernando de Noronha, esquiaram no mar da Riviera Francesa, ficaram quase dois meses percorrendo Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Liechtenstein, Alemanha, Suíça e Áustria de bicicleta! As viagens eram sempre de aventura e muito romantismo. Curtiam tanto viajar pelos encantos históricos da velha Itália, como se deliciarem com o friozinho gostoso regado a muito queijo e vinho das serras Gaúchas...era tão bom conhecer os mistérios da exótica Marrocos, como aproveitar um dia de sol na praia do futuro, em Fortaleza, comendo uma deliciosa patola de caranguejo. Tudo tinha sua beleza, seu encanto e parecia apenas ser uma moldura para o Amor que aquelas duas mulheres decidiram por viver em toda a sua plenitude.
Depois que passara a enxergar, Ana pegou o vício de registrar tudo, todas as datas especiais, todas as viagens, especialmente em fotografias. Lívia gostava de fazer os filmes, mas Ana, que havia feito um curso de fotografia, era mais detalhista e queria deixar registrado os momentos mais preciosos que viviam em retratos que mais pareciam obras de arte...eram fotos normais, coloridas, outras em preto e branco, outras falsamente envelhecidas em sépia...haviam várias fotos que Ana tirara delas espalhadas pelas casa...eram fotos de viagens, lugares, só das duas, de Flávio, de amigos e parentes...Ana descobrira outra paixão além dos quadros à óleo! A casa delas parecia uma galeria de arte...eram óleos em tela misturados às fotografias artísticas que Ana tirava! Ana desenvolvera um olhar todo especial, que fazia com que suas peças fossem produzidas com um talento único e raro. E até mesmo um convite para expor suas fotos e pinturas foi feito por um amigo que trabalhava numa galeria em São Paulo. Mas Ana declinara do convite...tinha dito que seu talento deveria ser aprimorado um pouco mais e que, por enquanto, lhe bastava a admiração de Lívia e dos amigos e familiares que conviviam com elas e freqüentavam sua casa.
Lívia era sua maior admiradora e incentivadora para as artes...a cada quadro que Ana terminava, ela tentava arrumar um espaço em algum cômodo da casa que ainda estivesse vazio...quando não cabia mais, era na casa de Flavio, na fazenda dos Pais de Ana ou na casa de seus próprios Pais, que adoravam os quadros. Tinham um apartamento de praia no Rio de Janeiro, em Ipanema, e Lívia também lotara as paredes de fotos e pinturas feitas por Ana...e muitas vezes passava horas admirando cada detalhes dos quadros e das fotos...e nessas horas pensava: “Meu Amor é muito talentosa mesmo!”. Ana por sua vez, adorava saber que quem mais admirava o que fazia era Lívia e, na maioria das vezes, era pensando nela que pintava algo ou que tirava uma foto com maior cuidado. Sabia que ela faria algum elogio e esse era o alimento preferido para a sua alma e para o seu Ego...os elogios de Lívia!
Havia preparado a nova máquina de fotografar que Lívia lhe dera de presente no último Natal, cheia de recursos modernos...adorava registrar tudo que considerava importante ou especial nas viagens e essa não seria diferente.
Pelo contrário, essa viagem seria por demais especial, pois marcava além do aniversário de Ana, 16 anos do encontro das duas, pela primeira vez, no escritório de Ana...ou melhor, marcava a época em que as duas haviam se reencontrado, algumas semanas depois do aniversário de Ana. Lívia queria levar Ana a lugares onde não iam já há alguns anos, apesar de tão perto da cidade onde moravam! Queriam tanto conhecer vários lugares ao redor do mundo, que acabavam por deixar pra depois os lugares mais próximos. A idéia partiu da própria Ana, que pensava passar seu aniversário onde tudo começou pras duas. Em Campos do Jordão! Adorava aquela cidade, tinham voltado lá mais algumas outras vezes depois que Ana passara a enxergar, mas não tinham conseguido ficar na pousada em Santo Antonio do Pinhal que tanto queriam rever. Dessa vez, tudo foi cuidadosamente planejado por Lívia...ela havia ligado com bastante antecedência e reservara o mesmo chalé que haviam ficado da primeira vez. Levariam uns 10 dias passeando pelo litoral e depois iriam pra Campos do Jordão pela serra de Taubaté...chegariam na cidade um dia antes do aniversário de Ana e lá, naquele cantinho mágico no ponto mais alto de Santo Antonio do Pinhal, elas comemorariam o aniversário de Ana e os anos de felicidade juntas! Lívia havia comprado um lindo anel de ouro branco, em formato de um hexágono, com vários brilhantinhos formando um desenho de uma cabala na superfície. Em ocasiões especiais como essa, gostava de presentear Ana com algo duradouro, que a fizesse sempre lembrar do momento único que viviam. Esperava dar o anel no jantar romântico que teriam na noite do aniversário de Ana...só as duas, no chalé do topo da montanha!

Na sexta-feira, véspera da viagem, Ana e Lívia ofereceram um jantar na casa delas para a família...queriam dividir com todos aquele momento especialmente feliz da vida delas...estavam no auge da vida profissional, pois o Escritório era um dos mais famosos do Vale do Paraíba e adjacências...Flavinho tomara a decisão de ir morar com a namorada e começar a trabalhar com elas no Escritório para ir se familiarizando com aquilo que um dia seria seu...afetivamente viviam um momento de muita felicidade conjugal, uma felicidade plena, que raramente encontra-se em casais juntos há tanto tempo, sejam hetero ou homo...queriam então partilhar aquela boa fase com todos que também, de alguma forma, contribuíram para tanta harmonia e alegria na vida delas.
Às 7:00 horas da noite, as primeiras pessoas começaram a chegar...
Alice, irmã de Ana, com o marido, um piloto da mesma empresa que ela trabalhava, com a filhinha de 8 anos....logo após chegaram os Pais de Ana com os dois irmãos dela e suas respectivas mulheres...vieram também os Pais de Lívia e sua irmã Laura, que havia voltado a morar na cidade com o marido e os dois filhos de 10 e 12 anos...então chegou Flavinho com a namorada Michele, que adorava Ana e Lívia, acompanhados de Alberto e sua mais nova esposa, uma jovem de 28 anos com quem havia casado há um ano...parecia estar feliz depois de três casamentos fracassados ao longos dos últimos 15 anos. Um tempo após a separação de Ana e o litígio perdido no Tribunal, Alberto retomara a vida que no fundo sempre quis, de conquistador inveterado. Tivera uma infinidade de namoradas e com algumas resolveu casar, porém os casamentos não duravam mais que dois anos e ele voltava a sua vida de solteiro...agora já estava com 52 anos e dizia estar cansado de tanto vadiar, então encontrou uma bela moça, bem mais jovem que ele e apostou num novo casamento...se iria dar certo, ninguém sabe, mas a moça já estava grávida e Alberto parecida estar radiante com a possibilidade de começar tudo outra vez! Sentia-se revitalizado, jovem de novo! Ana ficava feliz pelo ex-marido...passaram a ter uma relação bem amistosa e ele tratava Lívia com bastante respeito e cordialidade...voltara a ser o Alberto brincalhão e boa praça que conhecera quando adolescente.
Chegaram ainda Márcia com o marido Carlos...depois veio Armando, um amigo que Ana fez no curso de fotografia, com o namorado Henrique...Maria Clara, vizinha e uma grande amiga de mais de 10 anos com o eterno namorado, Júlio...Fábio com a mulher, Marisa...e duas amigas Fernanda e Leila, um casal que Ana e Livia conheceram num cruzeiro para Gays às Ilhas do Caribe e com as quais travaram uma amizade que já durava mais de 6 anos.
A casa estava cheia! Eram amigos e parentes conversando uns com os outros, eram rodinhas de bate papo animadas, onde vez ou outra alguém soltava uma sonora gargalhada, regada a boa bebida e aos maravilhosos petiscos que Cininha ajudara Lívia a preparar. Eram pessoas totalmente diferentes, mas que conviviam na mais completa harmonia, aceitando e respeitando suas diferenças, deixando prevalecer a amizade e o afeto que reinava naquele ambiente. Ana tirava muitas fotos, queria deixar registrado aquela noite ímpar, onde conseguira reunir tanta gente, alguns que acompanharam a trajetória das duas desde o começo, outros novos amigos que se juntavam aos velhos e formavam uma bonita tela de convivência fraternal. Em um dado momento, puxou Lívia pelo braço e apontando para enorme sala onde os convivas se espalhavam, perguntou:
- Você sonhou algum dia em ver tanta gente diferente junta na mais completa harmonia? Se dando tão bem...rindo umas das outras...brincando e fazendo graça uma com as outras com tanto afeto?!
Lívia olhou pra Ana e viu como brilhava de alegria seus olhos tão grandes e iluminados...pegou sua mão, deu-lhe um beijo delicado no rosto e disse:
- Sonhei sim Amor! Era o meu sonho mais freqüente...ter uma vida completa com você! Poder ser feliz, mas também ver nosso filho feliz, nossas famílias em harmonia, nossos amigos partilhando da nossa felicidade...era tudo o que sempre imaginei pra nós! E é real, Ana! O melhor de tudo é isso! Não é sonho, é a nossa realidade! Através da nossa hombridade, do respeito que sempre tivemos pelas pessoas, da vida digna que sempre levamos e demos ao nosso filho, servimos de bom exemplo pra todos...as pessoas nos respeitam e admiram...não somos vistas nesta cidade como uma aberração e sim como exemplo de superação e de Amor! Esse era o meu sonho e ele se realizou! Te amo demais, hoje e sempre!
Ana estava emocionada! Abraçou Lívia e disse em seu ouvido:
- Eu também Te amo pra sempre! Pra vida toda e pras outras vidas também, se por acaso tivermos mais algumas...hahahaha! Não pode existir felicidade maior que a minha! Eu tenho tudo o que sempre desejei e você e Flavinho são a minha vida! Sou uma mulher realizada!
E caminharam de mãos dadas para a sala a fim de se juntarem às pessoas que eram as mais importantes em suas vidas, e que partilhavam da felicidade suprema daquela família diferente das convencionais e especial na sua integridade!
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Foi uma fração de segundos! O final de tarde era lindo! Voltavam das férias mais gostosas dos últimos tempos! A Noite chegando...uma serra com curvas íngremes e sinuosas demais...um pequeno caminhão com freios mal conservados, mas pesado o suficiente para, ao bater num pequeno carro de passeio, fazê-lo voar por entre as escarpas da Serra do Mar!
Foi instantâneo! Não deu tempo nem de um grito de susto! O socorro veio meia hora depois, mas não havia o que fazer! Os Policiais Rodoviários olhavam com tristeza para as duas mulheres que jaziam no interior do carro, sem vida! Engraçado, pareciam estar de mãos dadas! No carro muitas malas e uma câmera fotográfica intacta, onde muitas fotos mostravam que elas tinham feito uma viagem à passeio por aquela região. O Policial pegou a câmera e ficou olhando as fotos, imaginando como o destino permitia que as pessoas tivessem momentos tão bons e, quando pareciam estar no auge, no melhor, tudo lhes era confiscado, assim tão de repente! Num sopro!
Naquela linda manhã de Domingo, a pequena cidade do Vale do Paraíba, conheceu um de seus dias mais tristes! O cortejo fúnebre saiu da bela casa em que, nos últimos 16 anos, duas mulheres que se amaram mais que o normal, partilharam uma vida plena! Centenas de pessoas caminhavam de cabeça baixa e com um pesar profundo no coração! A multidão acompanhava em silêncio os dois caixões, que percorriam devagar o longo caminho até o pequeno cemitério da cidade! Como é comum no interior, os cortejos muitas vezes são feitos à pé até o destino final! Em cada rua que passavam, uma janela era aberta e alguém olhava com profunda tristeza para o séquito de dor...algumas abaixavam a cabeça em respeito e comoção. Os jornais da cidade e de outras cidades vizinhas publicaram em seus obituários as condolências da família e de diversos amigos e admiradores. Em Editorial, foi contada a história de Ana e Lívia, como um Romance de ficção que todos acompanharam em seus detalhes e passaram a admirar e respeitar, muitas vezes até torcendo por elas!
Parentes e amigos, chocados e profundamente abalados em suas dores, não acreditavam nem compreendiam como aquele desaparecimento súbito podia acontecer justamente quando estavam mais felizes!
Corroídos pela tristeza, não enxergavam que elas se foram no melhor momento de suas vidas, quando eram mais felizes, e era justamente aí que residia a beleza definitiva da história delas! Não haveria declínio! A curva da felicidade não sofreria uma queda, não haveria pesar! Foram felizes até o fim e nem a morte as separou!
A estória sobre o Amor inabalável de Ana e Lívia virou lenda e percorre, até hoje, as pequenas cidades dos arredores. No cemitério onde estão enterradas, há uma pequena capela de mármore branco...no seu interior existem duas urnas funerárias, uma ao lado da outra, adornadas com fotos e sorrisos de dias felizes...flores frescas são repostas semanalmente por parentes ou amigos que as visitam...uma enorme placa de pedra sabão forma a lápide, com as datas do nascimento e da morte delas e que traz os seguintes dizeres lindamente elaborados pelo filho de ambas, Flávio:
“Em nossa ignorância de meros observadores da vida, não conseguimos decifrar quais são os desígnios do Senhor! Choramos a nossa dor sem compreender como pessoas tão amadas se vão em momentos tão lindos! Nada temos a fazer senão aceitar e reverenciar suas memórias da maneira que merecem! Morreram da mesma forma que viveram, intensas e felizes! E ainda puderam ver o quanto o Amor ímpar e verdadeiro que sentiam tocava cada um de nós e modificava nossas vidas, cada qual a seu modo! Deus as acolheu, com certeza! Deixo nesta lápide minhas lágrimas sem fim e um poema da poetisa preferida de minhas Mães Ana e Lívia:
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce lago
E, como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má morte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
má fada me encantou e aqui fiquei
à tua espera... quebra-me o encanto!
Florbela Espanca.
Com eterno Amor de seu filho, Flávio.
FIM
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Observação da autora: Esta estória é baseada em fatos verídicos. Por esta razão, detalhes como nomes de todos os personagens e a cidade onde tudo se passou, foram omitidos ou trocados. Permiti-me usar e abusar de uma licença poética sem fim para os detalhes mais íntimos. Jamais encontrei pessoalmente Lívia e Ana, soube da “lenda” delas por terceiros. Não tive aqui qualquer outra pretensão que não fosse contar uma estória que me comoveu e partilhá-la com vocês.
Até a próxima
Marcya

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