O Cavaleiro de Monte Verde

O cavaleiro de Monte Verde

Esse conto, pertence a Endless, pode ser encontrado no site Livre arbitrio, foi um conto que li recentemente, já que não estava lendo mais os contos. espero que gostem e boa leitura.

Bjs



Captilulo 01
[16/08/11]

“Nos rasgos feitos em minhas costas, procurava o rosto dela... Um líquido de cheiro inconfundível me escorria pelas costas e, seu grito ante essa visão, me fez despertar de mais um dos muitos pesadelos que já tive...”
-- Tiago, me traz um alicate maior...
Estendeu o objeto que usava para que fosse trocado pelo meninote de pernas finas, hipnotizado pela visão da mulher alta e forte à sua frente, o que a fez abrir um sorriso divertido para ele.
-- Acorda, menino!! -- deu-lhe um tapa na cabeça. -- Me traz um alicate maior!
-- Sim, senhora!
Bateu em disparada. A mulher voltou a agachar-se, desprendendo o arame da cerca avariada, quando ouviu a voz, há tanto tempo esperada, soar por trás de si.
-- Senhor, estou procurando a administradora da fazenda, sabe onde ela está?
Sem muita reação, ergueu-se devagar e virou-se. Percebeu o constrangimento imediato da outra, pela confusão de sexo cometida.
-- Está falando com ela... Shanti Veras. -- esticou a mão para o aperto que recebeu alguns segundos depois. Prendeu-lhe o olhar na esperança que uma remota passagem passasse por aqueles olhos e que isso a fizesse reconhecê-la de alguma forma.
-- Me... Me desculpe... Eu... Eu... -- a voz encurtava-se, pois a perturbação instalara-se desde que percebeu que o corpo que já admirava, mesmo sem perceber-lhe o rosto,  lhe incitava para coisas perigosas.
Shanti observou a mulher de cabelos negros e longos se demorando nos olhos de um verde água de entontecer. Continuava linda e baixinha como há vinte anos. Passou as mãos pelos cabelos loiros curtos e charmosamente desalinhados. Nos olhos azuis céu, expressou divertimento com o atrapalho dela.
-- Como foi de viagem, senhorita Lessandra Marques? -- caminhou em direção ao cavalo amarrado logo ao lado e pegou o cantil pendurado em sua sela dando um imenso gole.
-- Cansativa... Tinha me esquecido do quanto era distante... -- não conseguia parar de avaliar o impressionante exemplo de mulher a sua frente. A camiseta branca suada... A calça de brim preta apertada deixando transparecer músculos avantajados que, em muitos homens, nunca vira.
-- É... O esquecimento é algo muito embaraçoso... Nos prega peças... -- notou a interrogação formada no semblante dela. -- Vamos para o escritório... Aqui tá quente demais para uma conversa.
No escritório...
-- Sente-se, por favor... Quer beber alguma coisa?
Lessandra obedeceu olhando por todos os cantos da sala e recusando educadamente o oferecimento quanto à bebida. Voltou a olhar Shanti curiosa.
-- Como sabe quem eu sou? -- recebeu o olhar sério da loura e algo mais que não soube decifrar na hora.
--Seu pai tem fotos suas pela casa grande inteira...
-- Tinha... -- havia um peso na voz e uma frieza no olhar que acabou intrigando Shanti.
--O fato dele ter morrido, não tira o que lhe é de direito... Você continua sendo filha de Gabriel Monteiro Marques.
Como que incomodada com o comentário, a herdeira logo muda de assunto.
-- Soube que você foi citada no testamento dele...
-- Todos os funcionários foram. -- cortou-a com a mesma seriedade de antes.
-- Mas só você foi exigida para a leitura do testamento.
-- Pois bem... Seja o que for que esteja pensando ou insinuando, quero que saiba que estou tão surpresa quanto você...
Levantou-se da escrivaninha e, fazendo isto, Lessandra teve a certeza do quanto ela era grande, pois o recinto pareceu diminuir consideravelmente. Impressionou-se, de tal maneira, que sentiu o coração falhar.
-- Fique à vontade para conferir a contabilidade. Tudo está a sua disposição ou de seu auditor, como queira. -- saiu sem mais palavras.
Shanti precisava respirar. Quase perdera o controle ao vê-la desconfiar de sua honestidade.  Logo ela... Que sempre lhe fora fiel... A mais fiel de qualquer pessoa que tenha existido... Fechou os olhos para se livrar de lembranças dolorosas. Lembranças que atormentavam e a deixavam sem reação diante da outra. “Dane-se!” e se foi, remoendo o mantra.
TESTAMENTO...
Eram duas da tarde. Após o almoço o escrivão e advogado da família, o Sr. Martins, conduziu-as ao escritório para a leitura do testamento.
-- Bem, senhoritas... Geralmente mando um de meus funcionários realizar este tipo de procedimento, mas, como se trata de um grande amigo, fiz questão de vir pessoalmente. -- o homem estava emocionado.
Leu a partilha dos bens menores, rápida e profissionalmente. Enfim a grande revelação...
--... E, por fim, a Fazenda Monte Verde, a qual divido entre minha filha Lessandra Monteiro Marques e minha administradora Shanti Rodrigues Veras, da seguinte forma: 75% para a primeira citada e 25% para a segunda, que deverá, independente de qualquer decisão, permanecer na administração.
-- E para Nora?!! Ele não deixou nada para ela?! É como se fosse da família! Me criou quando minha mãe morreu! -- Lessandra olhou Shanti com desconfiança.
-- Se não se importar, senhor Martins, eu gostaria de responder a dúvida da senhorita... -- direcionou o olhar estupidamente gelado para a indagadora da questão.
O advogado assentiu, logicamente sabia da resposta, pois os trâmites tinham passado por suas mãos.
-- Nora recebeu do senhor Gabriel, ainda em vida, uma propriedade com toda infraestrutura de uma fazenda de pequeno porte avaliada em dois milhões de reais e mais uma pensão vitalícia no valor de 10 mil reais mensais.
O advogado um pouco avermelhado por entender a situação que se passava abordou Lessandra pigarreando.
-- Sua pergunta foi respondida, senhorita Marques?
Lessandra estava abismada com a bondade do pai, não esperava por isso e acenou afirmativamente ao homem que aguardava por sua resposta.
-- Muito bem... Há ainda uma carta escrita de próprio punho que ele me pediu para ler na presença de vocês...
“Querida filha e Shanti...

                        Devem estar agora na presença do Milton, grande amigo, para que ele possa ler-lhes esta.
                     Less... Deve estar se perguntando por que deixei uma parte da fazenda nas mãos de uma funcionária, mas em breve vai saber o motivo. E acho que não me perdoará, como, inconscientemente, nunca me perdoou.
                    Shanti, sei que deve estar pensando que esta seja uma maneira de recompensar todo seu esforço durante estes quinze anos em que assumiu o posto de seu pai e fez da Monte Verde a fazenda mais produtiva da região, e é verdade... Mas também é pelo que fiz de mal no passado. Espero que alcance a paz que eu nunca vou ter.”
Neste momento  Shanti se ergue e sai apressadamente, deixando uma Lessandra espantada e confusa com a confissão do pai.
Fora do escritório perto da porta, uma velha senhora chora emocionada... -- Justiça foi feita... Justiça foi feita...
Lessandra seguiu a loura, mas esta montou a cavalo e saiu em disparada.
O lago continuava o mesmo. Shanti, sentada à margem, podia sentir na pele os açoites... E a dor, renovada, fazia com que ela se curvasse a cada sensação. “Ele não deveria ter feito isso... Agora ela desconfiará de tudo... Não quero que sofra... Deus, se fez com que ela esquecesse, permita que continue assim, por favor...”
-- Nora!
A mulher negra e rechonchuda olhou carinhosa para a mulher linda que tinha ajudado a criar. O passado lhe veio imediatamente... Como se fosse ontem.
-- Posso te ajudar em alguma coisa, minha menina?
Ela mexia o tacho de onde vinha um cheiro que Lessandra reconheceu muito bem... Doce de leite, seu preferido.
-- Me dizendo o que aconteceu entre meu pai e Shanti...
Nora lhe mandou um olhar de pura compreensão e, chegando bem perto dela, segurou as mãos novas e branquinhas nas suas, envelhecidas e escuras.
-- Não busque respostas que você mesma já tem... Tenha paciência e entenderá... Vou lhe dar um conselho... Não toque no assunto com minha outra menina... Dê tempo ao tempo e tudo vai se esclarecer... -- e voltou a mexer no tacho cantando uma canção antiga.
Dez da noite. Lessandra não conseguia dormir e foi à sacada de seu quarto receber um pouco de ar fresco da noite. Dali podia ver o escritório da fazenda e percebeu que as luzes estavam acesas. Num impulso, vestiu-se e correu para lá.
A porta estava aberta. Entrou devagar. Na verdade estava com medo... De quê? Não sabia. Sentiu o cheiro do uísque e viu a mulher largada na cadeira com as mãos nas coxas musculosas e lágrimas fluindo lentamente de seus olhos lindamente azuis.
-- O que quer?!
A voz saiu tão natural e forte que, de maneira surpreendente, emocionou Lessandra.
-- Saber se está bem... -- era verdade...
A mulher grande deu um sorriso triste.
-- Faz quase vinte anos que não sei o que significa isso. -- suspirou e levantou-se. -- Melhor ir dormir, senhorita Marques... Teremos um dia cheio amanhã. Vamos almoçar com o principal fornecedor da fazenda e ainda tenho que lhe apresentar boa parte da propriedade...
Passou por Lessandra um pouco cambaleante, esbarrando levemente em seu corpo. O contato deixou as duas mulheres perturbadas. Shanti queria, ali, naquele momento, dizer-lhe toda a verdade e abraçá-la com fervor. Já Lessandra, não entendia a reação do próprio corpo que pedia intermitente por maior proximidade.
-- Vou com você... -- a morena se viu dizendo.
-- Para onde? -- Shanti perguntou surpresa.
-- Para casa, oras!
Shanti soltou uma gargalhada divertida e quando terminou...
-- Eu sou funcionária da fazenda, não durmo na casa grande se foi o que pensou este tempo todo... -- o olhar brilhou irônico. -- Meu bangalô fica por trás do escritório. -- fixou o olhar nos verdes acanhados por alguns segundos. -- Boa noite, senhorita...

A mulher que viveu boa parte da vida na cidade, tardou a conseguir dormir aquela noite. Não parava de pensar na administradora de sua fazenda. Era uma mulher incomum. O modo como falava, o jeito de andar, a musculatura visível de um corpo admirável. E o olhar querendo penetrar-lhe a alma como se a conhecesse de muito tempo... Mas a sensação também partia dela mesma. A primeira vez que pôs os olhos naquele azul foi como retornar a algo do qual não se lembrava. Sentiu-se perdida e ao mesmo tempo segura. Depois de muita luta, conseguiu adormecer.
“Sonho turbulento... Não podia ver, mas sabia que alguém era violentamente machucado fazendo com que ela se sentisse desesperada. Começou a gritar e chorar...”
Ergueu-se com Nora segurando-lhe pelos ombros...
--Menina, que foi?
Ofegante e suando muito, ela não soube responder. A negra soltou-a e disse-lhe meio estranhada.
-- Shanti já tá te esperano no escritório... -- olhou, ainda preocupada com ela, e saiu.
Viu o rádio relógio ao lado da cama.
-- Seis horas?! Mas que droga!! -- abafou o rosto com o travesseiro.
Shanti levou-a a todos os setores de produção com exceção dos pontos de apoio dos vaqueiros que cuidavam do gado afastado da sede.
-- Fiquei sabendo que doou terras da fazenda a poceiros... -- olhou de soslaio para a administradora que parou de caminhar imediatamente.
-- Venha...
Pegou no braço dela sem muita delicadeza e fez com que entrasse num jipe que estava próximo. Dirigiu como louca por alguns minutos adentrando na vasta área do lugar. Logo surgiu uma extensa plantação de café e muita gente trabalhando nela. Após esta plantação avistou-se longas filas de laranjeiras em flor, uma linda paisagem.
Finalmente chegaram ao que se parecia com uma vila bem organizada com casas perfeitamente construídas onde crianças e mulheres realizavam seus afazeres diários.
Shanti estacionou na frente de uma delas. Logo um menininho aparentando uns seis anos apareceu movendo uma bengala de um lado para outro e gritando o nome da loura. Esta desceu do carro alcançando o corpinho magro e levantando-o para o alto com grande facilidade.
-- Nico, o menino voador!!!
Rodopiava com o moleque no alto da cabeça enquanto ele morria de rir com os braços abertos como se realmente estivesse voando. Quando finalmente ela parou, sem colocá-lo no chão ainda, o menino apalpou seu rosto todo, revirando os olhinhos cegos.
-- Tá aborrecida, tia Shanti?... Posso sentir... -- e continuou a exploração com os dedinhos.
-- Não, meu amor... -- disse beijando-o e olhando diretamente para Lessandra. -- Tia Shanti está muito feliz de estar com você, isso sim!
Largou ele no chão e se dirigiu para a mulher que se via diante de uma cena emocionante, deixando transparecer os sentimentos no semblante surpreso.
-- O que achou do que viu na estrada? As plantações, o laranjal... Tudo trabalho dos “poceiros”...  E, metade de tudo isso, fora a produção de aves que fica depois da vila, vai pro seu rico bolsinho...
Lessandra sentiu o rosto queimar pela vergonha de ter pensado mal, mais uma vez, daquela mulher que lhe pareceu extremamente carinhosa com aquele garoto que não podia enxergar.
-- Com quem está falando, tia? Posso sentir que é uma mulher pelo cheiro bom...
-- Vem cá, pivete... -- pegou ele pela mão e fez com que ela encontrasse com a da mulher. -- Essa é Lessandra... Ela é a dona da fazenda e da vila... Nossa patroa!
-- Eu posso ver ela, tia?
Shanti pediu com os olhos que ela permitisse. Agachou-se perto do menino e deixou que as mãozinhas passeassem por seu rosto. Vislumbrou um sorriso imenso na boca dele e não se conteve. Com lágrimas nos olhos, deu-lhe um abraço apertado.
-- Você é muito bonita e muito cheirosa...
-- E você é um rapaz muito fofinho e muito bonito também... -- ela respondeu levantando-se sem largar-lhe a mão.
-- Nico, você é terrível!! Já conquistou o coração da patroa com essa sua conversinha mole! -- Shanti deu-lhe um leve tapa no ombro.
-- É o que eu sempre digo: esse veio de encomenda!! Atrevido que só ele!
A voz feminina apareceu da porta vindo cumprimentá-las.
-- Como vai, Helena? -- a galega abraçou a mulher com carinho.
-- Vamos bem, na medida do possível... -- olhou o garotinho que se distraía em rodear o jipe batendo com sua bengala. -- Levei no médico ontem... E a resposta foi a mesma...
-- Helena, eu posso...
-- Não, Shanti... Não pode... Ninguém pode... Você já fez o que tinha que fazer... Acho que agora só podemos esperar um milagre...
Ficamos mais um pouco conversando depois nos despedimos e voltamos para a fazenda.
Durante o percurso de volta, duas mulheres se perdiam em pensamentos contraditórios. Shanti ainda mantinha na mente a imagem de sua patroa com Nico... Da delicadeza, da comoção que via nela ao abraçar o menino. Já a morena questionava-se o tempo todo, numa luta entre a desconfiança que lhe tomava quando se tratava da mulher ao lado e da admiração crescente por ela a cada gesto humano que percebia vir dali.
-- O que Nico tem? -- a cabeça baixa da interlocutora não ficou desapercebida pela motorista.
--É uma doença pouco conhecida... Degenerativa... O impede de crescer e o deixou cego... É cego desde o primeiro ano de vida... Consultamos muitos médicos, mas a respostas são as mesmas...
-- Se o levarmos para fora do país? As novas tecnologias...
--- Acha que já não tentamos?... Os melhores... Fui pessoalmente encontrar alguns, com todos os exames... O diagnóstico é o mesmo... Quando isso chegar ao coração...
Shanti não continuou... Se concentrou na estrada e não tardaram a chegar a sede da fazenda.
-- Bem, por hoje é só... -- a mulher alta desceu do jipe e olhou pro relógio. -- Você tem meia hora para se aprontar... Vou estar te esperando aqui fora para irmos almoçar... -- e afastou-se em direção ao escritório.
Uma hora depois...
-- Onde ela está, merda?! -- olhou pro relógio pela enésima vez.
Já ia até a casa quando Lessandra deu as caras.
-- Desculpe-me pelo atraso... -- sorriu inocente.
A visão daquela morena em seu vestido verde claro de alças gráceis e os longos cabelos de lado espalhados por boa parte dele, por um segundo deixou a administradora sem palavras, mas logo recobrou o mau humor
-- Eu disse meia hora... -- grunhiu.
-- Uma mulher precisa de mais, senhorita Veras...
Arrependeu-se imediatamente de ter falado aquilo, pois o olhar de ira da mulher para ela era aterrorizante.
-- Por acaso está me dizendo que eu não sou uma?
O sangue subiu para o rosto de Lessandra com uma rapidez incrível quando reparou na elegância da outra. Vestia preto. Calças em couro camisa em gola role sob um casaco comprido delineando-lhe a cintura. Um delicado transcelim enfeitava-lhe o pescoço. O mimoso pingente em forma de borboleta lhe causou uma espécie de tontura, dando-lhe uma impressão imensa de que havia esquecido algo muito importante.
-- Que foi? Está se sentindo mal? -- Shanti amparou-a.
O perfume que vinha dos cabelos loiros e a dispersão dos fios dourados naquela cabeça, dava-lhe a impressão de uma nobreza incrível.
-- Está tudo bem... -- soltou-se do contato antes que a outra percebesse sua admiração.
Shanti abriu a porta do seu Cherokee preto para que ela entrasse, percebendo o olhar expressivo dela em direção ao automóvel.
-- É meu! Ainda pago as prestações! -- fechou a porta com força e deu a partida.
No caminho, Lessandra ainda se perguntava sobre sua reação ao ver a jóia que Shanti usava. Prendia-se na análise do perfil ao seu lado... Sério... Atento.
-- Ainda falta muito? -- perguntou para quebrar o silêncio.
-- Faltaria menos se não fosse seu atraso. -- respondeu sem olhá-la.
-- Posso ouvir música? -- não deu bola pro comentário.
-- Fique à vontade.
Mexeu no porta CDs, surpreendendo-se com o bom gosto de Shanti.
-- Meus Deus... Diana Krall... Billie Holliday...
-- Nada mal para uma caipira, não é mesmo? -- a mulher ao volante destilou o sarcasmo mais uma vez.
Lessandra percebeu a gafe que cometera, sentindo-se uma tremenda idiota. Estava subjugando a mulher ao seu lado.
-- Adoro este...
Não se desculpou, mas não evitou olhá-la enquanto a voz de Norah Jones surgiu suave. Quando a loura passou a mão pelo cabelo e mordeu a dobra do dedo indicador como quem lembra algo doloroso, comoveu-se.
-- Quer que tire? -- perguntou preocupada com a expressão da outra.
-- Não... Também é minha preferida.
Não falaram mais nada até chegarem ao destino.

Capitulo 2
[17/08/11]
Shanti estacionou em frente a um restaurante fino. Muito ao contrário do que Lessandra imaginava, a cidade não era tão erma assim. Observou dois bancos, alguns prédios de grande porte, uma danceteria sofisticada e um hotel que merecia no mínimo quatro estrelas. Um colégio enorme que também era uma faculdade de administração e curso técnico em informática.
Ao descerem do carro, um homem apareceu para cumprimentar Shanti.
-- Boa tarde, senhorita Veras...
-- Boa tarde, Carlos... Como está tudo por aqui?
-- Bem, senhorita... Desde que reformou o restaurante ele só tem melhorado... -- apertou a mão da mulher, meio constrangido.
-- E Dina? O bebê nasce por estes dias, estou certa?
-- Sim, senhorita... Obrigado pela preocupação... E Dina está ótima, graças a sua bondade...
Agora era Shanti a constrangida. Lessandra assistia a tudo cada vez mais convencida que tinha feito mau juízo de sua administradora, no entanto ainda se sentia desconfiada e não sabia bem o porquê.
-- Não fiz nada, Carlos... Quero que avise ao Garcia quando o bebê nascer. Ele vai te dar a semana de folga para estar junto de sua família.
-- Sim, senhorita... -- os olhos do homem brilhavam. -- Dina ficará muito feliz...
A loura entregou-lhe as chaves do carro e entrou no estabelecimento. Lá, um homem, este bem mais idoso que o anterior, veio atender-lhes.
-- Como vai, Garcia? -- apertou a mão dele.
-- Senhorita Veras... -- curvou-se fazendo uma reverência.
Shanti ergueu-lhe o corpo abraçando-o carinhosamente.
-- Então amigo, como vão os negócios?
O homem ruborizado pelo gesto da mulher respondeu alegre pelo bom andamento do restaurante.
-- Deixe-me te apresentar uma pessoa... -- dirigiu-se a Lessandra que cada vez mais se surpreendia com a delicadeza de Shanti. -- Esta é Lessandra Marques, proprietária da Monte Verde.
-- É um prazer, senhorita... Trabalhei pro seu pai durante quase toda minha vida...
-- É bom saber que meu pai manteve funcionários tão fiéis...
O homem franziu o cenho sem entender e teve que explicar o mal entendido.
-- O restaurante não é mais de seu pai há alguns anos, senhorita... Ele vendeu a antiga birosca para Shanti que a transformou nesta beleza de restaurante...
Lessandra não evitou mais um olhar daqueles que deixavam Shanti muito mal.
-- De uma vez por todas! Contrate logo uma maldita auditoria para verificar a contabilidade da fazenda! Já não suporto mais esse seu olhar inquisidor!!
Lessandra ia começar a argumentar quando percebeu que a atenção da galega foi tomada de si.
Uma ruiva de arrasar quarteirão acenava agitadamente para ela.
-- Vamos... -- a guiou com um toque em seu cotovelo fazendo a morena se arrepiar inteira.
Lessandra assistiu com péssimos olhos, a ruiva se derreter depositando um longo beijo na face de Shanti.
-- Não costuma se atrasar, querida...
-- Perdoe-me Felícia... Vamos dizer que tive um acidente de percurso.
A mulher se demorou no olhar, intensificando ainda mais o desejo que não escondia de modo algum.
-- Esta é Lessandra Marques, herdeira da Monte Verde.
O olhar de análise que a ruiva deu para si, deixou Lessandra bastante incomodada.
-- É um prazer, senhorita Marques... -- disse sem dar muito cartaz, toda oferecida para o lado da administradora, solicitando com voz dengosa. -- Vamos pedir o almoço, querida... Estou morta de fome... -- dando um sorriso de pura lascívia para ela.
-- Não é melhor esperarmos pelo fornecedor? -- a morena fuzilava a mulher com os verdes olhos faiscantes.
Felícia, entendendo o engano, deu uma risada artística.
-- Ela é Felícia Lopes proprietária da LOPES & LOPES Implementos agrícolas Ltda, nosso maior fornecedor. -- Shanti revelou tão divertida quanto a ruiva.
-- Meu bem... Eu normalmente não atendo meus clientes pessoalmente, mas, no caso da Monte Verde, faço questão... Não só porque é um dos nossos melhores clientes, mas porque tem a melhor administradora com quem já tive o prazer de fazer negócios.

O almoço transcorreu com Felícia monopolizando a conversa totalmente voltada para Shanti, que retribuía sorrisos e toques carinhosos nas mãos, que surgiam hora e outra. Lessandra amargava uma sensação de ciúmes alarmante, não conseguia deixar de admirar sua administradora que, com elegância, tratava a ruiva e com isso ganhando vantagens na disputa pelas compras dos produtos. Agora eram os sorrisos da loura que a perturbavam... As covinhas que apareciam graciosas... O branco de dentes perfeitos. Estava admirando uma mulher? Retraiu-se com o pensamento estranho. E o cheiro? Aquele cheiro que era só dela levando-a a acreditar que o sentira sempre perto de si.
Entre este duelo interno, pode perceber a maestria com que Shanti comandava a rodada de negócios, conseguindo preço e prazos totalmente favoráveis à fazenda conseguindo com que a proprietária entendesse porque a Monte Verde crescia cada vez mais.
A ruiva pareceu não se incomodar com o fechamento do pedido aquém de suas expectativas.
-- Está cada dia melhor, querida... Nem mesmo meu melhor vendedor derrubaria este seu ímpeto... -- pousou a mão de unhas longas e vermelhas na da mulher. -- Acho que encerramos por aqui...
Shanti foi pega de surpresa ao notar uma centelha de ojeriza no olhar de sua patroa em direção a Felícia. O coração bateu mais depressa ao constatar que poderia ser ciúmes. Será? A esperança de tê-la consigo sem precisar dizer-lhe de um passado que a própria tinha esquecido, lhe dava alma nova e abriu, sem querer, um sorriso bobo interrompido pela reação de Lessandra.
-- Que bom... Então podemos ir, Shanti? -- argüiu querendo se livrar da mulher sonsa.
O olhar totalmente cúmplice que Felícia deu para Shanti afetou diretamente a herdeira da Monte Verde.
-- Senhorita Marques... -- Shanti chamou-lhe a atenção. -- Se importaria de voltar à fazenda na companhia do motorista de Felícia? Ainda temos alguns assuntos a tratar... - depois de um pequeno sorriso cínico. -- Nada relacionado a Monte Verde, isso eu lhe garanto...
O sangue todo da morena chegou-lhe ao rosto, provocando um tremor intenso em todo seu corpo.
-- Carlos é uma delícia de pessoa, Lessandra... Vai tratá-la como uma rainha... -- Felícia completou maliciosa.
-- Tudo bem...  -- disse a muito custo.
Os olhos de Shanti não largavam da morena. Radiografava-lhe as expressões e viu, na fisionomia que tanto amava, o desconforto com a situação. Teve gana de desistir da “reunião” com a ruiva, mas precisava saber até onde iria o desagrado de sua patroa com o fato.
Um homem alto e forte se aproximou após o telefonema de Felícia e, depois de ouvir as recomendações, levou Lessandra até o carro. Os olhos verdes acompanharam as figuras de duas mulheres dirigindo-se até o hotel que ficava ao lado do restaurante.
Uma dor profunda atacou-a de repente e quis chorar muito...
-- Só mais uma tarde de “negócios”, madame.. -- o motorista deu um riso sarcástico e arrancou com a BMW preta pegando o caminho da fazenda.

Meia noite e Lessandra parecia atada a varanda de seu quarto. O ronco do motor teve o poder de acelerar as batidas de seu coração magoado. Sim... Estava magoada por pensar no que a ruiva estava fazendo com SUA Shanti... Mais uma dor de cabeça. O que acontecia consigo? Antes de vir para a fazenda, não sabia o que iria encontrar. Desde os treze anos, depois que saíra de lá e perdera todas as suas lembranças daquela época, exceto as que envolviam Nora, sua segunda mãe, sentia um receio meio absurdo de voltar e o pai a incentivava no desinteresse pelo lugar. Agora, obrigada pela morte dele, voltava para lá e encontrava um sentimento inédito em seus trinta e três anos de vida... Não podia estar apaixonada por quem só encontrara há dois dias.
Shanti, assim que parou o carro, já sabia que estava sendo observada e por quem. Rodeou o carro e olhou diretamente para a varanda, ainda a ponto de notar SUA Less esconder-se por trás das cortinas.
Lessandra não queria ser vista. Não daria a ela o prazer de saber que lhe tirara o sono. Quando voltou a vislumbrar o carro, não viu mais a loura. Um aperto no peito e um vazio inesperado assomaram-lhe o ser. Gostaria de tê-la perto... Seu perfume... Sua voz. Perdeu-se em sua própria divagação.
--Vista interessante...
O tom grave e ao mesmo tempo suave de sua administradora teve a força de paralizar-lhe os movimentos. Quase desfalece quando os braços fortes e carinhosos imobilizaram-na antes que pudesse reagir.
-- O que está fazendo? -- apenas um fio de voz.
-- O que vê daqui, senhorita Marques? -- as mãos da galega acariciavam-lhe o ventre, sentindo-se maravilhada com aquele calor que era só seu...
O hálito quente percorreu em poucos segundos cada pedaço do corpo amolecido de Lessandra... Mas a reação da morena estava cheia de incoerências.
-- Vejo você chegar da esbórnia ao invés de estar cuidando de seu trabalho!! -- soltou-se furiosa da mulher que ria daquele rompante tão ciumento.
-- Boa noite, senhorita Marques.
Antes de abrir a porta, Shanti ainda teve que ouvir mais.
-- A vagabunda satisfez sua sede de negociar?! -- viu a loura estagnar os passos e voltar-se com cara de poucos amigos.
-- A “vagabunda” tem me dado mais que recebi de meus pais e da pessoa que amei durante todos estes anos!! Ela não me esconde em abrigos seguros da dor!! Ela me quer pelo que sou!! Coisa que você jamais saberá o que é, porque está envolvida demais com o próprio umbigo!! -- saiu batendo a porta.

Um sufocamento perturbava o coração de Shanti. Esteve tão perto de... Sacudiu a cabeça desnorteada por tanta emoção. Tê-la nos braços, mesmo que só um pouquinho, tinha sido espetacular. Voltou aos quinze anos quando eram amigas... As brincadeiras e o amor crescendo sem ser percebido. A pureza de sua pré-adolescência. Deixou-se cair num choro calmo de quem sabe que ela nunca lembrará o que houve de fato. Que preferiu fugir do sofrimento e a esqueceu de todo. Agora sua esperança fora reduzida a nada e isso a matou mais uma vez. Abriu seu note e lá estava a foto... A que tinha recuperado a custo com a ajuda de Nora. Passou os dedos pelo rostinho pequeno da menina que se agarrava a ela num abraço amoroso e um sorriso inefável. Estava feliz como nunca mais fora em sua vida.
A cama da herdeira era pequena para tantas perguntas não respondidas. O vento que soprava da bendita varanda não aliviava o calor que seu corpo não suportava tão bem. Desistiu de dormir e resolveu tomar um banho, enquanto as dúvidas lhe perseguiam até lá, mesmo com a água querendo dissuadi-las de permanecerem ali. Deixou de se perguntar e permitiu-se sentir mais uma vez a sensação daquelas mãos tão macias, mesmo tendo um trabalho tão árduo. O cheiro e o calor do hálito em sua pele... O perfume que não se modificara, mesmo sabendo que passara todas àquelas horas com a galinha ruiva. E se... Não tinha acontecido nada entre elas? O perfume extravagantemente forte da fulana com certeza ficaria grudado em Shanti caso elas... O que estava acontecendo consigo? A pergunta principal era o tormento. E as palavras... O que significavam? Por que acusava sem acusar? Do que estava sendo incriminada? Mais uma vez a sensação de ter vivido mais do que sabia a abalou. Tinha a ver com ela? Por que a sentia tão próxima e ao mesmo tempo estava amedrontada?
Cansada de lutar, adormeceu com lágrimas nos olhos.


-- Largue o arreio, Félix!!! Largue!!
Shanti gritava para o homem que tinha perdido o controle do cavalo. Avançou para o animal quando o viu solto e, com destreza, dominou o bicho segurando-lhe pela corda que o prendia.
-- Calma, menino... Calma... -- o animal se apaziguava com cada palavra e toque da mulher.
Lessandra ainda absorvia o impacto daquela cena. Preocupou-se pela segurança de Shanti quase à angústia, como se já tivesse passado por isso antes. Viu-a arrear o animal novamente e montar sem dificuldade, devolvendo-o depois ao peão. Indo ao seu encontro, Lessandra buscou o olhar da mulher. Nele, havia, plantado, um mistério... Uma mágoa. Chegando-se mais perto e vendo-a retirar as luvas, não deixou de notar o sangue vivo na mão esquerda. O susto a fez agarrar-lhe a mão, apavorada.
-- Tá doendo?! Precisa de um médico!! Uma ambulância!!!
-- Less! Pare!! É apenas um corte...
Aquele jeito de lhe chamar... O sangue na mão. Um milhão de coisas e ao mesmo tempo nenhuma, vieram numa velocidade alucinante fazendo-a segurar a cabeça por um momento.
Shanti percebendo o que lhe acontecia, tomou-lhe a mão segurando-a junto ao corpo.
-- Vou precisar de um curativo... Me ajuda?
Foram para o escritório e Lessandra limpou o ferimento com cuidado, cobrindo-o logo depois.
-- Tem certeza que não quer...
-- Less... Por favor... -- a mão machucada ainda continuava presa a da enfermeira da vez. -- Onde aprendeu a fazer isso tão bem? -- disfarçou as emoções querendo aflorar sem controle.
-- Fiz curso de primeiros-socorros quando aprendi a escalar...
-- Agora preciso trabalhar... -- pôs o chapéu de volta à cabeça e saiu deixando Lessandra e suas dúvidas para trás.

Passou toda a manhã e boa parte da tarde enfurnada no escritório adiantando as coisas para o leilão de gado que aconteceria no próximo mês.
-- Dona Shanti... -- o homem grisalho, meio constrangido, pediu permissão para falar.
-- O que foi, Romualdo? O Tenebroso está dando trabalho de novo?
Tenebroso era o nome do touro premiadíssimo que pertencia à fazenda, mas altamente intratável. Já tinha colocado alguns peões no hospital.
-- Não senhora... É Dona Lessandra...
-- O que tem ela? -- perguntou sem tirar a atenção da tela do computador.
-- Ela insistiu, dona Shanti... E saiu com o Tufão lá pros lado do lago... Eu disse pra ela que...
A mulher que outrora se concentrava alheia, ergue-se com pressa sentindo o coração explodir de preocupação.  Correu para os estábulos com o homem ainda dando desculpas pelo fato. Selou um cavalo. Nele colocou uma peça de corda uma manta grossa um cantil com água e a maleta de primeiros socorros que ficava por lá. Na cintura prendeu um facão e montou.
-- Félix!!! Félix!!! -- chamou o peão que apontou no lugar ligeiro.
-- Passe um rádio para o hospital, peça que fiquem em alerta... -- sentiu uma dor profunda que quase a derruba do cavalo. -- Ligo pra você quando eu achá-la.
“Deus, Less... O que você foi fazer...”. A impressão de que ela estava machucada ia ficando cada vez maior. Podia ouvir seu chamado como naquele dia em que se separaram. Depois de uma hora cavalgando, ouviu o relinchar nítido de Tufão. Encontrou o alazão negro chocando as patas no chão como se pisasse em algo ou...
-- Less!!! -- o grito foi imperativo.
Partiu para lá como um raio e, nem bem parava a montaria, já saltava do animal, correndo de encontro à cena. E o que viu a aterrorizou... O bicho pisoteava insistentemente uma cobra cascavel enorme, enquanto, a alguns metros, jazia inerte o corpo de Lessandra. Acalmou o animal afastando a cobra para longe. Agachou-se para ajudar a mulher...
-- Less?... -- tentava acordá-la enquanto procurava algum ferimento visível.
-- Shanti... -- a voz soou fraca. -- Não... Pai... Não machuca ela... Não!!! -- agora o grito veio forte em seu delírio.
Shanti a segurou tentando evitar os movimentos bruscos, pois não sabia se ela tinha quebrado algo.
-- Shhh... Estou aqui, meu amor... Calma... -- abraçou-a com carinho e ouviu um gemido de dor quando tocou-lhe o pulso.
-- Dói... -- resmungou.
-- Eu sei, minha vida... -- beijou-lhe a testa que sentiu muito quente.
Examinou o local afetado. Estava inchando rapidamente. Pegou o rádio e deu as coordenadas para que Félix agisse. Quando voltou a fixar-se na amada, ela já a olhava. Viu naquele momento que seu amor havia crescido de maneira estupenda e, naquele verde, percebeu a paz e a segurança transmitidas.
-- Me leva pra casa... -- foram as últimas palavras da morena antes de desmaiar em seus braços.

“Se encontrarei paz em algum lugar, sem dúvidas, será em teu corpo... Este que tua alma carrega, tornando-o ainda mais precioso...
Se a frase ‘encontrar paz’ se materializasse dentro de mim, resumiria-se ao teu sorriso... Seja ele de prazer... De alegria... Ou apenas um descuido...
Porque é assim, desse jeito descuidado, alegre e prazeroso, que eu te amo...”

Abriu os olhos devagar e surgiu rápido em sua memória o momento em que o cavalo assustou-se e, por conseqüência, jogou-a ao chão. Na queda, apoiara o corpo com a mão, machucando-a, chocando a cabeça inevitavelmente no chão. Reconheceu seu quarto mesmo no escuro, mas, ao tentar se erguer sentiu uma dor terrível no pulso, protegido por uma faixa, que a fez gemer alto. Um vulto aproximou-se da cama acendendo o abajur. Shanti, ainda muito angustiada com o acidente, apareceu para cuidar de sua amada.
-- Less... Tá sentindo alguma coisa?
A voz preocupada da mulher atingiu o peito de Lessandra com força e quando os braços quentes envolveram seu corpo com cuidado, não podia mais respirar. Estava perdidamente apaixonada pela administradora da fazenda!
-- Tá doendo muito... O pulso...
Viu a mulher virar um pouco o corpo e pegar um frasco de comprimido e um copo com água.
-- Toma... Vai ficar tudo bem... -- colocou a pílula em sua boca e, logo após a água.
Shanti pensou o quanto amava aquela mulher e o quanto sofreu ao vê-la machucada. A ideia de perdê-la a tirou do eixo. Morreria junto com ela... Tinha certeza absoluta disso. Acomodou-a na cama depois que ela ingeriu o remédio.
-- O que aconteceu?
A loura tocou-lhe a face com candura... -- Agora não, meu amor... -- percebeu a agitação dela com a forma de tratá-la, mas não se arrependeu. -- Descansa...
Como da outra vez, beijou-lhe a testa e olhou-a com imenso carinho.
-- Fica comigo?... -- Less balbuciou antes de cair num sono profundo.
-- Sempre... -- foi a resposta da mulher a sua frente.

O sol acariciou a pele rosada do rosto adormecido. Vigiou-lhe o sono e o tempo que teve ali ao lado dela serviu para dar-lhe a triste certeza e uma lágrima desprendeu-se dos olhos azuis. Foi até ela.
-- Eu não posso, Less... Não posso...
Então, com extrema suavidade, pousou os lábios nos dela e saiu do quarto.

Sentiu um cheiro gostoso de café fresco. Imaginou e desejou muito que fosse Shanti a lhe trazer o desjejum.
-- Como está se sentindo minha menina?
Ao abrir os olhos, encontrou Nora vinda em sua direção com a bandeja e percebendo a decepção nos olhos da moça abriu o comentário.
-- Ela teve que cuidar das coisa, menina... Num te largô a noite toda e inda se aventurô pras bandas dos pasto longe. Mas me deixô na sua sombra... Nada de estripulias, viu? -- deixou a bandeja e saiu em seguida.

xxxx
Durante longos quinze dias lembrou da mulher alta e carinhosa que cuidou-a de maneira amorosa. Lembrou do quanto amou a preocupação dela. A voz lhe chamando de meu amor. O que faria agora? Como se tratariam quando finalmente estivessem frente a frente? O corpo tremeu ante a ideia e a garganta doeu ao resistir à vontade de chorar. Teria que tirar dela todas as respostas que tinha para dar. Sabia que escondia algo muito importante e que a envolvia de todas as maneiras. Do lado de fora uma movimentação chamou-lhe a atenção. Foi à varanda verificar do que se tratava. Viu um caminhão estacionar, lotado de peões que desciam alvoroçados retirando os materiais da boléia e conversando animados sobre os dias de trabalho. Os olhos ansiosos viram a mulher saindo da cabine dando ordens ao pessoal. Notou a magreza e olheiras profundas rodeavam o azul límpido, agora apagado. Os olhares se encontraram... Foi rápido, mas intenso. Viu-a despachar os trabalhadores e voltar a olhar-lhe mais uma vez e , surpreendentemente, seguir para o seu bangalô que ficava por trás do escritório.
-- Não veio me ver... -- sussurrou para si mesma, magoada.

Shanti deixou o corpo cair na cama, ofegante. Não poderia encontrá-la ainda. Precisava se preparar antes. Ela faria perguntas sérias e não teria como fugir delas. Tinha perdido o controle da situação... Abrira demais a guarda.
No banheiro, permitiu que a água lavasse o corpo na esperança de que a alma se recuperasse do baque que os verdes olhos lhe causaram. Deitou-se novamente. O teto lhe parecia algo de muito incomum naquele momento. Tentava decifrá-lo em seu branco vazio e claro. Inerte, lhe falando do silêncio que se instalara durante aqueles vinte anos de separação. E voltava a vertiginar a presença daquela mulher que fora sua alma até os quinze anos... “Como ela pôde me esquecer...”, fez a pergunta sabendo que nunca teria resposta. Ela simplesmente apagou a dor. Negou-se a compartilhar a vida, ciente daquele capítulo mórbido de suas vidas.
Ficou assim até que percebeu anoitecer, remoendo tudo que acontecera desde o acidente de Lessandra. Seu desespero... Sua dor e, mais uma vez, assumindo o seu amor por ela. Fechou os olhos por alguns segundos. Podia sentir-lhe o perfume muito perto... Lábios muito suavemente colados aos seus... A língua se intrometendo em sua boca...
-- Quero você, Shanti...
Saltou da cama, assustada e, acendendo a luz, descobriu que estava absolutamente só.
-- Deus... Me ajude...



Captilulo 03
[20/08/11]
Lessandra esperava ansiosa a visita de Shanti. Sentia-se abandonada e confusa com todos os sentimentos contraditórios que moravam em seu coração. Vez ou outras tinha umas recordações... Um lago... Ela brincando na água deliciosamente fria. Mas logo voltava a realidade, com um medo absurdo. Precisava descobrir ou tinha certeza que enlouqueceria. Ouviu uma leve batida na porta e autorizou quem quer que fosse a entrar. Sentiu o coração vir à boca quando avistou a mulher que tomou seus pensamentos durante estes dias aparecer.
-- Bom dia, senhorita Marques... Vim para saber como está... -- na mão o chapéu e no olhar uma frieza que fez Lessandra gelar.
-- Muito melhor, senhorita Veras... Ainda não tive a oportunidade de lhe agradecer por...
-- Não fiz mais que minha obrigação, senhorita... -- cortou quase ríspida. -- Tenho responsabilidade por tudo o que acontece na fazenda... É o meu trabalho.
O toque do celular de Shanti interrompe-lhe a reação.
-- Helena... O quê?... Não... Estou indo pra aí agora... Fique calma... -- desligou enquanto via Lessandra se aproximar preocupada.
-- É o Nico? O que aconteceu?
-- Está sentindo dores de cabeça e dormência nas pernas... Tenho que ir... Com licença...
-- Eu vou com você!
A galega não tinha como negar a companhia da patroa. Viu que ela estava realmente preocupada e sabia que, se não permitisse, ela daria um jeito de ir contra sua vontade.

Vinte minutos depois chegaram à vila. Encontraram uma Helena muito nervosa e aflita.
-- Helena ouça... -- Shanti abraçava a mulher com carinho tentando acalmá-la. -- Já chamei o helicóptero para levá-lo para a capital. Já estão nos esperando lá... Quero que se acalme para poder ajudar seu filho... -- a mulher ia se tranqüilizando a cada palavra dita. -- Vai dar tudo certo... Confie em mim...
Entraram na casa e foram direto pro quarto do menino.
-- Tia Shanti... É você? -- o menino revirava os olhinhos erguendo a cabeça, mas deitando logo depois. -- Tá doendo, mamãe... -- e começou a chorar. -- Minha cabeça...
A administradora foi até ele e o abraçou carinhosa.
-- Vai ficar tudo bem, Nico... Eu prometo... Agora quero que fique bem bonito que vamos passear... De helicóptero... O que acha?
O menino bem que tentou se animar, mas a dor era forte demais e ele não parava de reclamar.
-- Pode ficar com ele alguns instantes, Lessandra? Preciso conversar com Helena...
A morena consentiu indo para a cama do menino, enquanto a outra foi a procura de helena.
-- Oi, meu amor... Vai passar, viu? -- disse afagando a cabecinha de cabelos pretos e finos.
As mãozinhas foram diretas para o rosto dela, como se ele pudesse enxergar onde estava.
-- Está triste, tia Lessandra... É só uma dor de cabeça... Tá doendo muito... Mas não quero que fique triste...
-- Não, meu querido... A tia tá um pouquinho preocupada, mas a tia Shanti já resolveu tudo e vamos dar um belo passeio hoje e sua dor de cabeça vai passar, viu?
-- Eu tô com sede, tia...
-- Fica aí quietinho que eu vou buscar... -- beijou a testinha um pouco aquecida dele e saiu.
Chegando ao corredor que dava para a sala, Lessandra ouviu as vozes e, curiosa, esgueirou-se para saber do que se tratava. Encontrou duas mulheres abraçadas.
-- Às vezes sinto falta de você em minha cama...
A frase teve o poder de lhe trancar a garganta. Ouviu Helena dizer as palavras apertando-se contra Shanti.
-- Eu também, Helena, mas...
-- Eu sei... Somos apenas amigas... Tudo o que houve entre nós não passou de carência... Minha e sua... Você ainda a ama, não é?
Pousou os olhos de um cinza claros e bonitos, nos azuis carinhosos.
-- Agora mais do que nunca...
Lessandra surpreendeu-se com a declaração da mulher alta e sem nenhuma preocupação entrou na sala como se nada tivesse visto ou ouvido.
-- Nico está com sede. -- falou dura olhando Shanti com raiva.
-- Eu vou levar água para ele e aprontá-lo para irmos. -- a mulher olhava Lessandra estranhada.
Quando se viram a sós, Shanti foi a primeira a falar.
-- O que deu em você agora?!! Por que essa raiva toda?!... Helena percebeu!! Ela já tem problemas demais para ter que se preocupar com seus achaques!!
-- Sei muito bem quais são os problemas dela!!
O espanto que viu na cara da loura a fez calar-se arrependida, mas não evitou que Shanti entendesse o que se passava com ela.
-- Você é mesmo uma egoísta mimada!! Tem um menino doente naquele quarto! Esqueceu?! E você só pensa nessa sua mente preconceituosa!!! -- saiu, deixando-a estupefata.
Por que não conseguia se controlar quando o assunto era Shanti? Por que tinha tantos ciúmes de uma mulher que não conhecia? De quem sabia quase nada? Sentiu a cabeça rodando. Algo vinha até a porta de sua consciência e pedia para sair, mas uma barreira receosa impedia sempre. Sentou-se no sofá segurando a cabeça e sentindo uma náusea imensa. Foi assim que Helena a achou quando apareceu com Nico nos braços.
-- Lessandra? Você está bem?
Sentiu uma vergonha imensa ao olhar a preocupação sincera nos olhas dela.
-- Sim... Não é nada... Posso levar ele? -- pediu já estendendo os braços para apanhar o menino.
-- Obrigada... Pelo apoio e tudo o mais...
Lessandra sorriu e concluiu que aquela mulher poderia ser uma grande amiga. Entendia agora porque Shanti deu a ela tanto carinho. Precisava se conformar de que o seu papel na vida dela era esse: apenas sua sócia.

A viagem toda, um silêncio sepulcral se instalara a não ser pelas reclamações constantes de Nico, que nem aproveitava o fato de estar voando...Logo ele que amava tanto aviões.
Mais ou menos quarenta minutos depois, pousaram no heliporto onde os enfermeiros e uma médica, aguardavam o paciente.
-- Estes são os últimos exames, doutora...
Uma Helena toda nervosa entregava papéis a uma mulher muito branca, alta e de cabelos quase raspados de tão curtos de uma cor amarelada como um dia de sol muito forte.
-- Você é a mãe dele? -- recebeu um aceno positivo. -- Já dei uma olhada na ficha que era de responsabilidade do Amâncio... Ele teve que viajar às pressas, mas passou todas as informações que eu preciso saber... Venha...
Segurou o braço da mulher com delicadeza para que acompanhasse o menino que já estava sendo levado numa maca.
As quatro mulheres pararam num corredor largo que dava para as dependências só permitidas para funcionários.
-- Venho assim que o examinar... Não se preocupe... Ele vai ficar bem...
A doutora falava diretamente e olhando profundo nos olhos de uma Helena meio abobalhada com a figura. Deu um meio sorriso confiante e partiu para dentro do hospital.
Shanti e Lessandra olhavam divertidas para o abestalhamento momentâneo da mulher.
-- Quem... Quem é ela? Vai... Vai saber cuidar de Nico? Eu... Eu...
-- O nome dela é Janice, a médica que vai substituir o Amâncio, Helena... Não se preocupe... A experiência dela não condiz com a idade... Acaba de vir dos Estados Unidos... PHD em Oncologia... E mais de dez anos na especialidade... Falei com ela, da última vez que estive aqui, sobre a doença de Nicodemus... Pode confiar...
Shanti observava o ar taciturno de sua amada. Voltou ao episódio na casa de Helena. Tinha certeza que ela ouvira a conversa entre as duas. E reagiu daquela maneira infantil e presunçosa. Respirou fundo por ter que se controlar diante de tanto absurdo. A garota não enxerga um palmo adiante do nariz.

Uma hora depois, a doutora dava o ar de sua graça. Helena foi a primeira a indagar.
-- Então... O que foi? Por que ele teve essa dor de cabeça... e as pernas...
O sorriso complacente da médica indicava o quanto já estava acostumado com os rompantes de parentes desesperados por uma notícia.
-- Helena... -- a mulher segurou-lhe o braço confortando-a. -- Sabe muito bem do que seu filho sofre. Tem todo o direito de se desesperar, eu entendo... Mas não posso me dar a esse luxo ou não poderei ajudá-lo, como sei que posso. Agora, me diga: em que nível se encontra sua situação financeira?
Desta vez, Shanti tomou a rédea da situação.
-- Quanto a isso pode falar, comigo Janice... Apenas faça o que tiver de fazer... Não se importe com quanto vai custar... -- dizendo isso, o olhar foi diretamente para Lessandra que anuiu a afirmação com um gesto de cabeça concordando plenamente.
-- Já mandei vir a droga experimental de São Paulo. Ela não é a cura, Helena... -- era vsível a preocupação de Janice com a mãe do menino. -- Mas vai nos dar o que mais precisamos agora... Tempo.
A mão continuava no braço de Helena. Mas retirou, assim que uma mulher muito alterada interpelou a doutora.
-- Precisamos falar!!! -- gritou como louca o pequeno ser desequilibrado.
A palidez no rosto da médica se evidenciou e sua tez começou a suar abundantemente.
-- Me perdoem, com licença.
Dizendo isso, avançou sobre a maluca e arrastou-a para um local longe. As mulheres preocupadas com o acontecido, não deixavam de olhar em direção das duas. Janice em sua altura quase se agachava para retrucar veementemente as agressões que sofria da baixinha enfezada. Helena sentia-se mal com a cena. Viu a mulher quase agredir fisicamente a “montanha” que se defendia impedindo o ataque. Até que a raivosinha foi embora.
A vermelhidão expressiva no rosto de Janice era notável.
-- Bom... Onde estávamos? Eh... A droga, Helena... -- pigarreou muito nervosa. -- Vai apenas retardar os sintomas... Como essa dor de cabeça e a dormência nas pernas. Ele vai precisar ficar pelo menos mais dois dias para que eu observe seu desenvolvimento após ministrar o remédio...
-- Está certo, Janice... Eu confio em você... -- a mão segurou a da doutora em um conforto mútuo.
O meio sorriso tímido reapareceu no rosto muito branco pintado com um vermelho absurdo.
-- Agora temos que ir, Helena... Mas se precisar de qualquer coisa, me ligue... Janice ... -- olhou a mulher presa na visão da mãe de Nico. -- Também me ligue se o problema for dinheiro... Aposto no seu pessoal...
Apertou a mão da mulher e saiu com Lessandra em seu encalço. Ainda estava muito chateada.


Captilulo 04
[20/08/11]
A viagem de volta foi feita em total e absoluto silêncio. O helicóptero desceu na fazenda. Logo Félix veio abordar Shanti com problemas. Ela o seguiu, e Lessandra não pôde ter a chance de conversar sobre o que lhe afligia. Conformou-se e foi para a casa grande falar com Nora.
A mulher mexia nas panelas preparando o almoço. O cheiro era tão bom que Lessandra quis que a hora do almoço fosse antecipada. Abraçou a negra com carinho e se deixou ficar no carinho gostoso dela, como quando era pequena. Desabou num choro manhoso. A cozinheira a confortou como sempre fazia.
-- Menina... Menina... Vai passar...
-- Ela me odeia, Nora... Me odeia... E tem razão... Eu sou mimada... Fútil... Nunca penso antes de agir... Eu...
A negra pegou-a pela mão e sentou-se com ela no colo, fazendo carinho.
--- Shhh... Minha menininha... Sei que agora tudo parece confuso e doloroso... -- embalava a mulher em seus braços. -- Sua mãe tinha tanto orgulho de você... Você era corajosa... Destemida... Dona de si... Nem parecia uma criança... Volte a ser a minha Less... Volte a ser minha menina...
A cada palavra as lágrimas iam aumentando de profusão.

No curral Shanti se esforçava para ouvir o que Félix lhe falava, mas seu pensamento tinha apenas um norte.
-- Dona Shanti? -- o capataz chamou-lhe a atenção, preocupado.
-- Certo, Félix... Você sabe o que fazer... Eu vou para o escritório.
Desviou da porta do escritório e entrou em seu bangalô. Sentou-se em frente ao seu notebook e ficou olhando a foto. Pegou papel e caneta e escreveu mais uma carta. Dobrou-a e colocou em um envelope. Pegou as chaves da casa e abriu um quarto. Olhando as paredes, seus olhos ganhavam uma cor anormal devido ao brilho. Guardou a carta numa caixa de arquivo e saiu, trancando a porta logo depois.

Mais uma semana havia se passado nenhuma das duas se dispôs a conversar sobre o que as perturbava. Shanti não se dava folga. Sempre arranjava motivos para estar fora da fazenda ou ocupada com os pastos longe. Lessandra mal saia da casa grande e, quando o fazia, certificava-se da ausência da sócia. Tomou conhecimento de todo o funcionamento da propriedade e já se interessava em ajudar na administração. No mais, fazia visitas frequentes a Nico que se recuperava bem depois que começou o tratamento com a nova droga. Descobriu em Helena uma ótima companhia e assim ficou sabendo o quanto a mulher havia sofrido com um casamento fracassado por causa do mau caratismo do marido. Depois que a doença de Nico foi descoberta e ele ficou cego com um ano de idade, o cafajeste sumiu, deixando Helena sem nenhum tostão. Ainda eram sem teto que se apossaram de terras dentro da Monte Verde. Depois que Shanti os organizou em comum acordo, o homem aparecia querendo dinheiro e direitos de marido para logo depois sumir novamente. Helena contou como resolveu acabar com o sofrimento com a ajuda importantíssima da administradora que escorraçou o homem tornando-o pessoa non grata no local. Aproveitou e contou também o envolvimento que elas tiveram no princípio e o que as fez perceber que tudo não passava de uma forte amizade.
Lessandra entendia porque era tão fácil apaixonar-se por Shanti. Seu senso de justiça, seu carinho, sua força, sua bondade... Tantos adjetivos para qualificá-la como incomum. Pensava nisso a noite em seu quarto, embalada pela visão do baloiçar suave das cortinas, inspirado pela brisa que soprava amena. Puxou da memória as poucas lembranças que tinha de sua infância vivida ali.  Havia sempre uma presença amada e amiga que não conseguia distinguir. Mas logo vinha a opressão no peito e uma vontade louca de fugir, de chorar, de se desesperar e ela abandonava tudo com medo do que descobriria.
De novo o pesadelo. E mais uma vez Shanti perdia o sono. Levantou-se sem ânimo e seguiu para o banheiro na intenção de molhar o corpo. O nu visto no espelho por ela foi culpado por uma lágrima fria escorregar até o caminho entre os seios. Perguntou-se mais uma vez o que tinha feito para merecer todo o sofrimento. Voltou atrás em sua história e constatou que muito pouco dera a si mesma de satisfação, de alegria, de agradecimento por ter chegado até ali. Apenas trabalhou e estudou, dia após dia na esperança de que uma recordação trouxesse sua vida de volta. Não tinha nada ali naquele corpo que lhe desse uma pista de que seria finalmente feliz. Era uma mulher e queria outra com todas as forças de seu coração. Uma mulher que a enviara nesta viagem sem fim, numa espera agonizante. Entrou no chuveiro e, como sempre fazia, perdeu-se na infância quando tudo era infinitamente mais fácil.
-- Só volta amanhã, menina...
Era Nora entrando no quarto de uma Lessandra apática e distraída com o olhar perdido saindo pela varanda. Andava numa tristeza que não lembrava ter sentido antes. O verde dos olhos, vez ou outra se umedecia, mas a lágrima não caía. Nora terminou de arrumar o quarto e lançou um olhar piedoso para a mulher. Rezava para que Deus desse o melhor desfecho para a vida daquelas duas. Sabia da dor e do sofrimento delas. Mas nada podia fazer a não ser esperar que sua Lessandra entendesse o mais rápido possível porque estava ali se sentindo a pior das pessoas.
Manteve-se o dia todo dentro do quarto. Leu. Navegou na internet a procura de informações que ajudariam o seu aprendizado em administração de fazendas. Compreendeu, fascinada, o maravilhoso trabalho que fora feito na propriedade.
Quando escureceu, desceu para jantar com Nora. Amava aquela mulher. Não tinha muitas lembranças da mãe, mas de Nora uma vida inteira. Fazia-lhe as vontades, mas mantendo-a nas rédeas como toda mãe faria. Conversaram sobre o passado, mas nada que lhe mostrasse o que deveria lembrar. Nora falou sobre os filhos que, agora, cuidavam da mini-fazenda que herdara e de como sonhava em terminar seus dias lá cuidando dos bisnetos. Mas não deixou claro a Lessandra que isso só aconteceria quando elas, suas meninas, se resolvessem e traçassem o caminho que tinha que seguir juntas.

Então a manhã chegou. Quente. Enquanto Lessandra dava as últimas escovadas no cabelo negro e comprido, ouviu-se o som de dois carros chegando à fazenda. A mulher largou a escova de qualquer jeito em cima da penteadeira e correu para a porta da casa decidida a acabar de vez com aquele mal estar entre as duas, mas, ao chegar lá teve sua grande surpresa do dia. Um homem alto e elegante saltou do carro que seguia atrás do de Shanti e veio em sua direção.
-- Princesa!! Que saudades!
E foi logo lhe abraçando e beijando com paixão. Ela se deixou beijar mais por susto que por vontade própria. Desvencilhou-se dele com certo exaspero e olhando para Shanti desconfortável.
-- Pode colocar minha mala dentro da casa... Como é mesmo seu nome? -- o homem jogara as chaves de seu carro para Shanti que as pegou no ar.
-- Shanti, “sinhozinho”... -- a mulher enfurecida pegou a bagagem e simplesmente arremessou-a pela porta sem nenhum cuidado. -- Pronto, sinhozinho, qualquer coisa estou na senzala! -- e andou ligeira em direção ao escritório.
-- Hei!! Seus funcionários são assim sem educação como essa daí?!
Lessandra queria matá-lo pela arrogância que percebera nele tarde demais. Nem desconfiou da atitude de sua sócia ao ser grosseira com ele. Mal sabia ela que a mulher sabia muito de quem se tratava.
-- Ela não é minha funcionária, Alberto!!! Ela é minha sócia!!! E o que raios está fazendo aqui?!!
Ele pareceu, além de magoado, surpreso com a reação irritada dela.
-- Foi o que tínhamos combinado, amor... Não se lembra? Depois de um mês eu viria para fazer a auditoria na fazenda e depois voltaríamos juntos para a capital... Pra nosso casamento, lembra?
Era absurdo, mas fora exatamente isso que tinha planejado quando retornou a fazenda. Não tinha a intenção de ficar com ela. Faria a auditoria e poria a propriedade à venda. Mas então conheceu Shanti e as coisas mudaram completamente. Nem sabia mais quem era de verdade. Não havia se reconhecido noiva daquele homem com quem já se relacionava há dois anos.
-- Meu amor, me responda uma coisa... Essa sua sócia, ela é sempre assim?
A pergunta tirou Lessandra dos pensamentos momentâneos.
-- Assim como?! -- retrucou impaciente.
-- Assim machona, indelicada...
-- Isso não é da sua conta!! Vá tomar uma água e me espere aqui!!
E saiu na trilha de Shanti, soltando fogo pelas ventas.

No escritório...
-- Maldito almofadinha de merda!!! Como pude esquecer ele?!! O noivinho metido !!! Achei que ela tinha desistido deste bosta!!! -- andava de um lado para outro como bicho enjaulado. -- Deus, vou explodir de raiva!! -- neste instante ouviu a porta se abrir e gritou descontrolada. -- O que é?!!!
Deu de cara com uma Lessandra assustada com o rompante violento.
-- Me desculpe... Se estiver ocupada volto outra hora...
Deu meia volta, mas foi impedida de continuar pelas mãos fortes de Shanti que a trouxe para dentro do recinto, encurralando-a na parede com seu corpo. Os olhos travavam a batalha entre amor e ódio, dando espaço para a paixão que chegou desenfreada, atropelando todos os sentidos. Shanti não resistiu e tomou a boca pequena na sua com fome, fazendo-a amolecer em seus braços. A blusa fina de algodão que Less usava foi erguida até a altura do pescoço deixando os seios pequenos de bicos róseos já excitados a mostra. Shanti molhou os lábios antes de engoli-los com furor, tirando um gemido choroso de sua dona.
Esqueceram-se das dúvidas, das dores, do que as havia feito sentir emoções fortes. Esqueceram-se de si e atinavam apenas para os corpos pedintes de um prazer intenso. Less pedia... Sussurrava no ouvido da galega para que ela a penetrasse logo, largando o pescoço dela e levando-lhe a mão para o sexo túmido e molhado escondido por baixo da saia curta e da calcinha mínima que usava.
Shanti  nada falava. Um medo poderoso de que saísse por sua boca tudo pelo que passara durante estes anos a esperar por ela, a emudeceu. Só pensava em tê-la... Em estar dentro dela... Um sonho que realizou-se, quando os dedos mergulharam profundamente ali... Seu paraíso...
Agora um ritual animalesco se via... Duas feras arranhando-se, contorcendo-se uma sobre a outra, entre urros e soluços perdidos pelo ar. E antes que o prazer fosse saciado, a boca, que, durante vinte anos, tanto desejou aquele corpo, alcançou o ponto quente de onde já escorria a ambrosia, tomando-a para si, imortalizando sua alma ao ouvir o grito do gozo final.
Shanti segurou o corpo enfraquecido de seu grande amor por alguns segundos até que ela se recuperasse. Afastaram-se visivelmente transtornadas. A voz estrangulada da loura sela o fim do excitante episódio.
-- Estou indo para os pastos do Norte... Se precisar de algo, mande me chamar -- e saiu sem sequer olhá-la de novo.
Less foi descendo devagar pela parede até o chão, sem forças emitindo os soluços mais sofridos de toda sua vida.


Captilulo 05
[20/08/11]
Enquanto isso, na vila...
-- Nico!... -- uma Helena vinda da cozinha procura pelo menino. -- Nico! Está na hora do almoço...
-- Que bom, estou morrendo de fome...
A mulher estaca. Treme. Sente a náusea chegar-lhe ao estômago latente. Na sala, o homem trazia o menino nos braços.
-- Ele disse que é meu pai, mamãe...
Falou o menino, que era posto no chão pelo indivíduo mal encarado. A barba mal feita. A roupa fedida e mal arrumada. O odor de bebida era forte. Nico foi alcançado por Helena e afastado daquele ser desprezível.
-- Como chegou até aqui, Osvaldo?! O que você quer?!!
-- Sabe muito bem o que quero, sua vadia! O dinheiro que a sapatão te dá pra você trepar com ela na sua cama!!
O garoto estremeceu ao ouvir a voz agressiva do pai e Helena pediu para que ele fosse pro quarto. Ele obedeceu rápido. Mas ao invés de ir para seu quarto, foi para o da mãe a procura do celular. Sabia que aquele homem estava bravo e estava com medo. Lembrou que a mãe ensinou-lhe a ligar para a tia apertando apenas duas teclas, para o caso de uma emergência. Tateou em todo o lugar até encontrar o telefone.

Na fazenda...
Lessandra não sabia quanto tempo tinha ficado ali sentada, quando o toque de um celular a assustou. Em cima da mesa o aparelho de Shanti jazia esquecido. Ela atendeu sem muito ânimo.
-- Tia Shanti! Tem um homem bravo aqui! Tá brigando com mamãe lá na sala!! Eu to com medo, tia!!
-- Calma, Nico... Sou eu tia Less... Chame sua mãe para que eu fale com ela...
-- Não tia!! O homem é bravo... Eu tô com medo... -- e começou a chorar.
-- Estou indo para aí, meu amor... Fica calmo e não saia do quarto...
Lessandra desligou e foi em busca de ajuda.
Encontrou com Félix perto dos estábulos e explicou-lhe o que estava acontecendo. Ficou sabendo que Shanti partira com os outros empregados para os pastos.
-- Preciso de você e mais dois homens. Vamos até lá saber o que está havendo. Nico me pareceu muito nervoso.
Lembrou-se do que Helena havia lhe falado sobre o marido. Ouviu Félix resmungar pelo fato do homem ter passado para dentro da fazenda sem ser percebido, e que sua chefe não ia gostar nada de saber disto.

-- Eu não tenho nenhum dinheiro, Osvaldo!!
O homem avançou para ela raivoso.
-- Claro que tem!! Eu sei que ela te sustenta, vagabunda!! Quero minha parte!! Afinal o corno aqui sou eu!!! Tenho que ganhar algo em troca!!! -- segurou-a pelos braços sacudindo-lhe o corpo franzino.
-- Me larga!!! Eu trabalho, Osvaldo!! E o que ganho mal dá para pagar as contas e os remédios de Nico!!!
-- Não tem dinheiro?!! Não?!! Pois então vai me pagar de outro jeito!!
O tapão no rosto da mulher a fez girar e cair ao chão. Helena esperava o pior. Já podia sentir que o pesadelo começaria quando ele a tomasse a força como sempre gostou de fazer. Mas algo aconteceu de milagroso. Viu Lessandra entrar com três homens que já cuidavam de dar um jeito no machão. Viu quando o levaram para fora da casa. Foi ajudada pela nova amiga a se levantar do chão.
-- Você está bem? -- a pergunta era mais reflexo do que intenção.
Helena desabou num choro sendo confortada pelo abraço de Less. De repente se lembrou do filho.
-- Nico!
Correram para o quarto dele, mas não estava lá. Foram para o outro quarto e o que viram foi triste. O menininho encolhido num canto, abraçado as perninhas e o olhar a vagar em busca de ajuda, deixando cair lágrimas profundas.
-- Mamãe... -- ele repetia sem parar.
Helena pôs o filho no colo com calma. Ele todo tremia e a febre se instalara imediatamente.
-- Ele tá queimando! -- a mãe apavorou-se.
-- Você tem o número do hospital? -- Lessandra perguntou já pegando seu celular para fazer a ligação.
Foi aí que Helena percebeu na mão do filho o seu aparelho. Fora ele quem ligara preocupado. Seu menino a salvara corajosamente. Pegou o telefone e pegou o número da médica passando-o para a amiga.
-- Doutora Janice? Aqui é Lessandra Marques, amiga de Helena... Nico está com febre alta... Não, não demos nenhum remédio a ele... Certo... Não... Está bem... Que bom... Está aqui perto? Está de carro? Posso mandar buscá-la... Tudo bem, até então...
-- O que ela disse?
-- Está atendendo um paciente aqui perto... Já está vindo pra cá... Pediu que não déssemos nenhum remédio a ele... Por causa da droga nova... Agora é só esperar...

Quando Janice chegou, encontrou uma Helena abatida ao lado do menino que dormia em sua cama. Percebeu também um inchaço incomum no rosto e preocupou-se com isso.
-- Então, me deixa ver esse garotão...
A presença da mulher teve o poder de melhorar o aspecto da outra, tanto que foi percebido por Lessandra que deu uma desculpa e saiu do quarto. Janice conferiu o pulso do menino e aferiu sua pressão. Depois de alguns exames diagnosticou o problema. A febre já estava cedendo. Ele só precisava de descanso.
-- É emocional... Teve agitação demais hoje?
O rosto de Helena dizia tudo. Pensou em disfarçar, dar uma desculpa, mas viu, naquele olhar âmbar, um carinho, um conforto inimaginável. Percebeu então que queria a ajuda daquela mulher grande, mas de um jeito tão meigo, que estava conquistando um espaço poderoso em seu coração. Queria o calor daqueles braços... Precisava. Quando se deu conta estava chorando, sendo amparada como desejou. Se deixou ficar assim por um bom tempo.
-- Precisa por gelo neste rosto. -- a médica disse, acariciando o local com a ponta dos dedos. -- Vem... -- levou-a até a cozinha fazendo questão de cuidar pessoalmente do ferimento.

Lessandra depois de se inteirar com Félix sobre o destino do mal feitor, voltou a fazenda. Tinha se lembrado do cretino do noivo que deixara esperando por ela.
De repente, ao chegar à porta da casa, o mundo desabou em sua cabeça. O ocorrido com Helena havia afastado a dor, mas agora ela voltava, dizendo que não iria embora tão cedo. Sentiu um gosto amargo na boca. Acabara de concluir que amava sua administradora como nunca tinha amado ninguém, mesmo assim, ainda sentia dentro de si uma falta... Uma saudade pueril, como se tivesse esquecido de si em algum lugar. Achava, até agora, que se conhecia, que tudo em sua vida estava planejado no mínimo detalhe. Hesitou em entrar. Alberto... Recordou todos os momentos com ele e se achou uma tremenda estúpida. Lembrou-se de como, ao lado dele, era fútil, mimada, arrogante, tudo o que, no momento, detestava nele com todo seu ser. Uma dor de cabeça violenta ameaçava se instalar a qualquer momento. Sentiu-se muito cansada para travar qualquer questionamento. Não queria discutir... Não queria explicar. Queria sua cama quente para deixar sair o pranto necessário. Queria dormir e acordar em seu apartamento confortável e esquecer que tinha vindo parar à beira daquele precipício onde sentimentos fortes a impeliam incessantemente para a queda.
Respirou fundo e foi ao embate. O homem sentado no sofá em nada se referia a ela. Estranhou-o. O semblante fechado dele denunciava que o diálogo não seria agradável.  Desagradava-lhe a bebida, mas a quis veementemente para suportar o que estava por vir. Ele, ao notar-lhe a presença, mudou espantosamente de espírito. Levantou-se indo até ela na intenção de um abraço que ela recusou declaradamente, indo direto para o bar servir-se de seu drink.
-- O que está acontecendo, Less?
Odiou o nome na boca dele. Teve ímpetos de impedir-lhe de chamá-la assim para sempre. Tomou de um gole só a dose de uísque, servindo-se de mais uma, oferecendo a ele, sem nenhuma vontade, que recusou olhando-a estupefato. Nunca tinha bebido na frente daquela maneira.
-- Alberto... -- como era difícil olhar para ele e pensar que tinha lhe entregue tanto de sua vida sem nenhum propósito. -- Sei que tínhamos alguns planos... Não sei como dizer-lhe isso, muito menos como explicar... Mas descobri que não sou mais quem era... Ou, quem sabe, eu nunca tenha sido quem fui... É complicado... -- sorveu a outra dose da mesma forma que a primeira.
-- É absurdo! Isso sim... O casamento está marcado, Lessandra... Fizemos despesas... Compramos o apartamento... Pus metade de minhas economias nisso!
Ali estava sua resposta. Aquele homem ela nunca amou. Aquele homem era o reflexo do que estava se tornando. Com toda frieza que podia, olhou-lhe nos olhos e rebateu.
-- Se o problema é dinheiro, Alberto, não se preocupe! Será ressarcido em todo e qualquer prejuízo! Acabou! Não preciso mais da auditoria. Vou ficar com a fazenda. Sendo assim não há mais motivos para que permaneça aqui.
-- Está me mandando embora assim? Depois de anos juntos? Assim fácil?!
Ela riu nervosa e amargurada.
-- Gostaria muito que fosse “assim fácil” como pensa... Tenho certeza que para você o problema deva ser outro... O investimento não valeu a pena, não é mesmo?
O vermelho no rosto do homem acusou-o imediatamente. O olhar não era mais pedinte e agoniado. Transformou-se num cinismo que lhe era característico, como ela podia comprovar na sua cara.
-- Tudo bem, então... Mando para você o total que me deve. Terá notícias minhas. --pegou sua bagagem que estava esquecida no canto da porta e saiu.
Nora entrou logo depois já sabendo do acontecido. Lessandra, ao vê-la, não suportou mais fingir a fortaleza e pediu o carinho da mãe postiça para confortar sua alma angustiada.

Nos pastos do Norte...
Os olhos azuis se perdiam no horizonte onde o sol se escondia para dar lugar à lua, eterna namorada. O peso incomum nos ombros lhe dizia do arrependimento mortal. Como pôde ter feito aquilo com ela? Fechou os olhos com força. Viu os olhos magoados, sentiu o cheiro do gozo e aniquilou-se ante sua covardia atroz. Não queria machucá-la... Não queria ter sido a canalha que foi... Vinte anos de espera para fazê-la de saber em que monstro se tornara. Suspirou sem mais forças para chorar... Abandonou os homens na lida e se enfurnou na cabana de apoio o dia todo. Voltou ao passado... Fizera-lhe uma promessa... Um juramento de protegê-la para sempre. E o que acabara fazendo? Deu-lhe a maior decepção de sua vida... Tratou-a como uma vagabunda qualquer. Queria arrancar o coração do peito e entregá-lo a ela como recompensa pela atrocidade cometida... Mesmo com toda a dor, tinha tomado sua decisão.

Captilulo 06
[21/08/11]
Enquanto Shanti não chegava dos pastos, Lessandra se permitiu administrar um pouco o lugar, mantendo, lógico, a essência do trabalho de sua sócia, apenas dando acabamento ao sistema perfeito que ela instalara lá. Félix ouvia, desconfiado, as idéias da patroa nova, mas entendia bem a linguagem dela e achava pertinente todas as suas ordens. Contava tudo a sua antiga patroa, que assentia ao que era feito, dizendo-lhe que continuasse obedecendo e, se acaso tivesse dúvida, consultasse a própria Lessandra, pondo total confiança no trabalho de sua amada, se enchendo de orgulho.
E o trabalho era o porto seguro para ambas. Lessandra, apesar da pouca experiência, se inteirava de tudo. Passava as noites no computador procurando saídas mais práticas e, consequentemente, mais rentáveis. Não era só pelo dinheiro, mas pela qualidade dos produtos que sua empresa oferecia. Tinham um diferencial. Descobriu que sua sócia primava por uma tendência: o melhor. Mas não era o melhor para apenas ganhar dinheiro. Era um melhor para dividir com quem trabalhava duro para isso.
No meio do campo, enquanto observava a lida com os cavalos de raça, ela teve uma sensação estranha. Veio-lhe a mente um livro que lera na sua pré-adolescência. Dirigiu-se a casa, já com a ideia de achar o volume no único lugar de lá: o escritório de seu pai. Sempre fora interessada pela literatura que tratava do medieval. Na sua cabeça estava um livro que lera aos treze anos sobre o reino de Arthur e seus cavaleiros. Abriu a porta, nem sequer se atendo que era a primeira vez, desde a leitura do testamento, que entrava ali. Procurou nos volumes e não encontrou. Tinha quase absoluta certeza de que o livro pertencia àquela estante. Tentou em um armário fechado que ficava ao lado da mesa do pai, mas, ao abrir o móvel, teve os movimentos paralisados pela visão de um objeto... Negro... Enrolado como uma cobra venenosa.

-- Mamãe... Tia Janice vem hoje?
O menino tateou até achar a mulher sentada no sofá, pensando justo na doutora.
-- Disse que vinha trazer os seus remédios que estão acabando... -- mal acabou de falar e ouviu as batidas leves na porta dando um pulo e correndo para atendê-la.
Desde o episódio do malandro descarado do marido, tinham ficado mais íntimas. A médica, apesar de muito séria, tinha um tom aveludado na voz e o dom de dizer palavras agradáveis como uma carícia. Consolou Helena com a sabedoria de quem tem a experiência, deixando escapar muito levemente que tinha acabado recentemente com um relacionamento parecido. Ficaram mais próximas, e Janice, com a desculpa de ver Nico e trazer-lhe os remédios, tinha marcado esta visita. Helena não conseguiu trabalhar, ansiosa pelo encontro... Sim, em sua cabeça as coisas já funcionavam neste nível. Talvez a carência afetiva fosse quem comandasse as atitudes naquela hora, mas isso não lhe importava. A única coisa que queria era ouvir aquela voz, olhar naqueles olhos e, se possível, sentir a segurança e o carinho daqueles braços confortáveis mais uma vez. Por sua vez, Janice não conseguia parar de ter dúvidas quanto ao que sentia pela mãe gostosa do seu paciente mirim. Por vezes pensou em desistir da visita alegando uma impossibilidade qualquer, mas o coração, que tinha sido abocanhado pelo cinza claro daqueles olhos perturbadores, fazia com que seguisse em frente. Então decidiu ir, mas ir de verdade, com intenções máximas de engrenar um novo relacionamento. Foram três anos tentando amar uma maluca que a enlouquecia a cada dia com suas neuroses e paranóias. Quando as crises de violência começaram, já não a amava mais. Piedade era o único sentimento ao qual se permitia ter pela mulher bipolar que enganara seus sentimentos e a ferira no seu mais íntimo. Então conheceu Helena e a esperança estava sendo renovada. Sabia que estava indo rápido demais e que poderia se machucar gravemente, mas precisava do amor que via, a cada vez que a encontrava, tomar conta de si como nunca havia tomado.
Quando Helena abriu a porta, o choque dos olhares denunciou tudo. Ficaram mudas. Janice trazia consigo uma rosa branca que ficou pendente no ar, esperando que a mulher maravilhosamente linda a sua frente a resgata-se dali. Helena perdia-se no amarelado do olhar que fitava-lhe comovido. Então notou o gesto singelo, abrindo um sorriso tão largo que sentiu os músculos da face distenderem-se ao extremo. Pegou a flor da mão grande de dedos delicados não evitando o toque suave dando-lhe um arrepio quente de prazer.
-- Obrigada, Janice... Não precisava...
“Precisava sim... Eu amei...” era o que aquelas palavras modestas queriam gritar naquela hora.
-- Pra te animar um pouco... -- devolveu-lhe o sorriso.
De repente Helena percebeu que ainda estavam na porta e desculpou-se, fazendo com que a doutora entrasse.
-- Cadê o malandro? Hoje a bunda dele não escapa!
Falou alto na intenção de chamar-lhe a atenção. O menino serelepe respondeu tentando se esconder dela.
-- Vai escapar sim! Quero comprimido! Nada de furar meu bumbum! -- e correu pro lado da saída sendo seguro por ela.
-- Epa, epa! Um homem não foge assim não, rapaz... Seja corajoso... -- e apertou-o num abraço gostoso, sendo correspondida por ele.
O olhar de Helena brilhava de contentamento. Nico a adorava, meio caminho andado... Pensava.
-- Vamos lá, mocinho... -- sentou-se com ele no sofá onde também deixou repousar sua maleta. -- Quero saber de tudo... O que tem sentido... O que não tem sentido... Dê-me um relatório completo... -- falou amorosa.
E examinou com muita atenção o corpinho frágil dele.


A mão fria e suada de Lessandra ao alcançar o chicote tremeu. Flashes dos açoites martelaram-lhe a cabeça como marteladas, fazendo-a recuar e largar o objeto no chão. Ouvia os gritos do pai... Ouvia seus gritos... As chicotadas vinham-lhe como espinhos a pele... A dor estava quase insuportável. Saiu da sala se arrastando. Apoiou-se no sofá evitando a queda que, fatalmente, veio.
“-- Nunca mais voltará pra esta casa!! Entendeu!!! Vai ficar longe!!! Vou te por num internato fora do país!!!...”
Acordou sobressaltada sendo amparada por aqueles braços... Aqueles braços...  sentiu-se, finalmente, segura outra vez.
-- Calma, Less... Está tudo bem... -- a voz de sua sócia era só um murmúrio.
Ainda ouvia, nitidamente, a voz do pai afastando-a da fazenda... Mas por quê? A cabeça voltou a doer e demonstrou isso nas feições, preocupando Shanti.
-- Precisa descansar mais... Tem exagerado no trabalho... -- deitou-a na cama novamente, mas sem soltar-lhe a mão congelada. -- O que houve, Less? Encontrei-a desmaiada no chão da sala...
Ela bem que quis contar-lhe, mas o que lembrava era de estar vendo os cavalos com Félix e depois ouvir a voz do pai vociferando contra ela. O que ela poderia entender de tudo isso?
-- Não me lembro...
Viu o azul fechar-se como num temporal ao pronunciar aquelas palavras e como ela ficou triste de repente. Veio-lhe a mente, o que ocorrera no escritório naquele dia e também se entristeceu.
-- Adiantaria se eu dissesse que me arrependo amargamente do que aconteceu no escritório?
-- Devemos, para o bem de nossa convivência, esquecer que “aquilo” aconteceu. Agora eu preciso descansar, por favor...
Virou-se na cama evitando olhar a mulher grande sentada ao seu lado. Só quando ouviu o barulho da porta fechando foi que se permitiu chorar mais uma vez.

Mais uma vez se perdia nos pensamentos e deixava Félix falar com o vento. Já tinha tomado uma decisão, mas era tão difícil vê-la e ir em frente com o que pretendia. Não tinha mais ânimo para nada. Tinha estragado tudo. Desde a primeira vez que soube que ela viria, encheu-se de uma esperança quase incontrolável. Fazia planos para quando ela descobrisse tudo o que mantivera sua memória afastada dali. Do recomeço... De onde tinham parado. Mas agora sabia que seu destempero de tê-la tomada daquele jeito rude e violento, tinha a afastado mais ainda da verdade. O desmaio era um sinal de que não queria voltar... De que ainda preferia o esquecimento. Tinha certeza que aos poucos as suas lembranças estavam voltando, mas agora era tarde demais. Respirou fundo e fortaleceu a ideia de ir embora o quanto antes. Já tinha posto sua parte na fazenda a venda. Era apenas uma questão de tempo. Não iria mais arriscar machucá-la novamente. Melhor que ela nunca lembrasse. De qualquer forma, suas esperanças agora não valiam de nada.
-- ... é o Tenebroso!
Foi a última fala que ouviu do capataz que corria para o curral. Shanti seguiu atrás.

Não conseguia deixar de pensar nas lembranças que vinham a sua mente. A voz do pai... Os açoites... Que mal havia feito? O quê? Nunca tinha entendido o pai. Estudou sim, na Europa... Passeou por vários países, mas nunca poderia adivinhar por que o pai a queria longe de Monte Verde. Depois da fazenda, sua primeira lembrança era ter acordado num hospital. Meningite, ele me disse. E apenas me manteve afastada, mesmo eu pedindo para ver Nora. Mas ele trazia a mulher da fazenda para passar uns dias. Mas nunca me levava para lá. Com o tempo fui deixando de lado. Viagens, estudos, outros acontecimentos. Precisava falar com alguém sobre isso. Não Nora... Ela viria com aquela conversa mole de que eu iria entender um dia... E isso eu não queria esperar. Shanti estava na fazenda há muito tempo. Ela sim, poderia contar alguma coisa de seu passado que ficou enterrada em algum lugar de sua cabeça. Levantou-se e foi a procura dela.
Shanti tentava manter o animal afastado dos peões. Não viu Lessandra chamando sua atenção, entrando no terreno do bicho. Ouviu-a gritar seu nome aproximando-se perigosamente do touro bravo. Quando o animal percebeu a presença de Lessandra o coração da mulher chegou à boca. Passou imediatamente para o outro lado sob protesto de Félix que já montava o cavalo prevendo a catástrofe.
Quando Lessandra se deu conta de onde estava e que o terrível Tenebroso já se encaminhava na sua direção, sentiu um arrepio da base da nuca até o final da sua coluna. Viu sua sócia se aproximar devagar e bater palmas chamando a atenção do touro para si. O animal se voltou para ela, afastando-se aos poucos e ficando nitidamente enfurecido, batendo os cascos no chão. Shanti fez sinal para que ela pulasse a cerca, o que ela fez com maestria.
Félix mantinha pouca distância do touro para que ele não se assustasse.
-- Ele vai atacar, Shanti. -- falou baixo.
-- Eu sei... E você sabe o que fazer... No três... -- o homem fez aceno com a cabeça. -- Um... dois...
Less pressentiu o perigo da situação aterrorizada.
-- Três!
O animal largou pra cima da administradora com raiva quando a viu correr para a cerca, enquanto Félix tentava laçá-lo. Shanti sente que chega ao seu objetivo e Félix já tem o touro laçado, mas antes que ela pule fora do curral Tenebroso atinge suas costas jogando-a para o outro lado.
De onde estava, Lessandra corre em sua direção vendo-a levantar-se. Aliviada, irrita-se com ela.
-- Você é doida?!
-- Você está bem? -- tocou em Lessandra, preocupada, recebendo uma afirmativa. -- Ótimo... -- pôs a mão de lado do blusão que usava. -- Peça a Félix... -- gemeu. --... Uma... Ambulância...
O sangue agora era visível e tomava conta do abdome de Shanti. Lessandra pôde ver o rasgão nas costelas dela indo até o quadril.
-- Shanti?!
Tentou impedir que ela caísse, mas o peso insuportável não lhe permitiu e foi ao chão com ela nos braços.
-- Não!! Shanti!! Félix!!! Félix!!! -- chamou o homem em desespero.
-- Fique... Calma... -- disse com dificuldade.
-- Não me peça isso!!!
Félix se aproximou já falando ao rádio, solicitando o socorro enquanto Lessandra já derramava caudalosas lágrimas e soluçava como criança.
-- Por favor... Não fica... Assim... Eu... Eu...
E o olhar lançado por Shanti à menina dos olhos verdes era toda a verdade que palavra nenhuma seria capaz de expressar.
-- Eu sei... Eu sei, meu amor...
Então ela, finalmente pôde repousar os claros olhos azuis na escuridão.



Captilulo 07
[23/08/11]
Mais uma hora, das quatro que já haviam se passado desde que Shanti deu entrada na sala de cirurgia. Nora tentava acalma sua menina pedindo para que rezasse junto com ela.
-- É preciso ter calma, minha filha...
-- Não! Eu não quero ter calma! Quero ela viva! É só isso que quero!
Diante da nervosa Lessandra surgiu um médico curioso com o achaque da moça.
-- São acompanhantes de Shanti Veras?
-- Sim! -- a voz trêmula e fraca pressentia algo ruim.
-- Fizemos tudo o que podíamos... -- a frase aterrorizou-a momentaneamente. --... Agora é com ela. Tem uma boa constituição física e isso ajuda muito. As próximas setenta e duas horas serão cruciais... Se passar por elas, as chances de sobrevivência são enormes. Ela está na UTI agora. Quando puder receber visitas eu aviso... Com licença.
-- Ela vai conseguir... Ela vai... -- ficou repetindo a frase enquanto o médico se afastava.
Nora se apiedou de sua menina. O olhar perdido dela era de dar dó. Só vira essa angústia toda uma única vez. Aproximou-se dela com cuidado. Envolveu-a pelos ombros e beijou-lhe a testa. Falou com todo carinho de que ela precisava no momento...
-- Olhe pra você, minha menina... Vamo pra fazenda... Voltamo amanhã cedo, depois que você descansar... Olhe pra sua roupa, querida... Tá toda suja de sangue... Precisa de um banho e comê alguma coisa... Vamo... Seja forte... Agora num é hora para birra de criança... Você já é uma mulher e Shanti vai precisar disso... Que seja uma mulher agora... Que sabe o que faz pra ajudá ela... Ela tá seno bem cuidada aqui...
Ela sabia que Nora tinha razão, mas seu coração desesperado se recusava a sair de perto da mulher que amava. Sim... Amava e iria lutar por ela ou contra ela, desde que conseguisse tê-la ao seu lado, como era tão necessário que fosse.
Seguiu o conselho de sua mãe postiça. Nora tinha razão. Bastava de se portar como uma criatura mimada e cheia de pantim. Mesmo com a cabeça confusa e magoada pelas atitudes de sua sócia, não via outra alternativa, a não ser encarar de frente tudo o que pudesse acontecer. Viu nos olhos dela... Viu tudo... A grandeza de um amor que era só seu. Viu naquele olhar um pedido de desculpas imenso... Viu ali, a vontade de ser perdoada. Pediu e declarou que a amava. Não podia estar enganada. Aquele olhar era só seu e a levava de volta para um lugar esquecido. Um lugar do qual sentia falta desde os treze anos... Um lugar seu.
Rumou para Monte Verde. Lá, antes de qualquer coisa, delegou tarefas a Félix. Era um homem bom, honesto, trabalhador e fiel. Tinha planos para ele. Muitos bons, principalmente para seu futuro em que planejava uma vida em comum com sua loura linda. Férias... Bem longas. Sorriu, mesmo sabendo do perigo que seu amor corria. Dentro de si havia uma força que lhe dizia: tudo ficaria bem. Sentiu de novo a tontura. Achava que era a fome... O cansaço... O estresse de ter visto sua vida se esvaindo em seus braços, mas era apenas o que queria vir à tona. O coração palpitava e a garganta doía. Sentiu a boca seca junto com uma ânsia de vômito anormal.
“Nunca mais vai voltar aqui, entendeu?!! Não tenho filha doente!!! Sua mãe morreria de novo se soubesse disso!!! Você a mataria de novo!!!”
A voz alterada do pai em sua cabeça a assustava...
-- Dona Lessandra?! -- era o capataz amparando-a preocupado.
-- Está tudo bem, Félix... Qualquer coisa, estarei na casa grande...
Na casa encontrou a filha de Nora.
-- Como vai, dona Lessandra... Eu sou Neide filha de Nora...
-- Não muito bem, Neide... Onde ela está?
- Preparando algumas coisas para levar pro hospital. Já me orientou quanto ao andamento da casa... Não se preocupe com nada...
Seu suspiro de desânimo deixou a mulher com um olhar piedoso.
-- Diga a ela que estarei no quarto descansando e que me avise quando for a hora de voltarmos para o hospital...

Foi direto para o banheiro. Precisava de um longo banho. Seu coração, apesar de sofrido, tinha esperanças de uma felicidade nova. A água quente aliviava um pouco a tensão e as palavras de Nora vieram fortes em sua mente. Precisava ser a mulher que minha amada merecia. Forte... Corajosa... Sem frescuras... Porque sentia-se irremediavelmente apaixonada por ela. As imagens dela em seus braços se esvaindo em sangue era vivas. Podia sentir ainda o cheiro do sangue... Podia ver aqueles olhos tão apaixonantes dizerem tudo que queria saber... O seu amor...
Enxugou-se e vestiu um robe leve, deitando-se logo em seguida. Dormiu com os olhos azuis afagando-lhe a alma e sonhou...
“-- Amanhã eu tenho uma surpresa pra você... Vamos ao lago...
--...
--- Ah, deixa de ser covarde! Tem medo de tudo!! Por favor... Você vai se arrepender se não for... Vou te dar um presente... “
Era seu sonho. De repente sentiu mãos pegando-a com força...
“Então é assim que passa suas tardes, sua vadiazinha?!!!
-- Não pai!! Por favor!! Não faz isso!! Pai!! Pai!!”
Sentia os braços sendo agarrados e seu corpo sacudido.
-- Menina!! Acorde!! Acorde!!
Era Nora, espantada, trazendo-a de volta a realidade. Começou a chorar com uma dor profunda no peito. Nora a trouxe para seu colo e pôs-se a niná-la, dizendo baixinho que ia passar.

De volta ao hospital, encontraram Helena com ar de preocupação e tristeza. A amiga abraçou-a apertado.
-- Tudo vai ficar bem, Less... -- soltou-a, mas mantendo a mão dela na sua. -- Janice foi à procura de notícias e ver se podemos dar uma olhada nela...
-- Obrigada, Helena... Tudo o que quero e ficar do lado dela... Não sabe como foi horrível vê-la ensangüentada, morrendo em meus braços... -- fechou os olhos, emocionada.
Janice apareceu e, pelo seu semblante tranqüilo, tinha boas notícias. Chegou bem perto de Less e, tocando, em seu ombro começou a falar.
-- Ela está muito bem para o que sofreu, Lessandra. Fui pessoalmente falar com Rogério, o médico que a operou, e ele se viu surpreso com a recuperação no pós-operatório. Ela não tem febre, isso é muito bom. Está reagindo bem à medicação. Está lutando Less e isso é fundamental. Você já pode vê-la...
O sorriso nos lábios da médica denunciou o quanto ela sabia sobre os sentimentos que existiam entre elas. Olhou Helena numa cumplicidade notória e levou Lessandra para a UTI.

Quando seus olhos a viram, não podiam acreditar... A mulher perfeita, dona de si, forte em sua grande envergadura ali deitada não era sua Shanti. A palidez no rosto... Fios conectados nos braços... Um respirador preso à boca cujo gosto ainda tinha na sua. Frágil... Indefesa. Aproximando-se, segurou a mão quentinha na sua e a beijou.
-- Sei que não começamos bem, meu amor... Temos coisas pendentes eu sei... Minha cabeça tá se recusando a lembrar, mas meu coração tá repleto de você e isso me assusta porque não te conheço e te quero como se fóssemos uma da outra desde sempre... Quero que me explique, meu amor... Quando você acordar... Quando estiver de pé de novo... Vamos conversar e nos acertar, porque não posso mais viver sem você... Fica Comigo, Shanti... Não me abandona, meu amor...
Na despedida, repousou os lábios na testa amada e saiu.

Dois dias depois, Shanti foi transferida para o quarto ainda inconsciente, mas com os sinais vitais fortes o suficiente para ficar sem os cuidados intensivos. Lessandra arrumava tudo no ambiente, colocando flores, ajeitando as poltronas enquanto falava com a mulher desacordada, falando de como tudo estava correndo bem na fazenda e dos planos que tinha para ela.
-- Então acho que já posso me aposentar...
A voz rouca e fraca de Shanti se fez ouvir assustando-a. O coração aos pulos se aproximou da cama com lágrimas nos olhos.
-- Oi... -- pegou a mão na sua.
-- Oi... -- a mulher acamada respondeu sentindo um nó se formar na garganta.
-- Como está se sentindo?
-- Como se tivesse sido atropelada por um touro... -- tentou rir, mas sentiu uma pontada de dor forte no local da cirurgia.
-- O que foi? Tá doendo? Vou chamar a enfermeira...
Shanti a impediu prendendo a mão na sua.
-- Está tudo bem... -- acariciou o dorso da mão com carinho.
-- Não... Não está... Ainda... Mas vai ficar... Não sabe o que senti quando... Quando...
Não conseguiu continuar, pois as lágrimas a impediram.
-- Sinto muito, Less... -- enxugou com a mão as lágrimas que caíam livres pelo rosto amado.
-- Precisamos conversar, Shanti...
Algo na mulher ferida se manifestou no olhar que anuviou-se de repente, como se tivesse lembrado de uma coisa muito dolorosa. Então respondeu de maneira vazia...
-- Quero que volte para a fazenda...
--- Mas... Precisamos conversar sobre nós... Sobre...
-- Volte para Monte Verde, sócia... Ou aqueles xucros vão por vinte anos de trabalho no lixo. Nora pode muito bem tomar conta de mim. Quando eu sair daqui, conversaremos...
Então Lessandra percebeu que teria mesmo que lutar contra a mulher que amava e fugia de si por algum motivo. Se ela queria assim, que fosse. Voltaria para Monte Verde e seguiria seu conselho. Trabalharia e se fortaleceria para enfrentá-la de uma vez. Daria a ela esse tempo, não tinha pressa... Não mais.
-- Como queira, sócia... -- saiu batendo a porta com força.
Assim que viu a mulher sair, Shanti derrubou tudo o que estava ao seu alcance no chão, sentindo uma dor imensa... Mais forte que a física...


Captilulo 08
[23/08/11]
Ouviu o barulho enorme quando fechou a porta. Quis voltar para saber se ela estava bem, mas não o fez. Seguiu em frente e avisou a Nora que estava indo e da decisão de Shanti para que ela permanecesse lá.
Na saída encontrou Janice que percebeu o seu estado de espírito, quase explodindo em dor.
-- Ei... Que pressa é essa? Tá fugindo de quem? -- a médica segurou seu braço.
Não tinha respostas para ela nem para ninguém. Só queria chorar... Muito. Não suportou e desabou no choro alo mesmo aproveitando o conforto dos braços amigos.
-- Venha... Vamos pra minha sala... Precisa se acalmar...
Passou a tarde conversando com Janice até o helicóptero chegar para levá-la de volta à fazenda. Contou por alto o seu problema. Ouviu dela o que ouvia de Nora: esperar era o melhor remédio, conselho da médica que aproveitou a carona e foi junto com ela para Monte Verde.

xxxx
Longos dias se passaram. As noites eram verdadeiras torturas. Os sonhos reveladores continuavam em sequência, mas os dias eram proveitosos, pois se dedicava inteiramente ao trabalho.
Depois de uma semana recebeu uma visita no mínimo estranha. O homem bem arrumado desceu do carro com uma valise na mão. E, vendo-a, se encaminhou na sua direção.
-- Bom dia, é a senhorita Marques? -- apontou a mão suada para ela.
-- Sim e o senhor é...
-- Mário Quintana, advogado de sua sócia, a senhorita Veras... -- o homem sem perceber a cara de espanto da mulher, incomodava-se com o calor folgando a gravata. -- Podemos conversar em um lugar mais fresco?
Lessandra levou o homem para o escritório e, depois que ele se sentou e refrescou-se tomando uma água, perguntou ansiosa.
-- Então senhor Mário... O que o traz aqui?
Ele pigarreou antes de começar sua explicação.
-- Bom, senhorita... Minha cliente está pondo a parte dela nesta fazenda à venda. Lógico que a senhorita é preferência nesta compra por ser sócia dela. Me pediu que lhe fizesse a oferta e diminui, no caso de seu interesse pela compra, em dez por cento o valor das ações. Aqui está a oferta redigida e com a assinatura dela.
Não estava acreditando naquilo. Quando ela lhe diria deste propósito? Por que mandou advogado ao invés de falar com ela pessoalmente? Isso era o mínimo que deveria fazer mediante a situação. O coração ficou muito triste e magoado tanto que deixou transparecer para o advogado seu descontentamento com o assunto.
-- Deixe seu cartão, senhor Quintana. Ligo assim que tiver uma resposta. -- foi seca.
-- Bom... -- pigarreou de novo. -- Não pode demorar muito, senhorita... Outros compradores estão interessados e...
-- Deixe seu cartão e vá embora! Decidirei quando me convier! Agora pode ir.
O homem e, desconcertado pela rudeza dela, entregou-lhe o cartão e foi embora apressado.
“Shanti... O que pretende fazer? O que está fazendo conosco?”

Passou o dia de mau humor e uma dor de cabeça irritante. Trabalhou até a exaustão. À noite, jantou cedo e subiu para seu quarto. No pensamento uma mulher alta e loira com olhos ternos e amorosos, se esvaindo em sangue nos seus braços e dizendo nitidamente que a amava... Misturados a estes, outros se revelaram... Uma quase lembrança. Vozes de adolescentes sorrindo...
“-- Está com medo, isso sim!! Meu pai está viajando!!
-- ...
-- Eu já te disse! Tenho um presente pra você! Não esquece do livro!!”

No hospital...
Shanti trocava de roupa ainda com dificuldade, mas muito bem recuperada da operação. Olhou para o ventre passando a mão levemente no corte.
-- Mais uma pra coleção...
Ao pronunciar isso, ouviu batidas na porta, era Nora. Pediu que ela entrasse, enquanto vestia a camisa.
-- Então minha filha... Já está pronta? -- mulher negra se aproximou e abraçou-a com cuidado e carinho quando percebeu toda a tristeza de sua menina se espelhar no olhar azul. -- Minha filha... Num acha que já tá na hora de acabá com esse sofrimento? Ela já tá se lembrano de algumas coisa... Ela viu o chicote naquele dia do desmaio... Fui no escritório e vi a porta do armário aberta e ele no chão...
-- Nora... Mesmo que ela lembre, o que farei se ela entender que tudo não passou disso? De uma lembrança? Que por isso fixou-se em mim... Para lembrar seu passado...
-- Menina... O que aconteceu entre vocês duas ainda vive dentro de vocês... Conheço minha menina Less... Em nada se parece com a moça metida a besta que o pai criou na cidade grande cheia de frescura... Dê um crédito a ela... Pense nisso... Agora vamo imbora que tô me tremendo de tê que andá naquele troço...
Shanti sorriu de sua quase mãe e acompanhou-a.

xxxx
Ao sair da casa grande era quase onze horas. Viu uma movimentação estranha na casa de Shanti. Algumas caixas eram colocadas numa caminhonete que saiu pouco depois que Félix fechou a porta de lá. Sentiu uma fisgada no peito, um tremor nas mãos e a tão freqüente náusea aparecer com força. A ideia lhe passou de repente na cabeça. Talvez houvesse alguma resposta para ela lá dentro. Não esperaria pela teimosa de sua sócia. Iria descobrir por conta própria. Interceptou o capataz no meio do caminho.
-- Me dê as chaves.
Não titubeou nem um pouco diante da expressão severa do homem.
-- Dona Shanti não autorizou ninguém mais entrar lá, Dona Lessandra. Se eu deixar posso perder o emprego.
Ela apenas respirou fundo e, olhando bem nos olhos dele, definiu a situação.
-- Félix... Você tem apenas duas opções. A primeira: me dá as chaves, eu entro e e eu lhe dou garantia total de que você mantém seu emprego... A segunda: você não me dá as chaves, eu mando arrombar a porta e entro e você está no olho da rua... A escolha é sua...
O homem, desanimado, entregou as chaves e saiu resmungando sua falta de sorte. 
Nas mãos dela, as chaves pareciam queimar. Seguiu para o bangalô com uma forte angústia no peito. Abriu a porta com nervosismo evidente. Lá dentro, as maiorias das coisas já estavam embaladas. Sobrou uma estante repleta de livros variados, a maioria sobre administração agrícola. Um rack onde um equipamento de som e uma televisão de 42 polegadas jaziam, e, ao lado, a mesa onde um notebook descansava esquecido. Sentou-se em frente a ele e o abriu. A imagem que se formou na tela, após ligá-lo, fez sua vista escurecer por um breve momento e um choque tomar conta de todo seu corpo. Duas meninas abraçadas... Sorridentes, emanando dos olhos uma felicidade extrema... A menina grande de longos cabelos loiros, com o olhar feliz, mas de uma tristeza enraizada quase que imperceptível, agarrava o corpo pequeno de outra que possuía cabelos pretos lisos e olhos verdes brilhantes, de um uma rara vivacidade sorrindo abertamente... Ela... As lágrimas alcançaram os olhos enquanto a mão acariciava um rosto amado. Atentou para um arquivo no Word, na área de tralho, com seu nome. Clicou e esperou pela revelação do texto. A data era a mesma do acidente com o touro.
“Deus... Ela está tentando recordar... Sabe como sonho com esse dia e, ao mesmo tempo,  não. Quero que se lembre por minha esperança de que sinta tudo o que senti durante estes vinte anos, mas temo que isso não passe de coisas que entram em sua cabeça por causa de nossa amizade na infância...”
Não conseguiu ler mais. A cabeça girava tentando encontrar uma solução. Imagens vivas vieram à tona. Olhou uma porta fechada no ambiente. Tentou abrir, mas estava trancada. Sentia-se como se estivesse num carrossel ligeiro e as imagens passassem rápido demais para destinguí-las. Pegou as chaves novamente e procurou a certa. Encontrou. Girou a maçaneta entrando no cômodo e o que viu ficaria em sua memória durante toda a sua vida.
As paredes cobertas de fotos suas... Dos treze até poucos dias antes de vir para a fazenda. No ensino médio... Em férias na Holanda... Na Disney com o Mickey... Na faculdade... Escalando a Pedra da Gávea... Com Alberto em Paris... Era um dossiê completo de todas as suas atividades. Ainda tinha uma estante. Lá, em destaque, em redoma de vidro, o livro que procurava... O Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda... O colar que viu um dia no pescoço de Shanti, e um graveto seco... Tudo vinha à sua mente com uma rapidez voraz. O coração pararia se continuasse prendendo a respiração como estava fazendo. Um arquivo de três gavetas ficava sobre essa estante. Na primeira gaveta datas do tempo em que deixara a fazenda e, na última, os dias atuais. Abriu a primeira e, lá, encontrou envelopes de carta envelhecidos pelo tempo separados por ordem cronológica. Abriu o primeiro, e sua história de vida começou a ser escrita novamente em sua mente.


Captilulo 09
[24/08/11]
Nora e Shanti chegaram à fazenda pouco mais de onze horas. O cansaço da viagem era visível na expressão da loira que foi direto para o escritório assim que desceu do carro sob protestos veementes da mulher negra. Félix foi ao seu encontro esbaforido.
-- Eu não tive culpa, Dona Shanti! Ela me obrigou! Disse que me demitiria e arrombaria a porta de sua casa, eu...
-- Pare, Félix! Fale com calma... O que houve?
O homem respirou devagar e explicou.
-- Dona Lessandra está na sua casa... Me obrigou a dar as chaves pra ela...  Eu não tive culpa... -- arrematou ao ver a expressão de desagrado na cara da patroa.
-- Me dê as chaves do jipe...
-- Mas, Dona Shanti...
-- Félix! Me dê a droga das chaves!!
O homem obedeceu, nervoso, observando a mulher entrar no veículo e sair cantando pneus. Pensou aborrecido que aquele não era o seu dia.
No bangalô, uma mulher jazia em seu passado perdido, sentindo na pele emoções guardadas a sete chaves em sua cabeça. Lembrou-se da hora e percebeu que Shanti já devia ter chegado. Correu para fora de lá com o coração nas mãos.
Próximo ao curral encontrou Félix com cara de poucos amigos, parado, olhando para longe. Aproximou-se dele que, quando a viu, fechou a cara mais ainda.
-- A senhora conseguiu, viu? Dona Shanti ficou irritada e saiu correndo como louca no jipe...
-- Pra onde ela foi?!
-- E eu sei?!! Melhor eu ir trabalhar, isso sim. -- saiu pisando duro em direção ao curral.

No hospital...
Helena sabia que Shanti sairia do hospital naquela manhã. Queria fazer-lhe uma surpresa, mas sabia que estava extremamente atrasada. Puxava Nico pelo braço, aflita para chegar logo no quarto onde ela estava, mas estacou quando viu sua médica abraçando a mulher que brigava com ela no primeiro dia em que a conheceu. Sentiu um frio repentino... Uma dor incômoda no peito e sentiu lágrimas chegarem aos olhos imediatamente.
-- Que foi, mamãe? Por que paramos?
A voz do menino chamou não só sua atenção, mas também da médica que os avistou no momento em que Helena tentava se retirar dali.
-- Mamãe... Cadê a tia Shanti? -- perguntava enquanto a mãe tentava fugir da amiga.
-- Vamos para casa, meu amor... Tia Shanti não está mais no hospital... -- era uma verdade que ela não sabia ao mentir para o filho.
-- Helena!!
A voz de Janice soou bem atrás de si provocando sua parada. Respirou fundo e voltou-se para ela que estava acompanhada da moça.
-- Oi, “doutora”... Vim para ver Shanti, mas acho que ela já foi pra casa, certo?
O controle na voz era notório. Não conseguia olhar para nenhuma das mulheres a sua frente e sua preocupação era com Nico que não podia entender nada do que acontecia ali. Janice pareceu entender a situação e falou com voz suave e firme.
-- Deixa eu te apresentar... Esta é Cláudia, minha ex-esposa... Veio se despedir... Está indo para a França amanhã de manhã... Cláudia, esta é Helena... A mulher que amo...
As palavras socaram com força o coração de Helena. A respiração ficou falha e as pernas quase não suportaram mais o peso do corpo. Ergueu a mão para o cumprimento.
-- Muito prazer... -- a voz da ex soou fria demais para seu gosto.
-- Igualmente, espero que faça boa viagem e seja feliz... -- não reprimiu o sorriso de extrema felicidade.
-- E este rapagão aqui é o grande Nicodemus! -- Janice ergue-o nos braços lhe apertando como sempre fazia, tirando, do menino, altas gargalhadas.
-- Tia Jane, quando vai me ver de novo? -- perguntou apalpando o rosto da mulher em reconhecimento.
-- Ahá! Está sentindo falta da agulha nesse bumbunzão é? -- o menino gargalhou de novo.
-- Nem pensar que vai me furar de novo!!
A ex pigarreou por ter sido esquecida diante daquela cena familiar. Despediu-se cortesmente e foi embora. Janice pôs Nico no chão e segurou delicadamente as mãos de Helena.
-- Ficou com ciúmes...
-- Não... Eu... Eu... -- gaguejou diante do olhar intenso de “sua” doutora.
-- Ouviu o que disse a ela? -- roçou o polegar no dorso nu daquelas mãos que amava. -- Gostaria de ter feito isso de outro jeito... Num lugar e hora mais adequados... Mas vi o desespero nesses olhos... -- olhou para trás para se certificar de que Nico, distraído com os bancos no corredor, estivesse longe o suficiente. -- Olhos que amo mais que tudo... Eu te amo, Helena... -- diante do silêncio atônito da outra, largou-lhe as mãos e se desconcertou. -- Acho que fui rápida demais, não é? Eu entendo se pra você...
Sentiu então que dedos macios e perfumados tocaram seus lábios interrompendo o discurso.
-- Quero você às oito horas em minha casa... -- deu-lhe um selinho. --... Quero te dar minha resposta de maneira mais convincente... -- deu um sorriso safado, olhando o rosto da médica enrubescer tremendamente.
Shanti parou o jipe e desceu um tanto cambaleante. Sentia as contrações na ferida pelo esforço feito sem cuidados. Ficaria ali... Ali o seu mundo poderia começar ou acabar como tinha sido desde então. Procurou a sombra da árvore e recostou o corpo no tronco seguro. A paz... A tristeza... O medo... A esperança... Todos estes sentimentos lhe invadiam num tumulto exagerado. Nada poderia fazer agora. Se ela descobrisse tudo, enfrentaria. Seria forte o suficiente para perdoá-la caso fugisse e para entregar-lhe a vida caso ela entendesse e a quisesse como a queria. O suor no rosto evidenciava o conflito interno, mas o corpo cansado e dolorido a fez acalmar-se, esperando a conclusão da descoberta. Olhou pro lago e voltou muito tempo atrás.
Lessandra sentiu o peito comprimir-se e dentro de si surgiu a revelação mais dolorosa de sua vida. Só havia um lugar para onde ela poderia ter ido. E se era isso que ela esperava de si então lhe daria a resposta. Desta vez sem rodeios, nem enigmas. Iria buscar sua verdade. Sair da confusão de sentimentos em que estava envolvida desde a volta para a fazenda. Preparou seu cavalo e montou em disparada para o lugar de sua infância.
Não levou muito tempo para avistar a grande árvore e o lindo lago ao lado. Pôde ver o corpo dela escorado na árvore. A cabeça baixa e a mão no lado da cirurgia deixaram seu coração acelerado. “Maluca!”. Apressou-se em chegar mais perto e sentiu quando ela a olhou de maneira espantada e, ao mesmo tempo, esperançosa. Desceu do cavalo e, à passos firmes, alcançou-a. Frente a frente... Lessandra a fitava buscando naqueles olhos a grande verdade. Sentiu o corpo tremer. Algo vinha a sua mente... Muito forte...
-- Tire-a! -- gritou em comando.
Shanti pareceu entender o que iria acontecer ali e, numa tentativa de impedi-la reclamou.
-- Less... Por favor... Eu...
-- Tire-a ou eu mesma faço!! -- avançou para o corpo da mulher alta com desespero. -- Tire-a!! Tire-a agora!! -- suas mãos tentavam arrancar a camisa de Shanti que segurou-a pelos pulsos tentando controlá-la.
-- Está bem! Está bem!!
Ela se acalmou enquanto Shanti obedecia-lhe a ordem. Bem devagar foi se desvencilhando da roupa até deixar o tórax completamente nu. A visão da cicatriz recente lhe trouxe lembranças nada agradáveis, mas o que queria ver não estava ali.
-- Vire-se!! -- gritou mais uma vez.
Os olhos azuis derramavam caudalosas lágrimas, deixando Lessandra apavorada com a sensação do que iria encontrar naquele corpo.
-- Less... Não faça isso... -- tentou ainda reverter a situação embora soubesse que de nada adiantaria.
-- Vire-se!!!
Lentamente, a galega deu-lhe as costas e a menina pôde ver a verdade. Pôde senti-la na garganta, pulsando querendo ser expulsa de dentro de si... Quente... Devastadora. Levantou a mão que quase não controlava devido ao tremor latente e impiedoso. Finalmente conseguiu tocar... Grossas cicatrizes... Enormes... Que vinham da base do pescoço até o início das nádegas... A verdade ali dizendo-lhe do que a mantinha presa àquela mulher. Tocou-as em toda a sua extensão. Shanti agora soluçava. A dor deveras sentida retornava, mas era surpreendentemente suprimida pelo amor que aquele toque trazia. Aqueles dedos retiravam uma a uma as chicotadas que recebera em nome do amor... Foi quando maravilhosamente recebeu os lábios dela em suas costas percorrendo o caminho das marcas novamente. Quando reparou que ela parara, voltou-se para vê-la. Segurou o olhar de pavor que via ali e aninhou-a dentro de si como há muito esperava.
-- Não... Não...
Foi o que ouviu, antes de amparar o corpo desmaiado.
Vinte anos antes...
-- Deixa de ser covarde, Shanti! Já disse que papai não volta até segunda! Vamos pro lago... Quero te dar um presente... Vai... Vamos...
A menina moça de quinze anos olhava a de treze desconfiada, mas encantada com o verde pidão daqueles olhos. Sorriu encabulada e pensou que nunca lhe negaria nada e isso vinha desde os cinco anos quando chegou à fazenda com a família, cujo pai arranjara emprego por lá.
Naquele dia em que se conheceram, a vida de ambas havia mudado para sempre. Shanti era uma menina calada, poderia se dizer que era triste. De uma tristeza inalcançável. Talvez por ver o pai tratar a mãe e os irmãos, inclusive ela, de uma maneira quase animalesca. Guardava para si o ódio e o medo. Quando o pai resolvera sair do lugar onde moravam por ter quase matado a pauladas um subordinado, achou que tudo mudaria. Mente de criança funciona assim.
Quando entraram na propriedade, a menina de olhos azuis em seus poucos anos de inocência abriu o sorriso de dentes de leite meio estragados ao avistar uma menininha com longos cabelos negros e vestidinho cor-de-rosa com laço nas costas e um de mesma cor segurando as madeixas, brincar num balanço improvisado com um pneu, ajudada por uma mulher estupendamente tão bonita quanto ela.
Enquanto o pai falava com o Senhor Marques, ela, a mãe e mais três crianças, todas meninas, aguardavam sentadas na carroça. Shanti espichava o olhar para a menina risonha com quem imaginava ser sua mãe. Quando se distraiu observando a conversa do pai com o fazendeiro ouviu uma vozinha pequena lhe chamando a atenção.
-- Quer brincar comigo? -- olhos verdes redondos e vivos lhe faziam o primeiro pedido.
E a infância inteira fora assim. Lessandra sempre no comando. Com a voz imperiosa e o jeito adorável de lhe convencer em tudo. Estavam terminando o ensino fundamental e Shanti, graças a ela e o poder que tinha sobre o pai amoroso que permitiu e pagou-lhe o estudo para agradar a filha. Foi Lessandra que a fez descobrir o fato de ser mulher. Dava--lhe roupas, creme dental e escova ao ensinar-lhe a cuidar dos dentes. Adorava escovar-lhe os cabelos dourados como se fosse sua boneca de estimação. Shanti sentia-se cuidada e nada... Nada podia negar-lhe...


Captilulo 10
[25/08/11]
Vinte anos atrás (cont.)...
-- Shanti!!! Shantiii!!!
A menina moça de longos cabelos negros corria até a outra de olhos azuis extremamente felizes ao vê-la vindo ao seu encontro com um livro na mão.
-- Consegui! Consegui! Aqui, ó!! -- pôs o volume nas mãos da amiga e ficou esperando ela vislumbrar o tesouro roubado.
-- Teu pai vai nos matar... O Rei Arthur e Os Cavaleiros da Távola Redonda... -- um sorriso franco inundou o rosto dela. -- Vamos ler juntas?
Um brilho tomava conta dos olhos inocentes de ambas e as tardes depois daquela foram de uma leitura voraz e cheia de emoções ainda não entendidas por elas.
O lugar era o de sempre. A beira do lago... Um refúgio da realidade na qual não cabiam os sonhos cheios de vida e prazer que buscaram para si. Lessandra ouvia Shanti encantada pela voz forte e cadenciada que a fazia viajar por aquele mundo antigo onde a beleza, o amor e a honra eram vivos como se pudessem se tornar realidade. Muitas vezes se perdiam e encenavam cenas deixando se revelar os arroubos comuns daquela idade. Os pensamentos eram todos voltados para as moças que curtiam os dias alegres de uma infância desenvolvida a driblar o medo e a intolerância de pais retrógrados e violentos...
-- Shanti!!! Shanti!! Cadê ela, Margarida?!! Cadê aquela desocupada infeliz?!! Shanti!!
No quarto uma garota de quinze anos sentia o coração querer sair por sua boca, tamanho era o pavor de encarar o pai quando lhe chamava daquele jeito. Sabia muito bem o que vinha por ali e, sabia também, que se não aparecesse logo seria muito pior. Chegou na sala devagar, tremendo dos pés à cabeça.
-- Ah, você tá aí, imprestável!!  -- o homem avançou para ela agarrando-a com força pelo braço sob protestos da mãe que já previa a situação. -- Que história é essa de ficar pra cima e pra baixo com a filha do patrão?!! -- apertava cada vez mais o braço da menina. -- Eu te mato de pancada, vadia!!! Sua mãe se acaba de trabalhar aqui dentro!!! Pra quê?!! Pra você ficar que nem dondoca no meio do mundo com aquela outra vagabundazinha?!!! Ela pode!!! É rica!!! Tem tudo o que quer!!! Você é essa porcaria de mulher que não serve pra nada!!! Só pra comer as minhas custas como as outras!!! -- jogou-a no chão com força. -- Ouça bem o que vou dizer, maldita!! Se eu souber que anda por aí com aquela mimadinha de merda, eu te mato!!! Mato!!! Ouviu bem?!!!
Saiu batendo a porta com força. A mãe levantou-a do chão e tinha no olhar uma verdade escrita à dor e angústia. Fitou os olhos da filha e lembrou-se do dia em que ela nasceu. Chovia torrencialmente e as dores já tinham chegado ao limite do suportável. O homem olhava ansioso pra barriga e expressava toda a sua expectativa num sorriso nervoso. Mas como numa sina incontestável ela sabia que ele seria contrariado mais uma vez no seu desejo de ter um filho macho. Era a última tentativa. A parteira trabalhava incansável diante da presença inoportuna do homem que se recusava sair dali. Queria ser o primeiro a segurar o filho esperado. O homem que se formaria ao seu lado. A quem ele ensinaria tudo o que seu pai o ensinou fazendo assim cumprir-se o ciclo de sua família. Mas não foi assim que aconteceu. Quando a parteira em sua inocência brejeira anunciou o nascimento de uma “anjinha de candura”, ela já sabia o que sucederia naquele quarto. Os olhos esbugalhados de incredulidade daquele pai atravessaram-na como uma lança impregnada de veneno mortal. Soube ali, naquele pequeno cubículo onde o ser imaculado que nascera aguardava, que havia perdido o marido de vez, que ele deixaria vir à tona a besta cruel que o rondava desde os outros nascimentos. O olhar que ele lhe deu feriu-a mais que as palavras que ele cuspiu antes de se afastar definitivamente... “Maldita criança! Maldita mulher!”.
O movimento brusco de Shanti fez com que a mulher voltasse das lembranças com aquele ar de sofrimento inevitável que trazia consigo desde aquele dia. Olhou a filha com olhos de conformação diante de seu fardo. Dentro de si rezava para que ela não tivesse o mesmo destino que ela e as irmãs. Mas não podia nada quando o assunto era ajudá-la. Apenas podia pedir com todas as suas forças que ela sobrevivesse àquilo tudo de uma maneira mais digna do que ela mesma vinha fazendo. Nada disse a ela. Nem uma palavra de conforto. Mas em suas lágrimas de mulher vivida, expressou todo o amor que uma mãe é capaz de sentir. Virou-lhe as costas e disse seca.
-- Obedece teu pai, filha... Fica longe da menina do patrão.
Lessandra esperava a amiga no mesmo lugar de sempre. Notou a demora incomum dela.  Achou que algo muito importante devia ter acontecido e resolveu voltar para a fazenda. No caminho encontrou Nora que vinha esbaforida em sua direção.
-- Menina Less! Menina Less!
A mulher negra corria como podia para alcançar a moça. E ao conseguir o intento quase não falou quase perdendo o fôlego.
-- Seu... Seu... Pai... Shanti... Venha... Venha...
Do mesmo jeito que veio levou a menina pela mão correndo com ela dali.  Ao chegarem à casa grande, Nora sentou a menina no sofá e jogou-lhe nas pernas o material de bordado e sentou-se junto a ela, começando a fingir que trabalhavam na tarefa quando o pai entra de supetão com cara de pouquíssimos amigos.
-- Onde você estava, menina?! -- ele perguntou com o olhar desconfiado.
--- Tava cumigo, sinhô... aprendendo... -- a negra interveio por sua patroinha.
--- Cale-se, Nora!!! Ela não tem mais oito anos! Pode falar por si! -- e voltou a olhar a filha que simplesmente não entendia o que acontecia ali.
Lessandra então percebeu que sua babá a queria proteger e entrou no jogo.
-- Ora, papai... Não está vendo? Aprendendo a bordar com Nora... Estou aqui desde cedo... -- foi até ele. -- O senhor chegou agora da cidade? Trouxe o que lhe pedi? -- sabia como levar o velho bobo na lábia com um sorriso segurando-lhe as mãos. -- Então, papai?
O homem, mesmo ainda desconfiado, acabou sorrindo e tirando um pacotinho do bolso colocando-o nas mãos da filha, beijando-lhe a testa logo depois.
-- Nora, vou estar no escritório da fazenda... Mande me chamar quando o almoço estiver pronto.
-- Sim, sinhô... -- disse indo para a cozinha, piscando levemente para Lessandra antes de sair.
Então ela entendeu o que havia acontecido imediatamente.  Na certa algum peão deu com a língua nos dentes e avisou o pai de seus encontros as escondidas com a amiga. Que direito tinham de impedir sua amizade com Shanti? Fazia a pergunta preocupada com ela. O pai, por mais rabugento que fosse ela tinha como levar no bico, mas o de Shanti era diferente. Se a notícia também caiu-lhe nos ouvidos, a amiga estava em muito mal lençóis. Saberia detalhes na escola amanhã pela manhã. Passaria o restante do domingo na moita para não deixar o pai mais desconfiado ainda. Então em sua mente surgiu a ideia de como seria o próximo encontro das duas no lago. Abriu um imenso sorriso e tratou de bolar cada detalhe do evento.
E a manhã de segunda chegou. Na sala o olhar cumprido de Lessandra procurava o corpo alto e esguio de Shanti. Não avistou a cabeleira loura da amiga. Talvez já estivesse na sala. Foi lá que viu a moça sentada na última cadeira de cabeça baixa e contorcendo as mãos nervosamente. Shanti não precisou erguer a vista para saber que a amiga estava ali a sua procura.
-- Ele descobriu... Não me quer andando com você... -- a voz saia apertada quase falha. --... Como posso ficar longe de você?
Os olhos azuis encontraram os verdes e lágrimas abundantes se soltavam deles como numa enxurrada que levava e lavava tudo ao seu redor.
A filha do patrão se comoveu e, junto a ela, disparou a confortar-lhe sem perceber as promessas tão frágeis que fazia a melhor amiga.
-- Vamos nos encontrar mais tarde... No lago... Tenho um presente pra você! -- deu um sorriso maroto, o preferido da galega. -- Vai... Deixa de ser covarde! -- falou quando percebeu o medo nos olhos dela.
-- Seu pai te manda pra o colégio interno e o meu me mata com as próprias mãos!
-- Está com medo, isso sim!! Meu pai está viajando!! -- viu quando Nora se depedia dele pela manhã recebendo as recomendações de sempre quando ia a cidade.
--  Claro que tenho medo!! Não conhece meu pai!
-- Eu já te disse! Tenho um presente pra você! Não se esquece do livro... Estamos para ler o último capítulo... Lancelot e Guinevere... Lembra?
Shanti não acreditava no poder que ela tinha sobre si. Era só ver aquele brilho verde, ouvir aquela voz macia e convincente e partia para enfrentar tudo, mesmo sabendo de todos os riscos que corria. Agora entendia que não lhe negaria nada, mesmo que sua vida estivesse em risco para atendê-la no que quisesse. Desmanchou-se num sorriso quando vislumbrou o dela saindo arrasador da boca pequena e de lábios extremamente vermelhos como usasse batom. Combinaram então de se encontrarem depois do almoço na entrada da fazenda, mas com muito cuidado para não serem vistas.
Voltando da escola, a menina alta e meio desengonçada ainda pensava nas palavras do pai no dia anterior. A ira que viu naqueles olhos aterrorizou-lhe o sono em pesadelos medonhos que a fizeram passar boa parte da noite em claro. Lembrou do olhar sombrio da mãe que nunca vira sorrir. As noites em que o pai chegava bêbado eram as piores. As irmãs mais velhas ajudavam a se esconderem da raiva brutal que vinha com ele. A mãe ficava para evitar que ele as procurasse, dando-lhe o corpo para que batesse e usasse como privada. Ouvíamos tudo. As mais velhas choravam e, ela como menor assustava-se sem entender o que acontecia. Agora, as lágrimas que eram para serem derramadas ali, naquelas horas, vinham quentes e dolorosas pela descoberta da realidade feia e violenta da qual não tinha noção. Lessandra era seu escape daquela vida medonha. Foi ela quem lhe incrustou um sonho... O de levar sua família para longe daquele animal que chamava de pai. Estudando muito e sendo maior que aquele destino pérfido que lhe foi imposto sem que consentisse. Cuidaria da mãe e das irmãs. Apenas pedia que não demorasse. Que fosse antes que as irmãs desconsoladas caíssem na vida, a mesma da mãe, entregando-se a qualquer um apenas para sair da frigideira, sem saber que o “fogo” ao qual, provavelmente, se entregariam, poderia ser muito pior.
Chegando em casa, encontrou a mãe sentada à mesa segurando a cabeça com as mãos. Sabia que ela chorava e isso doía mais que tudo em seu ser. Contudo, não se atrevia a encarar a mãe e consolá-la. Dela apenas recebia cuidados comuns. Roupa lavada, comida no prato... Nunca um carinho, nunca uma palavra que a fizesse entender a vida. Apesar disso, não sentia rancor da mãe. Respeitava sua dor. Sua conformidade com o que lhe foi reservado. Viu quando ela enxugou as lágrimas no vestido poído e levantou-se indo para o fogão.
-- Sente... As meninas já comeram e seu pai foi com o patrão pra cidade... -- mexia nas panelas preparando seu prato.
Ficava se perguntando como a mãe era delicada nas ações e como falava bem o português. Às vezes queria perguntar-lhe de seu passado, se tinha estudado, se algum dia teve sonhos como os tinha. Mas tudo ficava preso na garganta. Ficava olhando-lhe os movimentos elegantes e o olhar triste naquele azul que era muito seu.
-- Mãe... -- se atreveria, precisava muito ouvir dela. -- Você estudou alguma vez? -- para disfarçar com falta de interesse, continuou comendo.
A mulher parou o que fazia e, sem olhar para a filha, respondeu sem vontade.
-- Faz muito tempo, Shanti... Nem lembro mais... -- voltou a fazer suas tarefas.
Shanti queria saber mais, pois passava por um momento decisivo em que escolhas teriam que ser feitas.
-- Mãe... Acha que eu devo continuar estudando para ser alguém na vida? Você me apoiaria... Mesmo contra a vontade do pai?
Sentiu o corpo da mãe retesar-se inteiro. Viu quando ela apoiou as mãos numa pequena mesa onde guardava seus apetrechos de cozinha. A cabeça ergueu-se mirando o teto baixo do casebre.
-- A única coisa que posso lhe dizer, minha filha, e, depois disso nada mais vou dizer... É que...  Faça o que tem que fazer... Para ser feliz... -- limpou as mãos num pano sujo e saiu.


Captilulo 11
[26/08/11]
Vinte anos antes (cont.)...
As meninas encontraram no local e hora marcada. Andaram muito, pois tinham certeza que cada vez que Lessandra trazia o cavalo, os peões ficavam sabendo e foram direto fofocar ao patrão que, logicamente, deve ter repreendido o pai de Shanti.
Mas chegaram ao lago, finalmente. Shanti trazia o livro embaixo do braço e Lessandra, na mão, a caixinha que recebera do pai no dia anterior.
O caramanchão grande com raízes frondosas e caule de largura extensa servia-lhes de abrigo do sol escaldante da tarde.
-- Vamos, Shanti... Abre logo o livro... Estou ansiosa pra saber como termina...
-- Mas você já sabe como termina! Acha que não sei de sua mania de começar a ler os livros pelo final?! -- riu da cara enfadonha que a amiga fez por seu comentário.
-- Tá bem... Mas é a primeira vez que vou ler com você, então é a primeira vez que leio! -- deu língua atrevidamente para a loura que caiu numa gargalhada gostosa.
Viu sua amiga recostar-se no tronco da árvore e esperar ansiosa por sua leitura. Aquilo dava-lhe um prazer inenarrável. Folheou até chegar à página certa e começou a leitura numa interpretação única e emocionante. Via os olhos verdes cada vez mais abertos a cada linha lida.
Lessandra absorvia cada palavra como se fosse a bebida mais nobre, mais saborosa que já havia tomado e, neste ínterim, foi que percebeu o silêncio de sua narradora exímia. Olhou-a interrogativa e pôde perceber a seriedade naqueles olhos que fitavam além de si. Já ia abrir a boca para reclamar quando viu seu sinal para calar.
Shanti apanhou um graveto longo e seguiu em direção a amiga. A mão erguida na frente a pedir que não se movesse quando, agilmente,  colocou o galho ao lado esquerdo de Lessandra, onde uma enorme cobra se enroscou devagar. Assim que a serpente terminou de se envolver com a madeira, Shanti a jogou para longe permanecendo com o graveto na mão.
Ouviu um soluço e preocupou-se. Deparou-se com a amiga ajoelhada no chão cobrindo o rosto com as mãos. Abraçou-a. Não era a primeira vez. Tinham o costume de sempre quando se viam abraçarem-se saudosas, tão natural quanto respirar. Mas naquele abraço, Shanti queria passar-lhe sua grande comoção e a certeza de que sempre estaria ao seu lado.
A menina, depois do susto inicial, afastou-a irritada.
-- Por que não a matou?!! Poderia ter me mordido!! Bicho peçonhento!!
Shanti calmamente e com um sorriso tranqüilo nos lábios lhe respondeu confiante.
-- Ela não queria te fazer mal... Nós invadimos o espaço dela... Afastá-la foi o bastante... Não devemos nunca querer o mal pelo mal... Entende?
A menina a olhava estupefata. Como a amiga tinha esse discernimento tão maduro a cerca das coisas? Voltou a sorrir e lembrou-se de seus planos. A hora era mais que ideal.
-- Vem cá... -- puxou-a pela mão, tomando-lhe o graveto que segurava.
Shanti não sabia das intenções da amiga que pegou o livro e abriu e procurou pelas páginas até enervar-se, fazendo com que risse muito.
-- Está certo... será do meu jeito! -- disse uma Lessandra altiva. -- Ajoelhe-se! -- pediu séria.
Então Shanti não achou mais graça. Tremeu de corpo inteiro e obedeceu mantendo os olhos nos dela.
-- Eu, Lessandra, nomeio você, Shanti ... Cavaleiro de Monte Verde... -- tocou-lhe os ombros com o graveto. --... Que deve prometer proteger e respeitar sua rainha até a morte... -- ao ver a moça embasbacada com as palavras, cutuca-lhe com o pau. --... Agora você promete...
A moça toma ciência e fala.
-- Será uma honra, majestade... Prometo proteger-lhe com minha vida se preciso for... Para sempre... Vou proteger-lhe do mal...
Os olhares não cabiam em si, então foi Lessandra que quase esquece o fim da cerimônia, mas voltando a si, continua...
-- Receba a medalha da ordem dos Cavaleiros de Monte Verde...
Pegou a caixinha e retirou de lá a corrente com um pingente em forma e coração duplo.
-- Eu o saúdo, Cavaleiro de Monte Verde... -- disse após colocar-lhe o mimo no pescoço.
A galega não se continha de felicidade. Tudo lhe parecia um sonho interminável.
-- Agora voltemos à leitura! Estou ansiosa pelo fim... -- sorriu e a tarde se tornou um delírio.
Depois de terminada a jornada literária era a vez da diversão. O calor era quase insuportável e o convite do lago era imperioso. Costumavam se banhar juntas. Lessandra foi se livrando da roupa incômoda e Shanti a seguia sem pensar. Caíram n’água com alegria. Fria, mas imensamente aliviante. Brincaram como nunca. Shanti era a própria felicidade. Sua amiga nomeara-lhe sua protetora e ganhara dela o presente que grudava-lhe na pele molhada como tivesse nascido ali. Brincadeiras e risadas. O tempo passando e o corpo reclamando descanso.
Um tempo depois, saíram exaustas da água. Ajeitaram as roupas para que pudessem secar o corpo e repousar um pouco. Deitaram-se. Estavam desarmadas. A única coisa que queriam era estar ali, compartilhando aquele momento tão especial. Não souberam como, mas a união dos corpos se fez e o sono as arrebatou quase que ao mesmo tempo.

Mãos pesadas arrebataram os corpos do sonho. Shanti sentiu a pancada na cara antes mesmo de acordar, vendo sua amiga ser arrastada pelo pai enraivecido e desesperado. As roupas dela eram apanhadas e de maneira estabanada pelo patrão e ele tentava cobri-la a todo custo. Então Shanti pôde ver o rosto do pai que a atingia em cheio no rosto mais uma vez, gritando impropérios ao seu bel prazer.
-- Aberração dos infernos!!!! Não bastou ter nascido mulher??!!! Miserável!!! -- e mandou-lhe mais uma bofetada em cheio na cara.
Sua voz simplesmente não saía enquanto ouvia a da amiga iplorar ao pai para impedir o que me acontecia. O homem me olhava com ódio, mas não se movia. Esperava o pai fazer a ela o que sabia que faria. A ele cabia afastar a filha amada daquele monstro que maculara a pobre alma de seu bebê. Lessandra se debatia sem forças, vendo o homem xucro amarrar a própria filha nua ao cavalo e sair puxando-a como a um animal. Enquanto isso o grande senhor Garcia Marques, aos trancos e barrancos, colocava a filha na garupa de seu corcel negro seguindo-os de perto. Shanti não conseguia pensar... Não encontrava motivos para que fossem tratadas daquela maneira. O que eles estavam pensando? O que elas tinham feito de mal para serem tratadas daquela maneira sórdida?
Lessandra acompanhava a amiga com os olhos cheios dágua... Não mereciam... Apenas eram amigas e encontraram uma na outra uma maneia de sobreviver a vida cruel ao qual foram legadas. Lembrou da mãe que perdera cedo. Pediu-lhe em oração que a ajudasse. Não agüentava a humilhação que a amiga sofria. Doía-lhe na pele. era a culpada daquele sofrimento. Sentia-se assim. Quando chegaram a fazenda Nora foi a primeira a querer interceder sendo aviltada ferozmente pelo senhor da fazenda quando mandou dois peões manter a negra longe daquele episódio. Shanti mal sabia o que aconteceria ali. Apenas esperava. O pensamento em Lessandra e o coração entendendo o sofrimento de sua mãe.
-- Venha cá, aberração maldita!! -- o homem agarrou-lhe pelo braço levando-a para um poste de iluminação próximo. -- Vai saber o que é bom pra tosse agora, menina... Fazia tempo que queria fazer isso!! -- amarrou os braços dela bem alto, para que não pudesse se mexer. -- O que te disse ontem hein?!!! -- puxou os cabelos amarelos com força para que o olhasse. -- Vagabunda!!! Nasceu pra me fazer isso?!! Essa vergonha desgraçada?!!! Acha que tiro emprego no chão, vadia?!!! Vai aprender, imprestável!!!
O homem soltou-lhe as madeixas e foi até o patrão. Neste momento, Lessandra parecia estática com o terror que se lhe apresentava à frente. Viu o pai entregar o artefato de couro negro nas mãos daquele homem. Fixou o olhar no objeto negro que balouçava diante de si... O instrumento do horror ao qual seria implacavelmente submetida.
O estalido impiedoso cortou o ar e Shanti teve a certeza do que viria... Lembrou das ameaças... Mas concentrou-se na tarde maravilhosa que tivera ao lado de sua amiga... Nas confissões veladas... Amor? Sim... e quando concluiu a grande descoberta de sua vida, foi que experimentou na pele nua a primeira chibatada... Os olhos verdes a lhe sorrir... Mais uma... A primeira pergunta daquela menina linda vestida em rosa... Outra chibatada... A voz suave a lhe convencer de tudo... Novo açoite. E, como o terror anunciado com crueldade... Ouviu o grito aterrorizado de seu amor a chamar seu nome... Última lembrança sua daquele dia fatídico.

Quando um olho com muita dificuldade se abriu, foi que pôde ver que não estava em casa. Uma mão carinhosa, limpava com cuidado as feridas que sentia como pedras pesadas e pontiagudas em suas costas.
-- Less... Less... -- era apenas um sussurri fraco.
-- Calma, menina... Vou cuidar de você... Sua Nora tá aqui, viu? -- a voz chorosa da bá negra lhe confortava e o sono profundo lhe alcançou de novo.




Tempo atual...
Janice descia do helicóptero, nervosa. Recebera o telefonema de Helena preocupada com a amiga Shanti. Não era a médica dela, mas poderia ajudar de alguma forma. Sabia bem da imperiosidade que lhe era peculiar. Na fazenda encontrou uma Nora em prantos, preocupada. Helena estava com ela e Nico brincava com um cavalinho de brinquedo.
-- Ela sumiu desde cedo... Ela e minha menina... -- fungou assoando o nariz no lenço.
-- Nora... Pensa bem... Não tem nenhum lugar em que elas possam estar? Um lugar que elas têm em comum?
A mulher idosa parou para pensar. E voltou para muito tempo atrás.

Vinte anos antes...
-- Pare, sinhô!!! Mande parar!! Vai matá a menina!!! 
As chicotadas eram duras. O som hediondo feria o coração da mulher como se fosse nela mesma. Mas quando viu o estado de sua Lessandra, foi que se desesperou. A lividez daquele rosto, o desespero que via ali, nunca viu no rosto de mais ninguém. Quando ouviu o grito da sua protegida, foi que o pai impediu que o outro continuasse com o castigo. O corpo de Shanti já não respondia. Estava arriado. Mole. Carregou a filha pra dentro, enquanto Nora se preocupava em poder ajudar aquele ser desprovido de tudo. Levou um lençol para ampará-la. Não podia carregá-la, por isso recebeu ajuda de um meninote que reconheceu como sendo filho de um dos peões... Félix. Ele ajudou a cozinheira a levar o corpo ensangüentado pra dentro da casa grande.

Cuidando das feridas, a mulher jazia em lágrimas. Devia estar cuidando de sua outra menina, mas sabia que ela poderia muito bem lidar com o pai. Mas não sentiu que isso a abalara demais.
Olhou aquele corpo diante de si e chorou. Como aquilo poderia acontecer? O que tinham feito de tão ruim?
-- Less... Less... -- era o sussurro que ouvia.
Então entendeu tudo.
-- Lago... Nosso lago... -- a menina continuava a falar mesmo ela protestando. --... Lago... Lago...
A menina desmaiou de dor aos seus olhos, então conseguiu ouvir os gritos de Lessandra perto, invadindo o ambiente, enlouquecida.
-- Não...
Foi a sombra de uma palavra saída de sua boca ao ver as chagas inflamadas no corpo da amiga. Não conseguiu chegar perto, pois já desfalecia nos braços do pai que a levou para nunca mais voltar.


Captilulo 12
[27/08/11]
-- Tem um lago... Um lago onde elas se encontrava quando era criança...
Janice e Helena deixaram o menino aos cuidados de Nora e partiram para o lugar indicado.

Mais uma vez Shanti voltou a abrir os olhos, ou pelo menos um que estava só um pouco inchado dos murros que levou do pai. Percebeu que além de Nora, outra pessoa estava no quarto. Não conseguia se mover. Sentia um ardor lancinante abrasar-lhe as costas.
-- Nora... Nora... -- falava baixo e com dificuldade chamando a atenção da mulher.
-- Sim, filha... Está tudo bem... O médico está aqui, viu? Vai ajudá a parar a dor pra custurar suas costa... -- dizia em meio a lágrimas e soluços.
-- Senhorita... Vou aplicar-lhe anestesia local e um calmante para que durma durante o procedimento... Tudo vai dar certo...
A voz do homem era séria, mas sentia-se uma grande comoção nas palavras gentis. Ainda sentiu a primeira furada em sua pele antes de cair mais uma vez numa escuridão profunda.

xxxx
Uma semana e meia tinha se passado desde o horrendo episódio. Ainda não podia se movimentar muito. Tudo lhe doía, principalmente a alma. Uma vez em que Nora a alimentava ousou perguntar da amiga.
-- Como ela está, Nora?
A bá fechou os olhos e suspirou.
-- Num sei, menina... Seu Garcia inda num retornô da capitá...
Pensou que poderia escrever-lhe, mas não tinha condições nem de levantar o tronco. Esperaria mais alguns dias para concluir seu desejo. Na certa, ela estaria do mesmo jeito... Presa e incomunicável... Talvez até já tivesse sido mandada para um colégio interno bem longe. A ideia fez crispar todo seu semblante, alertando a mulher ao seu lado.
-- Que foi, filha? Tá sentino alguma coisa? Quer que traga analgésico?
Sem perceber, Shanti deixou uma lágrima escapar. Para a dor que sentia só existia um remédio e ele não estava ali.
-- Logo vamo sabê dela, menina... Fica assim não...
As mãos carinhosas afagavam os cabelos da moça no intuito de acalmá-la. Pensou em como aquela mulher era caridosa. Nem mesmo a mãe, que não viera só um dia visitá-la, seria capaz de tanto carinho para consigo. Pensou nas últimas palavras que ouviu da mãe... “Faça o que tiver de fazer pra ser feliz...”. Era exatamente o que iria fazer. Assim que estivesse curada partiria ao encontro de Lessandra onde quer que ela estivesse.
Durante a convalescença, conseguiu com Nora o endereço do patrão na capital. Escreveu longas cartas para a amiga onde contava tudo pelo que passava e o que, agora, ia em seu coração com esperanças de que ela entendesse. Quando a primeira carta voltou, depois a segunda e a terceira e todas as outras que enviara com o carimbo “devolver ao remetente” sabia que tinha perdido. Perdido a amizade, o amor, a confiança. Foram dias tristes, mas, mesmo assim, continuou a escrever de seus sentimentos sem enviá-los como vinha fazendo.


Janice observava Helena de soslaio enquanto se encaminhavam para o lago. Ela ia indicando o caminho, extremamente nervosa.
-- Ela é importante para você, não é? -- perguntou de repente, fazendo com que sua companheira estranhasse o assunto.
Helena olhou-a com carinho e segurou a mão que passava a marcha naquele momento.
-- Ela salvou minha vida, Jane... -- continuou com a mão na dela. -- Salvou meu filho... Ainda salva... -- fez uma pausa antes de continuar. --... Durante um tempo fomos amantes... -- sentiu o carro acelerar com força. --... Mas, depois, descobrimos que o que sentíamos uma pela outra era pura carência e tratamos de ser amigas... Muito boas amigas... Pare o jipe... -- pediu suave sendo obedecida imediatamente. -- Olhe para mim... -- Janice permanecia encarando a estrada. -- Olhe pra mim, meu amor... -- a mão delicada trouxe o rosto amado para si. -- Shanti ama Lessandra com loucura desde os cinco anos de idade... O que está acontecendo agora entre elas é complicado para explicar... Apenas confie quando lhe digo... -- acariciou a face rosada da médica que já deixava uma lágrima percorrê-lo sem barreiras. --... Eu te amo...
Os lábios encontraram-se sedentos e carinhosos por longos segundos. Foi então que o celular de Helena tocou surpreendendo-as. No visor o nome de Shanti.
-- Onde você está?!!
-- No lago... -- a voz entrecortada a preocupou. --... Lessandra... precisa de ajuda... Precisa...
-- Fique quieta que já estamos chegando... Janice está comigo... Vai ficar tudo bem, amiga...

Em mais duas semanas, Shanti já podia se erguer e andar normalmente. Os pontos já tinham sido retirados e, agora, era evitar movimentos bruscos por, pelo menos, um mês que se passou voando. Estranhava que o patrão ainda não tivesse retornado pra fazenda, mas foi só falar que ouviu a voz peculiar chamando por Nora. O coração bateu forte e seguiu para a sala corajosamente, mesmo sabendo que não era bem vinda naquela casa. Parou quando ouviu o nome da amiga ser pronunciado. Esgueirou-se para escutar sem ser vista.
-- Meu Deus, coitada de minha menina... -- era Nora aos prantos.
-- No dia em que chegamos, ela adquiriu uma febre alta... Dois dias depois entrou em coma e não saiu mais... Não sei Nora... Tenho medo que minha menina me deixe como a mãe dela...
Aquelas lágrimas estúpidas que lhe caíam dos olhos eram totalmente sem sentido para a moça. Se antes seu coração clamava pela amiga, agora ele simplesmente se desesperava por ela. Respirou fundo e, com a coragem renovada pela promessa feita a sua rainha de salvá-la do mal, deixou-se ver.
-- Seu Garcia... Por favor, me deixe vê-la...
O olhar fulminante que o homem lhe lançou a fez dar um passo atrás.
-- O que... O que essa... Nora! O que essa coisa tá fazendo dentro de minha casa?!!! A culpa disso tudo é dela!! Suma daqui agora mesmo antes que eu...
-- Me deixe vê-la... -- repetiu sem ligar para os berros do homem.
-- Escute aqui sua aberração!!! Nunca!!! Nunca, entendeu?!! Nunca vai encontrar minha filha de novo!!! Se sequer tentar... Te mato sem piscar uma vez!!!
Nora tentava segurar o homem que teve ímpetos de avançar para Shanti raivosamente.
-- Vambora pra casa, vadia!!
Era o pai que entrara para falar com o patrão, segurando-a pelo braço com força desnecessária. Shanti ainda olhava o pai da amiga, na esperança de que ele cedesse. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, foi arrastada pelo pai até sua casa, ouvindo dele as mesmas coisas que sempre ouviu desde menina.

A primeira pessoa que viu ao entrar em casa foi a mãe que a olhou sem ânimo e com uma tristeza imensa, como se desejasse que ela ficasse onde estava para sempre.
-- Escute bem, vagabunda!! Chega de vadiagem, está ouvindo?!! De agora em diante vai entender o que é botar comida na boca de imprestáveis!! Vai me ajudar na fazenda!!! Não quer ser homem?!!! Não quer ter colhões?!!! Pois bem!!! Vou te transformar em um completo!! Traz a tesoura, mulher!!!
Puxou uma cadeira e jogou a filha pra que sentasse nela. No pensamento da menina apenas o estado de saúde de seu amor... Seu amor... Cada vez que pronunciava em sua mente estas palavras o coração voava longe. Não reagiu. O pai falava, e falava, ela nada ouvia.
-- Cadê a porra da tesoura, Margarida?!!
A mãe apareceu com o objeto na mão, tremendo dos pés a cabeça. Pôs as mãos no rosto e se afastou para não ver a crueldade que o marido pretendia fazer com a filha.
-- Aqui,aberração dos infernos!!! -- pegou uma mecha do cabelo dourado. -- Macho num tem cabelo comprido, não!!! -- passou a tesoura sem nenhum cuidado e viu o cabelo cair ao chão. -- Aqui, macho que é macho, usa o cabelo curto!!! -- as mechas se amontoavam aos pés da moça que, calada, não se movia um milímetro. -- Pronto! Agora se deixar essa porra crescer de novo, além do cabelo, corto sua cabeça junto!!! Margarida!!! Margarida!!!
A mulher apareceu e quando olhou para a filha não resistiu e caiu num choro profundo.
-- Pare de patim e traga uma roupa minha pra ela!!! Vai logo!!! -- empurrou a esposa com força quase a derrubando.
Quando ela voltou com a muda de roupa, ele pegou e jogou em cima de Shanti.
-- Vista!! -- como ela não se mexia, ele pegou-a brutalmente pelo braço, levantando-a e arrastando para o cubículo onde ela e as irmãs dormiam.  Antes de fechar a porta, jogou um par de botas em cima dela. -- Tô esperando aqui fora! Tem cinco minutos!!!
Quando apareceu na sala, que também era cozinha, encontrou a mãe apanhando as madeixas loiras do chão, soluçando como só tinha visto nos dias em que o pai a machucava.
-- Sinto muito, filha...
A mulher aproximou-se e tocou a cabeça de pelos cortados de maneira tosca. Shanti não sentia. Nada disse e foi à procura do pai.

xxxx
A semana interminável e cansativa tolhia-lhe os pensamentos. Trabalhava das quatro da madrugada até as sete da noite. Procurava não pensar, mas era impossível. Então desafiou os conselhos do patrão e, com o endereço em suas mãos, iria em busca de sua felicidade custasse o que custasse.

Captilulo 13
[28 /08 /11 ]
-- Lá estão elas!
Helena apontou exasperada para Janice que acelerou mais ainda ao perceber que Lessandra estava desmaiada e o sangue manchava a camisa estupidamente branca de sua amiga.
-- Shanti! Shanti! -- Helena gritava enquanto corria para o lado dela.
Shanti abriu os olhos e não acreditou quando viu as amigas se aproximarem. Janice se ateve a Lessandra tomando-lhe o pulso assim que a alcançou.
-- O pulso está fraco... O corpo gelado... Está em choque... -- numa força descomunal, ergueu a mulher levando-a para o jipe, acomodando-a no banco de trás e envolvendo-a com uma manta lá existente.
Voltou rápido para ajudar Helena a carregar Shanti.
-- Calma... -- pôs os braços ao redor dela. -- Vamos te levantar... Não faz força...
Ao mesmo tempo, ela e Helena conseguiram por o corpo pesado de pé e praticamente arrastá-lo até o veículo. Já acomodada, a administradora da fazenda retrucou.
-- Less... Está desmaiada... Tentei acordá-la... Mas ela não responde...
-- Temos que levá-la rápido pro hospital... Deixei o helicóptero esperando na fazenda... O que houve? Ela bateu com a cabeça? Levou alguma pancada forte? Um estresse muito grande?
Helena entendeu imediatamente o olhar doloroso da amiga que não ousou responder.
-- Vai ficar tudo bem, Shanti... Ela vai resistir...
Janice não estava entendendo bem a situação, mas isso não era problema dela. Seu problema era socorrer as duas pessoas que transportava. Pegou o telefone e deixou o pessoal do hospital em alerta para sua chegada.


Acordou uma hora antes do rotineiro. Pegou a trouxa que arrumou na noite anterior e o dinheiro que pegara do pai no lugar onde ele escondia. Não era muito, mas achava que daria para chegar ao destino sem problemas. O coração hora acelerava, hora quase parava diante da temeridade do que estava prestes a fazer. Mas nada a tiraria daquele propósito, ainda mais agora que soubera por Nora, na semana passada, que Lessandra acordara, finalmente. Não olhou para trás.
Andou por mais de três horas até chegar à cidade. Não sentia o cansaço, apenas ansiedade, e era muita. Comprou a passagem e aguardou o ônibus sentada no velho banco da rodoviária. Para seu alívio, não teve que esperar muito. A sensação de vitória que sentiu quando entrou no veículo era palpável em seu sorriso e no brilho dos olhos. Assim, totalmente relaxada e feliz, não resistiu ao cansaço e deixou que o sono tomasse conta de si.
-- Ei... moço!! Moço!!
Uma voz irritante a tirava de seu sonho com Lessandra onde a encontrava num jardim maravilhoso e perfumado. Corriam uma para a outra, mas a maldita voz a acordou bem no momento em que se alcançavam.
-- Fim de linha, moço!! Tem que descer... -- o olhar do homem se transformou quando lhe percebeu a feminilidade. -- Eh... Hum... Tem que descer...
Disse e saiu rápido, constrangido com seu engano.

Não podia nunca imaginar a multidão de pessoas que estaria ali naquele lugar tão pequeno para tantos. O medo apareceu-lhe com força. O coração quis sair pela boca e sua vontade era ficar ali e esperar o próximo ônibus de volta, mas sua emoção era maior. Finalmente estava mais perto de seu amor. Retirou o papel já amassado de tanto lido e relido. De encontrão em encontrão que ia dando pelo percurso, acabou chegando ao lado de fora da rodoviária, onde avistou inúmeros táxis. Ficou pensando se o dinheiro que trouxera seria suficiente, quando um senhor a abordou gentil.
-- Então menina... Eu sou o da vez, não vai querer me fazer esperar muito não é? Olha que já tenho idade... Não aguento muito mais não! -- deu um sorriso sincero e acolhedor.
Shanti correspondeu meio sem graça e entrou, logo sendo seguida por ele.
-- Então senhorita, onde a deixo?
Ela entregou o papel com o endereço e imediatamente ele a olhou pelo retrovisor.
-- Bairro chique, menina... Fica um pouco longe daqui... -- olhou mais uma vez para as feições inocentes e preocupadas de sua passageira. -- Quanto dinheiro você tem, filha?
Os olhos assustados e desconfiados de Shanti não passaram despercebidos do motorista que sorriu compreensivo concordando com a ação da menina.
-- Tá certo, filha... Não se pode confiar em ninguém da cidade grande... Tenho uma filha mais ou menos de sua idade e não quero para você o que não quero para ela... Vou te levar no endereço, lá negociamos o preço. -- sorriu para ela de novo, que pareceu bem mais relaxada.

Quarenta minutos depois, o carro estaciona em frente a uma mansão com uma Shanti abismada com o tamanho da propriedade e um motorista muito desconfiado de que aquele seria o endereço certo.
-- Moça... Tem certeza que é esse o lugar? -- como ela não respondeu, ele continuou. -- Pronto! Está entregue! Agora vamos negociar... -- ela olhou para o homem com cara de medo. -- Vamos lá, senhorita... Quanto tem disponível para me pagar?... A corrida custou oitenta reais, mas vou lhe dar um desconto... Cinquenta reais, porque é pra você...
As notas amassadas dentro do bolso saíram de maneira dificultosa. Uma nota de cem e uma de cinquenta. A primeira precisaria para pagar a passagem de volta. Sobrava a segunda, mas teria que voltar à rodoviária. Pensou, e pensou, chegando a uma conclusão óbvia: Lessandra lhe emprestaria o que faltava com certeza.
Entregou a nota a ele constrangida por estar toda amassada. Ele riu mais uma vez e entregou-lhe um cartão.
-- Ligue se precisar... Tenha um bom dia... -- e arrancou com o carro rua a fora.
A trouxa na mão pesava mil quilos, tamanha a tensão que ela sentia. Chegou mais perto do portão e olhou para dentro quando começou a chover. Os pingos grossos não demoraram a deixá-la como um pinto molhado. Não via ninguém de lá e o portão estava trancado, então começou a gritar o nome de Lessandra a plenos pulmões. Para melhorar sua situação, um caminhão passou em alta velocidade jogando a lama que se concentrou na calçada em cima dela. Uma lama fétida e negra transformando-a numa sombra negra agarrada as grades de ferros. Depois de longos minutos, sem que tivesse percebido, um carro se aproxima e o portão abre-se automaticamente. Reconheceu os olhos verdes da amiga dentro do veículo e avançou ansiosa.
-- Less!! Less!!
Um homem vestido de preto saiu do carro empunhando um guarda chuva e abordou-lhe com brutalidade.
-- O que tá fazendo aqui pivete?!! Vai pedir esmola em outra freguesia!! -- ia empurrando-a para o lado do portão para que o carro pudesse passar.
-- Less, sou eu!!! Shanti!!  -- conseguiu soltar-se do segurança e bater insistente no vidro da janela e ela se abriu. -- Less... Sou eu... Shanti... -- o queixo já tremia pelo frio, mas ainda havia em seu rosto uma massa escura de lama que lhe deixava com uma aparência assustadora.
Os olhos cor de jade fixaram o rosto exposto na janela, frios, dir-se-ia até enojados com a cena.
-- Como sabe o meu nome? Quem é você? -- perguntou com asco da sujeira que via na moça.
-- Less... Sou eu... Shanti... Sua amiga, lembra? -- o olhar desesperado implorava pela recordação da outra.
Segundos evasivos depois, a moça protegida no carro luxuoso se manifesta, retirando de sua bolsa uma carteira e de lá uma nota de cem reais estendendo-a a ela.
-- Tome... Vá comprar algo para comer e saia da chuva... Não conheço você... Não tenho nenhuma amiga com esse nome... Agora vá embora, preciso entrar... 
Shanti segurou a nota mais por reflexo do que por vontade própria, vendo seu amor fechar o vidro e ordenar ao motorista que partisse.
Sua boca aberta e seu corpo paralisado na frente daquela casa a faziam personagem de um enredo fantástico onde criaturas medonhas se desenhavam em meio às ruas chuvosas. Era apenas um corpo pedindo socorro. Não tinha mais noção do que faria ou do que queria fazer naquele momento.  As palavras de Lessandra ainda ecoavam em seus ouvidos e lhe maltratavam diretamente o coração. Coração que havia aberto para ela, sem reservas, com pureza e dedicação. Ela era sua rainha e, como cavaleiro, sua missão era protegê-la para sempre. Tinha que lhe ser fiel até a morte. Permaneceria ali até que ela voltasse e lhe dissesse o que fazer. Não podia tê-la, simplesmente, esquecido. Voltou-se para frente do portão e agarrou-se nele mais uma vez. A chuva castigava o corpo já dolorido pelo estresse sofrido entre viagem e decepção. Ali ficou lembrando um a um os últimos momentos que tiveram no lago. Suas pernas já tremiam bastante e o cansaço carrasco as queria dobrar. Mas não permitiria. Era um cavaleiro, um nobre nomeado por sua realeza. Não esmoreceria.


-- Não, Nora... Não se preocupe as duas já estão sendo atendidas e passam bem... -- se odiou por estar mentindo para a mulher. -- Cuide de Nico, por favor... Vou ficar com elas aqui... Pode deixar, qualquer coisa te comunico, obrigada... -- Helena desligou o telefone com uma cara de preocupação notável.
Aguardava notícias de Janice a mais de cinco horas. Shanti estava na sala de cirurgia, pois os pontos foram rompidos com o esforço que fez para erguer Lessandra, na tentativa falha de colocá-la no jipe. Já Lessandra... Ela não sabia. Momentos depois, viu Janice se aproximar com uma cara não muito boa.
-- Então, amor? -- pediu-lhe com olhos assustados que dissesse algo bom.
-- Lessandra está em coma... E, infelizmente, não sabemos o que está causando o trauma... Os sinais vitais estão perfeitos... Não sabemos por que ela não acorda... De qualquer maneira está passando por uma bateria de exames neurológicos para ver se descobrimos algo...
-- E Shanti?
-- No pós-operatório. Correu tudo bem com ela... Está no CTI só por precaução... -- um suspiro de cansaço tomou conta da médica. -- Acho que não podemos fazer mais nada por hoje...
Helena enlaçou sua cintura e depositou um beijo leve nos lábios queridos.
--  Já que não podemos fazer mais nada por enquanto... Que tal descansarmos um pouco no seu apartamento? -- Helena fez uma cara safada para a mulher que já lhe sorria tímida.

A chuva diminuira consideravelmente, mas Shanti não desistia. As pernas curvadas faziam com que ela, praticamente, se pendurasse ao portão numa demonstração de resistência indescritível... Fome... Frio... Cansaço... Desespero... Angústia... Ela lutava contra tudo isso na esperança de poder ver sua amiga novamente e poder explicar a ela tudo o que houve. De repente se viu gritando o nome dela novamente até sentir a escuridão tomar conta de seu mundo novamente.
Um cheiro forte de café despertou-a do sono. Quando abriu os olhos fitou um olhar interessado dando-lhe um sorriso espontâneo que não foi correspondido.
-- Bom dia, moça...
A jovem segurava uma bandeja com o desjejum. Pôs ao lado da cama e aguardou que ela se pronunciasse. Mantinha os olhos castanhos claros fixos nela, avaliando sua expressão. Os cabelos ruivos caíam-lhe pelas costas e de vez em quando derramavam-se por sobre o rosto redondo e branco obrigando-a a ficar retirando-os da vista constantemente.
-- Meu pai achou você desmaiada na rua. Ele disse que você foi uma passageira dele ontem de tarde... Não quer comer? Tá tudo fresquinho...
Shanti não se fez de rogada e devorou vorazmente toda a comida oferecida. Precisava ficar forte para voltar na mansão e ver sua amiga novamente. Enquanto comia, o motorista apareceu no quarto com um sorriso enorme.
-- Muito bem, minha filha... Saco vazio não para em pé... Então, como está se sentindo hoje?
-- Com fome... -- disse e abriu um sorriso tímido para seus benfeitores. -- Obrigada seu... seu...
-- Borges... Pode me chamar de Borges, menina... E esta é minha filha Adelaide... Ah! -- pôs a mão no bolso da calça e retirou de lá duas notas. -- Estavam com você ontem à noite quando te encontrei... -- entregou os duzentos reais a ela. -- Menina... -- ela lhe disse o nome antes dele continuar. -- Shanti... O que aconteceu ali, naquela casa? Por que ficou do lado de fora?
Ficaram esperando, pai e filha, a resposta de Shanti.
-- Seu Borges, o senhor me leva lá de novo hoje?


Captilulo 14
[29 /08 /11 ]
Os corpos nus abraçados na cama repousavam da extrema fadiga que o amor lhes causou. Janice acolhia em seus braços a mulher que amava, sentindo-lhe a respiração quente entre seus seios arrepiar-lhe inteira. Incrivelmente não sentia cansaço algum, muito pelo contrário, parecia invadida por uma energia poderosa a qual nunca havia experimentado antes. Fechando os olhos procurou o exato momento em que explodiram num gozo mútuo e demorado. O primeiro momento de sua felicidade completa. Helena, para ela, tinha deixado de ser a mulher que amava para se tornar sua própria vida, sem a qual jamais poderia viver. Esse pensamento concreto fez com que a apertasse mais no abraço e beijasse o topo de sua cabeça que se encontrava bem próximo de seus lábios. Ouviu seu gemido manhoso e a mão sem vergonha tomar conta de seu sexo com vontade...
-- Bom dia, amor... -- a voz denotava o tanto de desejo que a mão ilustrava.
-- Bom dia, anjo... Tá com fome? -- a médica preocupou-se.
-- Sim... Muita fome...
Janice tentou levantar-se para alimentar a namorada, mas foi impedida pela mesma sendo jogada de volta na cama.
-- Pra onde meu desjejum acha que vai? -- lambeu os lábios e os olhos se inflamaram com paixão. -- Vai me deixar com fome é, doutora?
Avançou com a boca nos lábios grossos e vermelhos de sua amada. Invadiu-a, tomou-a num gole só, deixando a língua se aventurar dentro dela. Ouviu sua médica gemer extasiada. Apertou os seios em suas mãos... Delicados, intumescidos... Prontos para serem sugados e foram. Mamou, se esbaldou neles como criança esfomeada, enquanto uma das mãos seduzia a vagina grande de lábios quentes, esperando a penetração como obra divina, um milagre a ser alcançado sem pudor. O ritmo acelerava-se. Janice quase gritava pelo gozo iminente. Helena chupava seus seios e sua mão ainda brincava de entra e não entra no sexo pulsante da amada que se contorcia em agonia. Ouviu a súplica... Chorada... Penitente... Entrou com os três dedos recebendo como recompensa o gemido alto de sua amada. Seu nome reverberando nos ouvidos como música hipnotizante... O prazer extremo que sentia lhe mandou lágrimas nos olhos... Lágrimas quentes do amor que nunca experimentara... Sempre fora objeto de luxúria ou de carência, mas nunca tinha doado amor de verdade como ali, no corpo da mulher que amava e que agora era sua vida... Janice era sua vida... Tinha certeza como a de respirar... Tomou-a para si. Marcou seu território a ferro e fogo. A brasa de uma paixão incontrolável como tinha de ser quando se entrega a alma.
A roupa limpa e cheirosa se acomodou ao corpo ainda cansado da aventura anterior. Quando percebeu que vestia outras roupas que não as dela, se envergonhou de não ter tratado melhor a moça que lhe doou as mesmas. Nem seu nome sabia. Enquanto arrumava suas coisas percebeu a presença da filha do motorista.
-- Vai embora... Espero que dessa vez tenha sorte... -- falou rápido sorrindo, mas sem encará-la.
-- Preciso... Tenho que resolver um assunto, mas queria agradecer... Nem sei seu nome...
-- Carla... -- apresentou a mão em cumprimento.
-- Obrigada, Carla... -- respondeu apertando a mão estendida. -- Até qualquer dia...

Borges olhava atento para a menina no banco de trás do seu automóvel. Ela parecia perdida em pensamentos. Apesar dela estar lhe pagando a corrida, não queria devolvê-la para aquele lugar onde a trataram como lixo.
-- Aqui estamos, senhorita...
O olhar parou no portão fechado da mansão. Saiu do carro e andou para lá, olhando fixo para a casa que se via ao longe. Notou que Borges continuava parado, observando. Sentiu-se segura. Voltou a olhar para a mansão. Viu por entre as árvores duas silhuetas. Uma parecia de sua amada e a outra de uma moça que não conhecia. Deu pra perceber que se divertiam rindo e se abraçando de vez em quando. Precisava entrar para falar com Lessandra.
-- Vamos lá, menina... Sobe aqui...
Viu o homem meio gorducho oferecer o ombro para que ela pudesse pular o muro. Borges se atrevera a ajudar-lhe, mesmo sabendo que corria o risco de se dar mal depois. Shanti abriu um sorriso imenso e aceitou sua ajuda, agradecendo-o pela gentileza. O homem nada disse. Ficou a olhá-la se afastar para dentro da propriedade. Esperaria o desfecho, fosse qual fosse.
Dentro do jardim ao aproximar-se podia identificar as vozes. Uma era de seu amor a outra de uma jovem que não conhecia. Falavam rápido e alegremente. Chegando mais perto, pôde vislumbrar uma enorme piscina na qual duas jovens mulheres se divertiam. Quando sua presença foi notada, Lessandra foi a primeira a se pronunciar.
-- Você de novo!! Agora que está limpa dá pra ver melhor seu rosto! O que quer?! Já lhe dei dinheiro...
-- Less... Sou eu... Shanti... Não lembra de mim?!... -- apressou-se em chegar perto dela que se assustou.
-- Fique onde está ou chamo os seguranças!!! Vá embora!! Não te conheço!! Nunca te vi!! De onde você veio? Não te conheço!!
-- Less... Somos amigas... Eu...
A gargalhada da moça a desconcertou.
-- Amiga? Você está maluca!! Eu não tenho amigas da sua laia... Olhe pra você! De que buraco saiu, mendiga?!!! -- gargalhou de novo acompanhada pela outra moça que assistia a tudo curiosa.
O coração de Shanti parou. Viu as moças entrarem na casa sem se mover um milímetro. Sua respiração já não era normal e de seus olhos azuis, escorriam fios de água cristalina representando a tristeza e a dor que lhe eram companhia naquela cena absurda. Sentiu mãos pesadas em seus ombros, trazendo-a de volta para a realidade.
-- Ouviu, aberraçãozinha de merda! Minha filha não é doente como você! Ela te esqueceu porque não quer ser como você é!! Uma vadia doente! Agora, como sou bonzinho vou te var de volta pra fazenda e vou cobrir o dinheiro que você roubou de seu pai pra ele não te matar de porrada!!! Mas quero que prometa que nunca mais... Nunca mais, ouviu bem!!! Procure minha filha de novo!!

Quando percebeu, estava dentro de uma caminhonete dirigida por um dos funcionários de seu patrão. Na saída, Borges alcançou o carro antes dele acelerar.
-- Shanti! Está tudo bem?!
-- Está... Estou voltando pra casa... -- disse sem entusiasmo. -- Obrigada por tudo, Seu Borges...
O automóvel acelerou deixando o homem preocupado para trás.

Ao abrir os olhos, Helena encontrou os da amada fitando-a com um amor tão intenso que se emocionou. Com lágrimas nos olhos, ergueu a mão para acariciar-lhe o rosto...
-- Dormiu bem, esposa? -- viu a lágrima escorrer dos olhos castanhos claros. -- Quer ser minha esposa, amor? -- parou um pouco pra limpar a garganta do choro inevitável. -- Porque não vou mais saber respirar sem você...
Os corpos foram novamente atraídos pela paixão que as consumiu durante mais um tempo, até se prepararem para voltar ao hospital.

-- Preciso vê-la... -- a mulher alta fez menção de levantar-se, mas desistiu quando a dor a derrubou de volta à cama.
Janice olhou-a com curiosidade, mas foi profissionalmente categórica.
-- Vamos analisar isso de frente, Shanti... Você quase morre por ter rompido os pontos de uma operação recente e não pode, ainda, fazer esforço algum. Lessandra está em coma e não vai poder falar com você por enquanto. Acha que vale a pena piorar seu estado de saúde para encontrá-la? Sabendo que, com certeza, quando ela acordar vem direto te ver? -- percebeu a dúvida nas feições da paciente. -- Não sei o que aconteceu entre vocês, mas se é forte do jeito que sinto que é ela não agirá de outra forma... Pense nisso, amiga... -- ia se retirando quando subitamente voltou para olhá-la. -- Ia me esquecendo... Quero que seja madrinha do meu casamento... Você e Lessandra... Helena me pediu hoje de manhã... Não aceito negativas... -- piscou e saiu.

Shanti sentiu uma pontada de inveja da médica. Pensou em Helena e sentiu-se feliz por ela. Finalmente encontrara o amor de verdade. Ela e Nico seriam muito amados, pois Janice transbordava amor quando se tratava deles. Voltou os pensamentos para Lessandra. Reviu detalhadamente todos os momentos da manhã anterior. O desespero nos olhos dela... As carícias em suas cicatrizes... O desmaio... Tinha fugido de novo... Para onde? Quando voltaria? E, quando voltasse, a entenderia? Adormeceu com estes pensamentos e sua mente levou-a ao seu paraíso de amor há vinte anos, quando se apaixonara por sua melhor amiga.
Na porteira, um homem alto de cabelos loiros esperava a caminhonete entrar. Mal a menina saíra do carro, ele a derrubou com uma bordoada certeira no rosto. Shanti apoiou o corpo com as mãos para se erguer e, enquanto o fazia, viu passar por seus olhos toda a humilhação que sofrera desde criança. O pai esfolando a mãe, ela e as irmãs... A gargalhada de mofa da amiga que a humilhou mais que o próprio pai... Ouviu a voz debochada do patrão humilhando-a por sua condição sexual... As três pessoas que fizeram seu coração endurecer para sempre. Ao se levantar, surpreendeu o pai segurando o golpe que estava prestes a levar novamente, revidando com um soco direto no nariz dele que só não caiu por que o subordinado que assistia a tudo o segurou. O homem sentiu o sangue escorrer pelo nariz e investiu contra a filha mais uma vez, sem conseguir evitar ser atingido de novo no nariz e  no estômago. Viu-se seguro pelo colarinho com uma força extrema, só então percebeu que a filha tinha crescido.
-- Escute aqui maldito!!! Cansei... Cansei de todos vocês!!! Se encostar um dedo sequer em mim, na minha mãe ou nas minhas irmãs, eu te mato com minhas mãos!!! Não queria um filho macho?!!! -- apertou mais ainda o colarinho sufocando-o. -- Vou mostrar pra você!! Praquele velho babão do seu patrão e praquela vadiazinha orgulhosa da filha dele, que eu não preciso de colhões pra manter minha dignidade e fazer meu trabalho melhor que qualquer um!!! -- jogou o homem no chão que massageava o pescoço respirando com dificuldade.
Desde esse dia o pai não era mais o mesmo. Andava cabisbaixo, mal falava com a família, mas ensinou a filha mais nova tudo o que aprendera na vida. Seu silêncio o corroia por dentro. Via a cada dia a filha parecer-se mais consigo nas atitudes de trabalho. Ficou orgulhoso, mas ferido no seu brio de pai.
Os anos foram passando, um após o outro. Depois de cinco, encontrou o pai sentado em sua cadeira preferida do lado de fora da casa. Já estava morto. A mãe, ao seu lado, segurava a mão dependurada. Em seu olhar o maior vazio que havia visto na vida.

Não demorou muito e a mãe também adoeceu. De tristeza? De solidão? De cansaço? A última conversa com ela fora dolorosa e reveladora. Contou-lhe de seu passado e de como se casara com o pai. Estava deitada na cama em seus últimos momentos quando chamou a filha. O médico e o padre estavam a postos para o que viria.
-- Filha... Perdoe-me... -- fez uma pausa para respirar melhor antes de continuar. --... Por não ter te dado meu amor de mãe... Um amor que nunca existiu em mim... Nem por você... Nem por suas irmãs... E muito menos por seu pai, que foi apenas uma vítima de meus pecados... E dos pecados dele... -- olhou a filha e nela viu um pouco de si e de seu falecido marido. Percorreu-lhe as linhas da face com os dedos frios. -- Você, no fundo, tem a mesma fibra que ele teve um dia... A mesma garra... O mesmo poder de encantamento que me cativou quando eu tinha dezesseis anos... Ele tinha esses olhos... E essa força... Que há em você, filha... Mas... -- respirou mais fundo, tentando voltar ao passado. --... Meu egoísmo tirou isso dele... E eu tirei dele mais do que podia tirar... Eu o transformei nesse homem que conheceu e padeci todos esses anos... Minha culpa... Ele amava minha irmã... -- fechou os olhos como se estivesse vivendo tudo novamente. -- Ela era linda, filha... Meiga... Carinhosa... Uma flor... Sim... Uma flor, filha... Suave... E o conquistou em um breve momento...  Eu fui testemunha desse amor... Fui confidente dela... Um amor proibido por meu pai... Ele era apenas um peão da fazenda, mas viu nele o que eu vi através dos olhos dela... Eu o cobicei mais que tudo na vida... Eu o queria... Para provar que poderia ter tudo que ela tinha... Ela... A mais querida... Eu tinha apenas minha vontade... Minha frustração alimentada pela pessoa iluminada que minha irmã mostrava ser para todos... Eu queria ser ela... Então eles consumaram o amor e eu era a guardiã desse segredo... Meus mais imundos instintos me arraigaram a ira... E ela aumentou quando minha irmã revelou sua gravidez inesperada... A tonta feliz e eu odiando-a e querendo o seu amor para mim... Só para mim...  Meses se passaram, enquanto eu ouvia da boca dela como se amavam e acoitava encontros, mas tendo como presença minha inveja... Maquinando contra eles... Então quando os sete meses estavam completos, dei-lhes o golpe de misericórdia... Contei tudo ao brutamonte de meu pai... Ele sim sabia como castigar...   -- um sorriso débil se fez no rosto moribundo. -- O espetáculo hediondo se fez diante de mim... -- os soluços fracos e impotentes vieram. -- Ele a espancou muito... Não contente, arrastou-a pelo cabelo para descer e enfrentar diante da família seu comportamento de vagabunda... Sim, foi chamada de vagabunda por ele... Por mim... -- respirou mais profundamente que o normal. -- Eu... Meu Deus tenha piedade de minha alma... A enxotei junto com meu pai que, sem ter noção do estado dela, jogou-a escada abaixo... -- o choro se transformou em falta de ar e o médico lhe prestou socorro fazendo-a voltar ao normal. -- Ela morreu junto ao filho... Um menino... Lindo... Loiro como ele... De olhos azuis como os dele... Como os seus... Depois de um ano ele me procurou... Eu sabia o porquê... Ele queria vingança... E eu queria pagar meus pecados... Meu pai não se opôs... Mas me deserdou e esqueceu que tinha filha... E a minha vida e a dele foram de cobranças... Disse-lhe em penitência da minha participação na sua desgraça... Apenas me pediu um filho... Um filho que lhe desse orgulho... Um que substituísse aquele que perdera da mulher que amara e sempre amou até a morte... Deus foi piedoso comigo... Me fez pagar o que devia... Não pude lhe dar um filho homem, mas tenho certeza que, onde estiver, ele está orgulhoso de você, minha filha... -- o ar faltava-lhe. -- Ame... -- apertou forte a mão da filha. -- Não faça como ele... Não se transforme no que ele se transformou... Espere... Lute... Mas tenha esperança... Mantenha sua essência, filha... Espere... Sei que vai ser feliz... Estarei com você... Estarei...
Foram as derradeiras palavras.
No enterro, apenas os empregados, o patrão nem um pouco comovido e elas... Quatro mulheres.  Depois do ritual findado, percebeu a aproximação do senhor Marques.
-- Temos que conversar, menina. -- a rudeza peculiar na voz não impressionava mais a agora mulher. -- O lugar do seu pai está vago... Sei que há muito tempo é você quem toma conta de tudo aqui... Quero que assuma o lugar dele. Te pago o mesmo salário e...
-- Quero o triplo... -- olhou diretamente nos olhos dele. -- Porque vou fazer a Monte Verde crescer trinta por cento ao ano a partir de agora... Depois do primeiro ano, quero a administração da fazenda e participação nos lucros de cinco por cento ao mês... Se eu não conseguir, devolvo a diferença com juros e correção monetária...
-- Acha que sou louco?!! Que vou entregar minha fazenda nas mãos de uma pirralha doente?!!
Shanti não moveu um músculo e continuou a encará-lo segura.
-- É só olhar os livros durante estes cinco últimos anos e ver que as implantações que fiz na fazenda a fizeram crescer vinte por cento ao ano... Fale com seu contador... Depois me dê sua resposta. Só não demore muito... Tenho proposta da Rosa dos Ventos aqui do lado... Fiquei de dar resposta semana que vem...
Retirou-se deixando o velho pensativo.                            

Captilulo 15
[30 /08 /11 ]
Uma semana havia se passado. Shanti não aguentava mais esperar, e o médico, ainda cauteloso, permitiu que ela visitasse a amiga, mas na cadeira de rodas para não correr riscos.
Quando entrou no quarto auxiliada por um enfermeiro, pediu encarecidamente que ele a deixasse sozinha. Ele entendeu e saiu sem questionar, mas não sem antes dizer que esperaria do lado de fora e que ela o chamasse quando tivesse terminado a visita para levá-la de volta, pois nenhum esforço deveria ser feito por ela.
Não sabia explicar o que sentia naquele momento. Estava muito próxima a cama. Ergueu a mão lentamente e tocou o rosto amado. Seu amor dormia tão serenamente que, mesmo sentindo sua falta, desejou que dormisse mais um pouco. Deu-se conta do quanto aquela mulher havia suportado nos últimos dias... O acidente com Tufão onde machucara o pulso... A confusão que havia formado naquela cabeça ao deixar o amor escapar no carinho e devoção com as quais a tratou ignorando-a depois como se nada tivesse acontecido... A visita repentina do noivo... O amor brutal ao qual a apresentara no escritório sem nenhuma consideração... A sofrível separação do crápula interesseiro, da qual fora informada por Nora que ouvira tudo preocupada com sua menina... Depois o seu próprio acidente com aquele touro... O desespero nos olhos verdes... As lágrimas... A declaração de amor nítida... Mutuamente nítida... E novamente seu afastamento... A visita do advogado lhe revelando a vontade de vender sua parte na fazenda... Tudo isso... Por fim, a descoberta de todo o passado doloroso. A galega fechou os olhos, martirizada por todo este histórico de estresse... Quem em sã consciência não pediria socorro? Quem em sã consciência não pediria um descanso... Para a alma?
-- Não quis te magoar, meu amor... Não quis que passasse por isso... Pedi tanto a Deus que te deixasse no esquecimento... Só queria protegê-la disso tudo, mas eu... Fui a grande causadora de sua dor... Me perdoa... Perdoa a fraqueza... A covardia... -- a mão deslizava pela pele suave. -- Sei que não quer sair desse lugar seguro... Tem seus motivos... E também entenderei se quiser esquecer de novo... -- as mãos, juntas, seguraram a da mulher adormecida. --... Apenas sobreviva... É o que te peço, meu amor... Sobreviva... Acorde para a vida... Me esqueça mais uma vez, mas acorde... Para viver o que tem que viver...
Soltou a mão com inimaginável esforço, para depois chamar o enfermeiro e ser levada para seu quarto. No caminho encontrou com Helena e Nico que, ao perceber que a mãe falava com sua tia Shanti, avançou para ela guiando-se pela voz.
-- Tia! Tia!
O abraço do menino a revigorou muito. Recebeu aquele abracinho querido e não deixou de esboçar tudo isso em lágrimas sensíveis.
-- E então, meu garotão... Está cuidando bem de sua mãe? Lembre-se que você é o grande homem da família...
-- Claro, tia... Tô cuidando muito bem dela... -- os olhinhos reviravam alegres, enquanto as mãozinhas reconheciam o rosto amado da tia sem o sorriso infantil lhe abandonasse. -- Sabe que vou ganhar outra mãe? Tia Jane conversou comigo e mamãe. Ela teve que pedir a mão dela pra mim... Sou o homem da casa! -- e gargalhou inocente de tudo. -- Sabe que vou carregar as alianças? -- balançou a cabecinha como procurando a mãe. -- Fala pra ela, mãe! Que vou fazer terno e tudo! -- e continuava a girar os olhinhos espertos todo o tempo.
Helena sorriu emocionada da alegria do filho com seu casamento, relembrando o momento tão especial.
-- Este aqui só quer saber de folia... E de roupa nova... -- bagunçou o cabelo dele que logo tentou arrumar o mesmo. -- Estamos felizes... Como sei que você vai ser, amiga... -- apertou-lhe a mão em encorajamento.
Janice vinha chegando muito apressada. Parou quando avistou o trio.
-- Ela acordou...

Olhava para o horizonte satisfeita. Sua proposta tinha sido aceita, lógico, depois que o patrão, desconfiado, se informou devidamente de seu trabalho.
Três anos se passaram. A Monte verde era sucesso em todas as esferas dos assuntos de agronegócios. Matérias e mais matérias sobre o funcionamento da mesma eram publicados, mas Shanti era quem menos aparecia. Deixava ao encargo dos técnicos e agrônomos contratados as explicações para o sucesso. Seu coração, afogado no passado, ficara em segundo plano.
No segundo ano após sua administração teve que viajar para a capital.  Relutantemente, já que, depois da experiência anterior, preferiu ficar longe de lá. Mas o contador preocupadíssimo a tinha convencido da importância de sua presença no negócio a ser tratado com os principais fornecedores da fazenda. Tentavam uma negociação inédita e o sucesso de toda uma estratégia montada por ela poderia ir por água abaixo.
No caminho para a capital lembrou-se do amigo Borges. Devia-lhe tanta delicadeza e consideração que não pensou duas vezes. Passou antes numa delicatessen que também era uma casa de secos e molhados. Ficou interessada no negócio, tanto que conversou um pouco com o gerente sobre o assunto. Tinha dinheiro parado e isso não era nada bom. Pensava sempre numa maneira de investir em outros ramos, mas até o momento nada tinha lhe chamado a atenção. Pensou no amigo Borges, faria uma surpresa para ele com os apetrechos que tinha comprado no lugar já que ele era um bom descendente de portugueses.
Estacionou o carro que alugara no aeroporto bem em frente a casa do amigo. A casa simples lhe pareceu tão acolhedora. Agora que tinha mandado as irmãs estudar longe em colégios particulares e lhes dava a vida que mereciam para não se perderem de si mesmas, ficava tão só o tempo todo que sentia falta de uma família. O amigo, sempre lhe parecera um paizão cheio de amor pra dar.
Parou de frente tomando coragem pra entrar quando mãos firmes lhe tomaram o braço com intimidade.
-- Sabia que ia voltar...
Carla apertava-a quase sem controle e abriu o portão com ansiedade. Levou-a para dentro e mostrou-lhe ao pai que, sentado de pijama numa poltrona, pareceu se surpreender e, muito incomumente, se emocionar mais do que o esperado.
-- Menina... Que bom que está aqui...
Shanti não deixou de notar a dificuldade do homem em chegar até ela. Abraçou-o muito apertado. Sentiu o corpo grande se derreter nos seus braços. Amparou-o preocupada.
-- Amigo... -- devolveu-o a poltrona.  -- O que houve?...
A filha chegou mais perto e foi ela quem falou, poupando o pai de mais sofrimento.
-- Não pode mais dirigir... -- os olhos cheios de lágrimas me derrubaram. -- Mas está vivo, né pai?
Viu o amigo virar o rosto para a janela. Não era mais o Borges sorridente contra qualquer situação. Era um homem sendo dizimado pela impotência. Olhei para Carla que sofria muito mais. Aquele homem merecia a chance de ser feliz e tinha uma filha para cuidar, apesar de saber que era ela, na sua força tão juvenil, que o sustentava... Apenas com amor.
-- Pois pode ir parando com essa moleza!! - olhou para Carla, cúmplice. -- Por que acha que estou aqui? -- viu o homem voltar a atenção para ela. -- Então? Preciso ganhar dinheiro também! Quero investir no ramo de panificação agregado ao de vinhos e queijos importados... Coisa boa... Mas preciso de um portuga sabido pra administrar pra mim! Vim te procurar, amigo...
O brilho naqueles olhos valia mais que ouro. Carla disfarçava as lágrimas de contentamento quando viu o pai levantar e dizer que voltava logo para tratar de “negócios”. Enquanto isso, eu entregava à menina de cabelos ruivos as sacolas com vinhos e queijos para a comemoração. Acompanhou os movimentos dela indo a cozinha voltando logo depois com pratos, copos e talheres, organizando tudo numa alegria imensa. Parou quando percebeu que eu a observava. Deu um sorriso maravilhoso que lhe deu uma sensação tão boa que falei a primeira besteira que me veio à cabeça.
-- Como vocês tem se virado? Quer dizer... Seu pai parado... Como...
-- Acho que isso não é muito da sua conta... -- a voz firme mais triste contrastava com a resposta agressiva. -- Ele tinha umas economias... Deu pra gente se virar.
Continuou a arrumar a mesa, quando, de repente, se virou com o mesmo sorriso de antes no rosto e me puxou em direção ao seu quarto. Lá dentro pegou umas revistas de cima de uma escrivaninha e me mostrou.
-- Tá vendo? Todas falam de sua fazenda... Citam seu nome... Mas você nunca aparece... -- falou triste. -- Quando vai fazer uma matéria com sua foto?
Quando ia responder a porta se abre e podia ver o Borges, seu amigo Borges, vestido a caráter, barbeado... Outro ser humano.
-- Muito bem, menina... O que temos que fazer? -- riu aquele riso de bonachão e protetor.
-- Primeiro... Vamos comemorar!
Fomos para a sala. Ele olhou pra mesa e não acreditou.  Vinho e queijos, todos de bom gosto. Os olhos marejados fizeram as honras. Abriu a garrafa e nos serviu, rindo à toa.

 Depois de estarmos satisfeitos, dei-lhe carta branca para procurar o empreendimento que iria tornar-lhe a vida mais produtiva, entregando-lhe o cartão do gerente do estabelecimento que visitara.
Não tardou a anoitecer. Os compromissos de trabalho começavam de manhã bem cedo. Quando começou a se despedir, Borges insistiu para que ficasse.
-- Minha filha... Você está em casa... Pra quê vai pra esses hotéis cheios de frescura onde não se fica à vontade? Fique aqui... Pode dormir no quarto de Carla...
Não estava mesmo gostando da ideia de ter que ir para um lugar onde não conhecia as pessoas e mal sabia se comportar, mas quando viu o olhar de Carla, temeu em ter que ficar. No fim, aceitou a oferta do amigo.
Carla, como da outra vez, emprestou-lhe algumas roupas, mas Shanti nestes oito anos, tinha crescido bastante. A mulher ria de seu jeito desengonçado cada vez que uma roupa não lhe cabia, ficando apertada ou curta demais.
-- Espera! -- a ruiva saiu rápida do quarto, quando voltou com um dos pijamas do pai. -- Acho que esse dá! -- não resistiu à gargalhada por causa da cara que a outra fez. -- Deixa eu te ajudar... -- aproximou-se devagar e com habilidade incrível, retirou a camisa masculina de Shanti. -- Você é muito linda, sabia? -- afirmou tocando o top que cobria os seios pequenos.
Shanti quis impedir a ação, mas estava excitada demais para reagir. Oito anos desejando uma única mulher. Precisava extravasar o desejo que nunca deixou sair de si. Carla era uma mulher linda em seus vinte anos de idade. Corpo cheio, seios fartos, curvas sensuais que não passavam despercebidas de nenhum mortal. Queria aquele toque... Queria se descobrir mulher naquelas mãos macias que partiam para seu ventre sem pudor. Parecia exatamente como fazer para deixá-la sem ar. Como se adivinhasse seus pensamentos, ela ronronou em seu ouvido.
-- Deixa que eu te mostre, gostosa... Deixa que eu te leve onde você tá doida pra ir...
E a vida sexual da administradora de fazendas passou das masturbações feitas inocentemente na hora de dormir ou enquanto tomava o banho. Agora tinha se deixado ser mulher e tinha comido pela primeira vez a fruta que tanto a tinham proibido de provar.

Acordou com o barulho leve, mas fingiu ainda estar adormecida. Pela fresta do olhar semi-aberto viu uma Carla toda arrumada. Maquiada fortemente, fazendo Shanti lembrar-se das mulheres que... Parou o pensamento imediatamente. Não podia ser! Carla não era uma daquelas mulheres. Viu quando ela estacionou na porta, esticando o olhar carinhoso para ela saindo logo depois. Com o coração nas mãos levantou-se  vestiu-se rapidamente no intuito de segui-la. Quando alcançou a rua notou a presença do vulto numa esquina. Viu quando um carro de luxo parou para levá-la. Entrou no seu e seguiu da maneira que pôde o outro veículo.

Reunião. Meio mundo de engravatados. Olhou-os todos meio enojada, mas firme no seu propósito. Sentaram-se.
-- Só tenho três palavras... Vamos ganhar dinheiro... Agora é com vocês...
O bando de homens de negócios se alvoroçou ao ouvir as palavras duras da mulher jovem com apenas vinte e três anos, mas que tinha o poder de decidir se o dinheiro rolaria ou não.
Mas a mente da administradora não estava ali, mesmo que isso fosse extremamente necessário. A noite anterior tinha dado a ela a exata noção do que era a vida naquele mundo, finalmente.


Captilulo 16
[31 /08 /11 ]
-- Você ouviu o que eu disse, Shanti?
Janice segurou no braço da mulher pálida e quase catatônica à sua frente.
-- Ouvi... --- um miado fraco.
-- Ela perguntou por você... -- deu um sorriso maroto. -- Que foi que eu te disse? Era só dar um tempo pra ela... Então? Vamos vê-la?
Pânico. Esta era a palavra que acendia e apagava na mente da mulher na cadeira de rodas. O que diria a ela? Melhor... O que ouviria dela? Que, agora que tudo havia sido revelado em sua mente, concluiu que seus sentimentos eram apenas uma tremenda confusão por causa da memória perdida? Que seria melhor continuarem a amizade que cultivavam desde pequenininhas? Que deixasse tudo o que acontecera naqueles dias desde que chegou à fazenda no esquecimento como tinha feito durante anos? De repente sentiu-se muito cansada para enfrentar todos estes dilemas.
-- Preciso descansar, Janice... Talvez, mais tarde...
-- Quando a sua cabeça ficar ainda mais dura?! -- a médica explodiu sem querer.
-- Pois saiba que ela não nasceu assim!!! Se ela é dura, teve seus motivos e lhe digo: qualquer um hoje teria a cabeça mais dura do mundo!!
Pediu ao enfermeiro que retornasse com ela para o quarto.

Lessandra olhava ansiosa para a porta, imaginando a hora em que ela se abria e a única pessoa que amou na vida entrasse por ela. Ouviu o barulho característico e pensou que o coração lhe sairia pela boca. Decepcionou-se ao ver as figuras de Helena, Nico e Janice adentrarem no quarto.
-- Mas que dorminhoca você é, hein? -- Helena falou já abraçando a amiga.
Nico com sua esperteza cega tateou até a mulher e, ajudado pela mãe, abraçou-a também. 
-- Tia Less!! Que bom que acordou! Porque minha mãe vai se casar, e você vai ser a madrinha junto com minha tia Shanti e tem que fazer logo o vestido! Porque eu vou fazer um terno novinho!!
Disparou sem noção da comoção que causava na moça que acabara de renascer.
-- Nico!! Vá devagar! Não assuste sua tia... -- Janice já segurava o menino pela cintura retirando-o de cima da cama.
Lessandra olhou-as com lágrimas nos olhos, com uma enorme pergunta nos olhos verdes.
-- Vamos, Nico... Mamãe precisa falar com tia Less sobre o casamento... Que tal um sorvetão?
O menino abriu um sorriso tão grande e abobalhado que todas riram sem poder evitar. Assim que eles saíram, Helena sentou na beirada da cama e, como por instinto de proteção, trouxe o corpo da amiga para um abraço confortante.
-- Ela virá, amiga... Apenas está assustada...
-- Eu sei e é minha culpa... Eu a humilhei... Eu a esqueci, e ela... -- soluçou nos braços da amiga. --... Sempre forte... Sempre me protegendo... Meu cavaleiro...
Helena chorava junto. Lembrou das noites em que confortou Shanti de suas dúvidas, de suas dores. Foi testemunha do amor incondicional que ela sempre sentiu.
-- Ela te ama muito, Less... Deus sabe as noites infindáveis em que a ouvi expor seus medos, suas frustrações e sua dor de não poder ter você na vida dela... Ela te ama, por favor, não duvide... -- sentiu o abraço fortalecer-se como em compreensão às suas palavras. -- Ela só está com medo... Entenda... A história dela não foi fácil... Para ela, seu amor é um sonho...
Lessandra soltou-se do abraço para encarar a amiga.
-- Ela está errada, Helena... Preciso dizer isso a ela pessoalmente... Preciso dizer a ela o que foi minha vida desde aquele dia... Preciso que ela me perdoe... Preciso saber dela tudo o que aconteceu... Preciso do amor dela... Para viver...


-- Tá perdida, tesouro?...
Uma mulher aparentando uns cinquenta anos abordou Shanti com um sorriso hediondo nos lábios. Na certa, por causa das roupas que usava, a tinha confundido com um homem. Olhou para a mulher com cara de pouquíssimos amigos.
-- Mesmo que estivesse, você nunca iria me encontrar!! Vê se te enxerga! -- saiu de perto da mulher e continuou sua procura por Carla.
Desde que ela tinha entrado naquele automóvel sua preocupação fora redobrada. Presenciou a entrada dela naquela pocilga. Um ser mal encarado abordou-a sem nenhuma delicadeza.
-- O que quer aqui, michezinho filho da puta?!! -- as mãos fortes esmagavam o braço dela. -- Aqui o território já tá ocupado!! Vá arrumar seus clientes em outro lugar!!
-- Deixa a menina, Lucão!!
Uma voz afetada que parecia feminina e, ao mesmo tempo não, soou por trás dela. Surpreendeu-se pela mudança no semblante do troglodita que, de raivoso, agora parecia um cordeiro.
-- Mas, Vi... Ele tá invadindo...
Quando Shanti pôde ver a figura, se surpreendeu. De verdade que nunca tinha visto alguém daquele “tipo”, mas o deslumbramento que surgiu em si, dava sinais de que uma maravilha se apresentava diante de seus olhos.
A primeira coisa que notou foi a feminilidade gritante. O vestir extravagante, mas visivelmente provocante. A maquiagem, apesar de chamativa, não era vulgar. Os cabelos tinham um tom que a pobre menina de fazenda jamais tinha visto.
-- Não tá vendo que está assustando a menina?! Vem cá, meu bem... -- se viu sendo levada pela... Pelo... -- Meu nome é Vivian... Esse “animal” não fez por mal... É pago pra isso...
Já sentada no bar e acompanhada pela criatura mais incrível que tinha visto na vida, Shanti se sentiu relaxar um pouco.
-- Tá procurando alguém... -- afirmou enquanto pedia dois drinques ao barman. -- Vamos lá... Quem é? Posso te ajudar, menina...
-- Como sabe? Como não me confundiu com...
A gargalhada forte e altamente espalhafatosa chamou a atenção dos participantes do local.
-- Menina... Eu sou Vivian Non Sense... Reconheço um homem de olhos fechados... E uma mulher com olhos bem abertos!! -- gargalhou mais uma vez. -- Chega de conversa... Não veio da roça até aqui, apenas para ter o prazer de conhecer o lugar... Quem é a mulher?
-- Por que acha que é uma mulher?
-- Não vou mais explicar nada pra você, matutinha... -- tomou o drinque com volúpia exagerada. -- Vamos lá, desmancha...
-- O nome dela é Carla...
A mulher... Homem... O que fosse, engasgou com a pergunta.
-- Espera aí! Com esse nome é impossível, matutinha!  Me dá uma característica marcante...
-- Ela é ruiva...
-- Puta que pariu, menina!!! Olha em sua volta!!! Quantas aqui são ruivas?!!
-- Mas ela é naturalmente ruiva!!!
-- E cadê o cientista que vai comprovar isso?!!! Meu Deus quanta inocência! -- ela continuou a tomar o drinque, absorta em seus trejeitos. -- Me diz uma coisa... Como chegou até aqui?
-- Eu a segui... Quando ela entrou num carrão e veio parar aqui...
Os olhos disfarçados com lentes lilases abriram-se enormemente.
-- Você disse carrão?  Era um carro cinza perolado, com rabo grande?
-- Sim, era e eu...
A drag  puxou-a  sem modos até um canto escuro e longe dos ouvidos de todos.
-- Felícia...  Aqui o nome dela é Felícia e o bofe dela é um grande empresário... -- sussurrava em seu ouvido. -- Todos os que se meteram com sua amiga sofreram graves acidentes... Mortais eu diria... Tome cuidado, menina... O Lopes é terrível quando se metem com o que é dele... -- finalizou antes de desaparecer por entre o bando de gente.
Miseravelmente, se sentiu perdida depois que a companhia da drag lhe deixou. Rodou algumas vezes pelo ambiente, sendo seguida de perto pelo tal de Lucão, quando ficou cansada demais e resolveu sair daquele ambiente pérfido.
Na calçada, percebeu que muitos carros se afastavam. Olhou pro celular para ver as horas. Quase duas... Recostou-se num poste próximo. Sua natureza a impedia de desistir.
-- Claro, meu amor... Eu espero... O tempo que for necessário... -- as palavras eram pronunciadas por Carla que, pela janela, beijou o passageiro do carro luxuoso.
Quando a amiga ficou sozinha, avançou sobre ela furiosa.
-- O que acha que tá fazendo?!!!
O olhar que a mulher lhe dirigiu, a princípio foi de surpresa, mas depois assumiu um tom de sarcasmo gritante.
-- Eu é que pergunto: o que pensa que está fazendo?!! Você me seguiu?!! Tá maluca?!!
-- Maluca?!! Olhe pra você! Olhe pra esse lugar!!
Os olhos castanhos perderam a cor. Os lábios pintados de um vermelho vibrante tremeram e copiosas lágrimas surgiram sem pedir licença. Os braços da galega convidaram para o abraço.
-- Ele não estava conseguindo... -- soluçava nos braços da amiga. -- Eu tinha que fazer alguma coisa...
Shanti levou-a com cuidado para o carro. Sentou-a no banco do carona e dirigiu para casa. Durante o trajeto, ouviu dela toda a história de como se viu nessa vida e de como o empresário a ajudava em tudo.
-- Ele... Ele impediu que eu virasse uma prostituta... -- percebeu o olhar incrédulo da outra. -- Ele nunca transou comigo... Quer se casar primeiro... Está esperando sair o divórcio para me anunciar a sociedade... Meu nome... O nome que ele escolheu para mim... É Felícia... Vai me apresentar como uma dama da sociedade que viveu por quatro anos na Europa... Isso por causa da imprensa e dos negócios... Ele me ama, Shanti...
Silêncio até a chegada em casa.
-- E seu pai? O que ele acha disso? -- a pergunta foi mais uma chamada para a realidade que outra coisa.
-- Ele não sabe de nada... Mas vai ter que aceitar quando eu me casar...
Ao abrirem a porta encontraram um Borges sentado na poltrona nada satisfeito.
-- Posso saber onde andaram até esta hora?! -- fez a pergunta sem olhar para nenhuma das duas.
-- Eu estava sem sono, Borges... Pedi pra Carla me mostrar alguns lugares... Eu nunca saio pra me divertir... Aproveitei e pedi a ela... Ficou bravo?
O homem pareceu acreditar nas desculpas dela. Mas antes de sair resmungou forte.
-- Pelo menos avisassem!! -- saiu arrastando os chinelos para o seu quarto.

Captilulo 17
[01 /09 /11 ]
-- Como ela está? -- Janice perguntou para sua futura esposa que saia do quarto, preocupada com a situação.
-- Apreensiva quanto à reação de Shanti... Mas está decidida a lutar por seu amor... -- recebeu a mão carinhosa da noiva na sua e recostou um pouco a cabeça em seu ombro.
-- Agora que todos estão bem, que tal descansarmos um pouco? Vamos para casa? -- recebeu como resposta afirmativa um suave beijo nos lábios.
-- Onde está o pestinha? -- procurou pelo filho.
-- Dayse, a enfermeira chefe, se apaixonou... Ficou com ela na sala de descanso...
Abraçou o corpo amado da mulher e guiou-a até o local.

Abriu a porta do quarto bem devagar e, para não acordar a mulher que dormia tranquilamente em seu leito, andou suavemente até ela com o coração aos pulos como se quisesse sair de si e se entregar a amada de qualquer jeito. Quando chegou mais perto, percebeu no rosto anguloso e forte, resquícios de lágrimas recentes. A mão pequena e trêmula alcançou a superfície tocando a pele alva onde uma mecha de cabelo louro descansava serena. Olhando para ela, reviveu os momentos dolorosos que as afastaram por tanto tempo. Não evitou o suspiro triste e cansado. Retirou os fios dourados que lhe caíam por sobre os olhos e voltou há vinte anos. Diante de seus olhos materializavam-se as cenas aterradoras da brutalidade de dois pais truculentos. Sentiu no coração as chibatadas cortando as costas de seu primeiro e único amor. Lembrou do pânico que lhe assaltara na hora em que o sangue escorria da pele adorada e dos gritos ecoando em seus ouvidos, ferindo-lhe tão profundo que a mente se separou do corpo e o estado de choque lhe tomou por inteira. Uma lágrima rolou denunciando a forte emoção. Maldisse o pai que a levou embora e a trancou num quarto da mansão por dias. Sem comunicação, vigiada vinte e quatro horas por seguranças contratados, sem se alimentar direito, sem praticamente dormir, e o corpo não suportou. Foi levada para o hospital com febre alta e sofrendo de convulsões, onde, por causa dos sintomas, suspeitaram de meningite. Pelo menos foi o que o pai lhe contou quando voltou para casa com a memória apagada, com o coração vazio, transformada numa fútil mulher apoiada pelo pai criminoso. Fechou os olhos ao recordar do episódio com Shanti quando ela a abordara na entrada da mansão. De como foi preconceituosa e arrogante quando lhe ofereceu dinheiro para mantê-la longe, de como a humilhou no outro dia quando voltou lá suplicando que ela ouvisse o que tinha a dizer.
Quando voltou a abrir os olhos, encontrou o mar azul fitando-a com um oceano de amor tão intenso que a fez soluçar.
-- Me perdoa... Meu amor... Me perdoa...
Os corpos finalmente ultrapassaram os anos de dor e solidão num encontro sufocado pela emoção do momento. Lessandra, agora protegida pelos braços da mulher que amou a vida toda, soltava sem reservas o seu alívio e o seu prazer em doces lágrimas.
-- Não pude esperar que viesse a mim... Tive medo que você fugisse mais uma vez... Eu não suportaria... Preciso que me perdoe, meu amor... Quero te contar tudo o que aconteceu comigo desde aquele dia horrível... -- apertou mais o abraço. -- Me dê a chance de te devolver todo o amor que recebi estes anos todos... Me deixe te amar...
Olhou nos olhos da mulher que a embalava e percebeu neles a comoção extraordinária. Comoção que vira desde quando eram crianças.
-- Eu te amo, Less... Te amo desde quando te vi pela primeira vez, mas só descobri naquele dia, no lago, quando prometi te proteger para sempre... Foi o que fiz, meu amor... Eu te protegi... -- sentiu a mulher que amava afastar-se de si e segurar-lhe o rosto com extremo carinho pousando o verde apaixonado dos olhos nos seus.
As mãos, mutuamente, agiram com carinho ao percorrerem as superfícies macias de suas faces já banhadas em lágrimas. Um discurso infindável e emocionante era feito sem uma única palavra. Os corpos unidos pelo calor de um amor liberado depois de tanto tempo queriam expressar tudo de uma só vez. Perderam-se dentro de si mesmas entrelaçando suas almas.
-- Meu cavaleiro... Sua rainha agora quer ser apenas sua mulher e te fazer a pessoa mais feliz desse mundo...
Dizendo isso, Lessandra implora ávida pelo toque dos lábios da mulher amada que lhe atende ao pedido com delicadeza, provando da carne tenra que formava aquela boca adorada.

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QUINZE DIAS DEPOIS...
-- Tia Shanti!! Tia Shanti!! Meu cabelo tá direito?!! Olha! Olha!
O pirralho puxava a mão da mulher alta com desespero.
-- Calma, moleque!! -- segurou-o pelo braço fazendo com que parasse quieto. -- Quem vai se casar finalmente? Você ou sua mãe? -- Shanti perguntava enquanto arrumava a gravata dele e alisava o cabelo coberto por gel. -- Você está parecendo um príncipe de tão lindo!
Os olhinhos alegres não paravam no lugar.
-- Tô mesmo, tia? Puxa... Acha que eu vou casar logo? -- as mãozinhas procuraram o rosto dela. -- Vou ter muitos filhos... -- e parou quando sentiu uma lágrima na pele da tia. -- Que foi, tia? Tá triste?
O corpinho foi envolvido por um abraço forte e alçado do chão pela mulher emocionada com a força poderosa que aquele coraçãozinho tinha.
-- A tia tá chorando de emoção por ter o sobrinho mais lindo da festa nos braços! Sua mãe está chegando... Vamos para nossos lugares...

Poucos convidados estavam presentes na cerimônia de casamento entre Janice e Helena. Ambas não tinham parentes. Janice convidou alguns amigos do trabalho e Helena, as amigas Shanti, Lessandra, Nora e família.
-- Você está bem? -- foi a pergunta preocupada de Lessandra para sua noiva que se posicionou ao seu lado para fazer o papel de madrinha. Segurou-lhe a mão achando-a um tanto fria demais. -- Tomou o remédio antes de sair? Vi você levantando o Nico... Isso foi imprudência de sua parte... -- falava baixo para não serem percebidas.
-- Amor... Por favor, aqui não... Estou apenas com uma dorzinha...
--- Uma dorzinha? Você quase morre com essa operação e vem me falar de dorzinha? O médico foi categórico: nada de esforços desnecessários. Sabe que ainda nem consumamos nosso amor por causa dessa ordem e você se atreve a levantar o Nico nos braços!
-- Isso se resolverá daqui a duas semanas... Não se preocupe... -- viu a chateação estampada no rosto de sua futura esposa. -- Se não desmanchar esse bico te beijo agora mesmo na frente de todo mundo... -- deu um risinho sacana que desconcertou a mulher enrubescida pela insinuação gritante das palavras.
E se passaram os trâmites. Festa, convidados, bolo...

-- Então, meninas, que tal o ensaio? -- Janice, visivelmente entusiasmada com a cerimônia, perguntava as amigas madrinhas, agarrada à mulher de sua vida.
-- Não sei... Muito complicado... Acho que podemos dispensar esta parte, né amor? -- a galega apertava o braço da companheira com um olhar mais que divertido.
-- Concordo... -- olhou tão profundo que causou na outra um quê de preocupação. -- Mas é assim que eu gosto... E é por isso que vamos passar por tudo também...
E beijou a sua noiva apaixonadamente.

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-- Onde ela está?!
Era a milésima vez que Lessandra fazia a pergunta para uma Nora quase perdendo a paciência tentando ajustar o vestido em seu corpo.
-- A menina qué pará queta?!! Assim num vô consegui ajeitar isso aqui não!
Faltava apenas meia hora para a cerimônia de casamento das duas e Shanti ainda não tinha dado as caras pela fazenda. Diferente de Janice e Helena, elas preferiram uma cerimônia mais simples na fazenda mesmo, sem muitos rapapés para que o evento não se prolongasse muito, pois tinham pressa em estar juntas de verdade sem a proibição médica lhes tolhendo o desejo carnal.
-- Ela vai ver só quando aparecer! Juro que deixo ela na mão, literalmente falando!!
Nora deu um risinho constrangido das palavras de sua patroinha, pois sabia que ela mesma seria incapaz de cumprir a ameaça, posto que já as encontrou em situações bastante comprometedoras, ou seja, estavam pior que o homem aranha: subindo pelas paredes.

No local onde o altar foi produzido, uma mulher loira, alta e muito nervosa comandava os detalhes finais da preparação para o casório. Vestia-se com esmero. Branco. Calça de tecido leve e uma blusa sem mangas recatada, mas ainda assim, muito sexy, pois deixava um pouco à mostra o caminho entre os seios. No pescoço cintilava a corrente que ganhara de sua futura esposa quando eram adolescentes. Segurou forte o pingente em forma de cruz e fez uma oração solitária agradecendo a Deus o fato de estar realizando seu grande sonho: ser feliz ao lado de seu único e verdadeiro amor. De repente o seu coração desritmou... Bateu em compasso diferente quase fazendo-a perder o ar. Não agüentando de saudades - pois levara o dia todo se ocupando de suas núpcias - resolveu verificar como estava sua noiva. Mal pisou no terreno do quarto onde ela se encontrava e levou um susto: Lessandra sentada de costas para a porta numa cadeira colocada bem em frente à varanda permanecia imóvel como uma estátua.
-- Less...
Não houve nenhum movimento da mulher que jazia olhando firmemente para o horizonte a sua frente.
Shanti tentou mais uma vez só que de mais perto, tocando-lhe o ombro delicadamente. Desta vez viu a sua mulher levantar-se e virar-se totalmente para ela. O coração da administradora foi à boca. Mil palavras e, ao mesmo tempo, nenhuma vieram à sua cabeça. Viu nos olhos de sua noiva tanto amor e medo que se assustou e, num impulso, tomou-a nos braços e a beijou sofregamente durante alguns segundos intermináveis, deixando passar através delas toda a história da qual o destino as fez participar.
Com os corações aos pulos, as duas mulheres se fitaram com um anseio único nos olhos...
-- Não quero esperar mais... -- Lessandra deixou escapar num sussurro que soprava na boca de sua amada. -- Me leve daqui... Agora...
O sorriso mútuo que tomou conta das faces delas consolidava a traquinagem que aprontariam.

-- Vem! -- disse a mulher mais alta, puxando Lessandra pela mão chegando ao estábulo.
-- Tem certeza que ninguém nos viu? -- a preocupação estampada no rosto da mulher denunciava o nível de adrenalina que corria por seu corpo.
-- Tenho... -- respondeu já soltando seu cavalo da baia e levando-o para fora pela porta dos fundos.
Montou o cavalo trazendo Lessandra consigo e, bem dentro de seu ouvido consultou...
-- Pronta?
A resposta foi um beijo molhado dado com vontade. Partiram a galope solto rumo à felicidade.

Lessandra reconheceu logo o caminho que sua esposa estava trilhando. O pôr-do-sol cobria o céu com um véu rosa quando elas chegaram ao lago.
-- Você... Meu Deus... Você...
Lessandra não podia falar tamanha a emoção arraigada em seu peito. De cima do cavalo podia ver a tenda enorme montada próxima a margem onde tochas já estavam acesas, e Iluminada por dentro pelo que pareciam ser velas. Shanti apeou bem perto amarrou Tufão onde já havia preparado alimento e água. Foi então que perceberam o jipe da fazenda estacionado ao lado. De dentro do cômodo saiu Félix com o olhar arregalado.
-- Oche! Que houve dona Shanti? Eu só esperava a senhora daqui a umas duas horas! Tava adiantando o serviço...
-- Que bom, Félix... Agora suma da minha frente!
A voz saiu mais alta que o normal devido a vontade de estar a sós com sua esposa, o que fez com que o capataz obedecesse com pressa e sem mais perguntas. Quando o ronco do motor não era mais ouvido, elas se deram conta de si e das circunstâncias em que se encontravam.
-- Estamos aqui outra vez, meu amor... -- a voz da galega saia apertada. --... Dessa vez ninguém irá nos separar... -- segurou-lhe as mãos que estavam frias e ajoelhou-se diante dela. --... Lessandra... Aceita ser minha esposa para que eu possa continuar protegendo-lhe com minha vida... Te amando... Admirando... Respeitando... Até que a morte nos separe?
Os olhos verdes brilhavam como nunca.
-- Levante-se... -- o olhar ainda brilhava, mas havia neles uma seriedade que surpreendeu Shanti. --... Antes que eu responda a sua pergunta, você, Shanti Veras... Deixará que eu te cuide... Que eu apague de sua mente todas as feridas causadas por minha covardia, com meu coração que é só seu como nunca foi de ninguém... Em qualquer situação?
Uma lágrima serena partiu dos olhos azuis que tinham uma expressão tão desamparada que fez com que Lessandra a abraçasse...
-- Sim... Eu te quero como esposa, Shanti Veras... Para te amar... Te respeitar... Te admirar... E te proteger com minha vida... Até que a morte nos separe...
-- Eu te amo...
A frase saiu numa sincronia espetacular. Os corações responderam ao mesmo tempo arrancando uma risada das duas. A brisa fria fez com que se aconchegassem mais ao calor do abraço. O queixo de Shanti massageava-lhe carinhosamente o topo da cabeça provocando um suspiro de enlevo.
-- Senhora Marques Veras... -- os lábios pousaram no rosto gelado da mulher mais baixa. --... Vamos entrar? -- afastou-se para mirá-la nos olhos. -- Está ficando frio... Aposto que lá dentro está bem quentinho...
-- É?... E se não estiver?... -- quase ronronou ao dizer as palavras carregadas de uma malícia explícita enquanto as mãos já trabalhavam no corpo de sua esposa.
-- Eu resolvo isso rapidinho... -- sentiu o arrepio de excitação ao receber o toque das mãos bobas em seus seios. --... Faço até pegar fogo... Você quer?...
Não se precisou de respostas naquele momento. A recém nomeada esposa, antes Cavaleiro de Monte Verde, ergueu sua mulher nos braços e levou-a com cuidado até o ninho onde o amor seria feito com um enredo de mil páginas capaz de levar às maiores emoções sem nenhuma dúvida.
Dentro da tenda tudo esperava pelo casal. Uma cama enorme aguardava os corpos. Uma mesa posta com algumas guloseimas e frutas. Champanhe no gelo. Taças solitárias esperando o líquido.
-- Enfim sós... -- sentaram-se na beira da cama ainda suspensas por um fio sublime que as impediam de se aventurarem pelo caminho do sexo. Pareciam ter algo a esclarecer.
-- Less... -- a loura começou meio que embaraçada. --... Sei que já tivemos um momento... Naquele dia... Você lembra... Eu... -- se embananou com as palavras.
--... Lembro e, te digo sem nenhuma dúvida, foi o orgasmo mais intenso que eu já tive na vida... Apesar de ter sido feito daquela... Maneira... Tão... -- baixou os olhos, constrangida pela lembrança do ato. -- os dedos delicados da outra elevaram seu rosto novamente.
-- Animalesca... Esta é a palavra... Agi como um animal... Quero que me perdoe por...
Agora fora os dedos macios de Less que impediram o pedido de desculpas.
--... Acho que posso entender a mulher que amo e que passou a vida toda a minha espera... Portanto é desnecessário que voltemos a falar sobre isso... Nos pouparia e muito...
-- Amor... -- se aproximou mais ainda. -- eu ainda preciso te dizer algumas coisas...
-- Fale... -- uma mão afagava idolatradamente o rosto alvo.
-- Não sei o que você pensa exatamente de mim... Sexualmente falando... Quer dizer... De minha vida sexual... Eu... Bem... -- recebeu um sorriso encorajador e acabou sorrindo também. -- Pois bem, meu amor... Você conheceu Felícia... Dona da Lopes & Lopes... Ela... bem... Antes de você voltar para a fazenda... Ela era minha amante...
-- Não sei porque tocar nesse assunto justo agora!
Antes que ela se irritasse mais ainda, Shanti agarrou-a pela cintura e invadiu-lhe a boca com a sua, fazendo com que ela se acalmasse. Ficou beijando-lhe levemente os lábios, mordiscando-os com leveza, até poder continuar...
-- Conheci Felícia quando fui a sua procura na capital... Na verdade o nome dela é Carla... Te explico melhor depois... O que quero te dizer é que... Ela foi a única com quem estive e... Eu... Eu... Sabe... Ela nunca... Eu nunca... Deixei que... Você sabe...
O rubro anormal no rosto de sua esposa levou Lessandra a se espantar com o que ela estava tentando lhe dizer...
-- Você quer me dizer que ainda é... Virgem?
-- Tecnicamente, sim... Nunca permiti que ela me penetrasse... Nem ela... Nem eu mesma... Nunca... Então, meu amor... Se eu ficar um pouco... Se eu...
A angústia que se via nos olhos de Shanti provocou em sua esposa uma comoção fora do comum, o que lhe provocou a reação inesperada. Lessandra deitou-a devagar na cama e com extrema doçura começou a despi-la, incitando-a a fazer o mesmo consigo. Completamente nuas, iniciaram uma descoberta recíproca. Mãos percorreram lugares nunca dantes visitados. As sensações dos corpos na procura do prazer se multiplicavam e o cheiro forte e afrodisíaco as atacou com força. Fluidos foram provados antes do prato principal. Jogos de adivinha... Pedidos inusitados... Até o momento final... Lessandra no auge do tesão provoca...
-- Você é a primeira mulher que toco... E é maravilhoso o que consigo fazer com você, minha delícia... Ensine-me... Me guie... -- a mão já se fechava no sexo molhado de pêlo agalegado, preparando-se para a viagem insólita. --... Quero te fazer minha mulher... Comande... Imponha seu ritmo... Eduque-me sobre você, minha querida...
O dedo indicador já escorregara para dentro da loura aproveitando-se da lubrificação farta que ali se encontrava. Ela gemeu numa mistura de dor e prazer, e espanto com os sentidos conflitantes que surgiam. Se viu pedindo... Implorando por mais, ao que foi atendida plenamente, quando mais um dedo se atreveu a imitar o que, lá, já se movia frenético. Instalou-se então uma dança da qual eram coreógrafas natas. As batidas dos corações foram sentidas. Os arrepios de êxtase se apoderaram dos corpos. O mel vinha em abundância conforme a dança se intensificava. Os movimentos foram ficando mais rápidos. Os gemidos... As palavras arremessadas ao ar... Os pequenos gritos... As lufadas vinham do âmago anunciando um gozo extraordinário que as envolveu de maneira absurdamente fenomenal até que as amantes foram lançadas para outro mundo... Um mundo só delas... Conquistado... Dominado... Estabelecido... Onde a paz e a felicidade finalmente reinaram depois do ato de amor consumado, deixando no filete escarlate que saiu de Shanti, a prova de que não havia mais barreiras a serem derrubadas entre elas.

A mesa mostrava que a noite além de longa, tinha sido bem aproveitada. Restos de frutas e outros alimentos enfeitavam a superfície manchada da toalha. As roupas espalhadas pelo chão envolvendo a garrafa vazia. O lençol que cobria a cama quase sendo expulso da mesma, mas, ainda assim, abrigando o casal apaixonado deixando-se levar pela luxúria que só os amantes sabem definir. Shanti abriu os olhos com uma dificuldade incomum até aquele momento. Depois que se acostumou com toda aquela claridade e voltou ao mundo dos simples mortais, abriu um sorriso imenso notando o corpo pequeno de seu amor esparramado por sobre si. Tocou-lhe as mechas de cabelo que cobriam parte de seu seio e sentiu o movimento sutil dos quadris amados num rebolado perturbador.
-- Acordou, amor?
O resmungo veio sonolento e manhoso, fazendo com que Shanti sorrisse mais ainda.
-- Precisamos voltar, amor... -- sentiu o corpo pequeno grudar-se mais ainda no seu. -- Sei... também gostaria de passar a vida Yoda aqui... Ao seu lado... Mas temos viagem amanhã de manhã e muitas coisinhas para resolver até lá... Lembra que me prometeu levar à região da Toscana na Itália?
Lessandra escalou o corpo grande de sua esposa e depositou-lhe na boca um beijo demorado e cheio de intenções.
-- Sim, meu amor... Quero compartilhar com você tudo o que senti quando avistei aquela paisagem... Foi a última coisa que vi quando decidi voltar para a fazenda e cuidar das coisas que pap... -- interrompeu a fala para corrigir. -- que “ele” deixou... Ali, naquele lugar, senti uma sensação de que precisava descobrir mais sobre mim... Sobre o vazio que me assolava cada vez mais... -- recebeu o carinho das mãos amadas a passear por suas costas e deixou-se amar mais uma vez.

Duas horas mais tarde, após saciarem mais um pouco o desejo recém conhecido, olharam-se compreensivas. Shanti quebrou o encanto daquele momento com a voz doce.
-- Eu te amo... -- acariciou os cabelos da dona de seu coração. --... Muito... Muito mais que muito... Tive uma ideia! -- levantou-se rapidamente levando Lessandra com ela, totalmente nuas.
Lá fora, olharam para o lago convidativo e, mais uma vez, o sorriso maroto tomou conta de suas expressões, cientes do que deveriam fazer agora. Correram e mergulharam na água gelada. Alguém que lhes conhecesse a história, poderia ver ali, as meninas brincando como há vinte anos não acontecia. Estavam onde o amor fora descoberto e, agora, consumado depois de todo o caminho doloroso que ele trilhou até reencontrá-las novamente.

xxxx
UM MÊS DEPOIS...
-- Quando os rapazes voltam dos pastos longe? -- perguntava uma Lessandra totalmente concentrada em seu notebook para a companheira.
-- Mais tardar amanhã à tarde... Precisamos preparar uma festa para eles... Um churrasco para comemorar as vendas do mês... Eles merecem um bom descanso e uma boa diversão... Uma pena a Helena e família ainda estarem na França... Mas ainda bem que o Nico tem esperanças de ficar bom... Janice está fazendo um trabalho e tanto...
Neste mesmo instante ouviram uma buzina insistente.
-- Deixe que eu resolvo... Termina esse assunto com o contador... Não se esquece de dizer a ele que precisamos de nossas declarações do imposto para ontem... -- beijou a boca de sua mulher e saiu para ver o que acontecia.
Não acreditou no que viu, quando, finalmente, reconheceu a causadora de tanto barulho. A mulher ruiva saiu da caminhonete. De lá, também saíra uma loura alta e muito bonita que não sabia quem era e ficou encostada no automóvel como a esperar pacientemente.
-- Felícia?
-- Eu mesma, querida... -- a mulher abraçou Shanti com carinho. Surpresa em me ver? Achei que saberia que, mesmo eu não comparecendo ao seu casamento, não deixaria de vir cumprimentar-lhe e te dar meu presente pessoalmente... -- apontou para o mini trailer acoplado à caminhonete usado para carregar animais. -- É um puro sangue que estava reservado no dia do leilão e que você não pôde arrematar... -- segurou a mão da mulher com preocupação. -- Perdoe-me por não ter vindo quando se acidentou... Você sabe bem o porqu... Mas acompanhei tudo de longe... Então, como vai a vida de casada? -- o sorriso malicioso característico afastou o clima que se instalara.
-- Melhor impossível... Estamos muito felizes... Quem é a loura fantástica?
-- O nome dela é Rossana, filha do falecido Lopes que voltou da Alemanha onde fazia mestrado... Acho que temos muito em comum... Pelo menos a relação enteada-madrasta está me surpreendendo... Ela é atenciosa e muito prestativa... -- o brilho no olhar não escondia o sentimento novo que desabrochara nela. -- Bom, acho que sua esposa não está tão feliz agora... -- olhou por sobre o ombro da administradora. --... Está me fuzilando com os olhos e aposto que me matará a qualquer movimento suspeito meu, como esse, por exemplo...
Tascou um beijo de despedida na boca da amiga e saiu rapidamente ao encontro de sua enteada e partiu.
-- O que aquela oferecida queria aqui?! E por que deixou que ela te beijasse?!! Que merda é aquela que ela deixou ali?!! Hein?! Responde!!
Diante da fúria que Lessandra demonstrava, Shanti sabia que só uma coisa a acalmaria. Puxou a mulher para si e tratou de calar-lhe a boca com a sua cuja língua se movimentava com volúpia deixando a companheira mole.
-- Quero você, minha vida... Único amor... Única paixão... Quero você, já!
Com muita facilidade pôs sua mulher nos braços e rumou para o seu antigo bangalô onde uma cama confortável e sempre preparada para suas loucuras durante o trabalho as esperava.

DEZESSETE ANOS DEPOIS...
Na varanda da casa grande podia-se ver a loura alta ensimesmada a olhar o nada. Sua esposa percebera desde cedo aquele comportamento pouco habitual. Aproximou-se e deu-lhe um abraço pelas costas aspirando o perfume tão conhecido.
-- Onde elas estão? -- a voz aparentava certa tristeza.
-- A última vez que as vi estavam subindo para o quarto...
-- Sua filha me tira do sério às vezes... Não gosto de brigar com ela... -- deu um suspiro cansado.
-- “Nossa” filha tira qualquer um do sério... E vocês não brigam... É apenas um conflito de interesses... -- deu um risinho de mofa enquanto as mãos acariciavam a barriga perfeita de sua companheira.
-- Elas andam muito próximas, não acha?
-- Elas têm praticamente a mesma idade... Helena ainda dava de mamar a Débora quando nossa Sarah nasceu... E cresceram juntas... Estudam na mesma escola... O que esperava?
-- Nada... Esperava que nossa filha tivesse mais amigos... Que não dependesse tanto da amizade de nossa afilhada... Elas ainda podem se machucar muito... -- o tom de voz voltou a ser triste.
Lessandra entendeu o que sua mulher queria dizer e seu medo magoou-a profundamente, pois lembrou o quanto a amada sofreu e esperou para ser feliz.
-- Eu sinto muito, esposa... Gostaria de apagar toda esta história de dor que houve entre nós, mas é nossa história e, apesar de sofrida, é muito bonita...
Shanti voltou-se para ela com os olhos marejados e abraçou-a forte como se quisesse colocá-la dentro de si.
-- Não, meu amor... Não pense assim... Me desculpe, mas é que ainda sinto medo por Sarah... Sabe como ela é... Teimosa como uma mula...
-- Olha só quem fala! Tal mãe, tal filha... E eu que me vire...
Ouviram o ronco de um motor e desceram para receber as comadres que estavam de partida para França onde Nico morava há mais de cinco anos.
-- Onde está a pestinha? -- Helena foi logo perguntando ao abraçar as amigas.
-- Junto da outra pestinha, lá em cima... O que você acha?
-- Estas duas não se largam... É impressionante! -- Janice emendou talvez com a mesma preocupação que Shanti.
De repente duas moças de dezesseis anos aparecem do nada correndo como loucas...
-- Mãe!
-- Tias!
Gritaram ao mesmo tempo se jogando nos braços das mulheres quase as derrubando. Uma era ruiva e puxara a família de Janice. A outra era loiríssima e de olhos cinza esverdeados muito parecidos com os da mãe de Shanti, cujo nome fora colocado nela em homenagem póstuma.
-- Tia Jane, não esquece daquilo que te pedi! -- a galega disse aflita.
-- É mamãe... “nós” te pedimos... Eu também quero um! -- a menina olhou para a amiga provocando e dando língua.
-- Sua chata invejosa! Eu pedi primeiro! -- a moça alta, quase alcançando o tamanho da mãe, respondeu irritada.
-- Parem com isso já! As duas!
Lessandra interveio divertida dando tapinhas nos bumbuns das garotas, enquanto as outras mães se derretiam em sorrisos, todas corujas.
Depois de uma conversinha, viram o carro partir novamente levando toda a esperança das mulheres na cura do irmão que passaria por mais um tratamento inovador.
Assim que o carro se afastou, Sarah interpela para a mãe...
-- Podemos ir ao lago? -- a voz não era de um pedido, mas quase uma afirmação.
-- Sarah... Sabe que tia Shanti não gosta...
-- Isso é entre mim e a minha mãe! E ela ainda não me respondeu... -- a voz dura da moça deixou um olhar de mágoa na outra.
Assim que percebeu a sua grosseria com a amiga amada, os olhos de Sarah emitiram uma dor tão grande que duras lágrimas rolaram imediatamente por seus olhos, enquanto via sua mãe Less aconchegar uma Débora tristíssima nos braços.
-- Desculpa Deby... Eu... Eu...
Não concluiu a frase e saiu correndo em disparada para dentro da casa. O olhar de Lessandra para Shanti implorava para que ela fosse ter a conversa esperada com a filha e ela obedeceu sem pestanejar.

A porta do quarto estava entreaberta deixando que Shanti visse a filha sentada na cama segurando a cabeça entre as mãos em sinal de desespero. Sentiu o coração apertar-se, pois entendeu imediatamente o que acontecia com a moça. Bateu de leve pedindo permissão para entrar. O silêncio deu a entender o que o ditado popular diz: quem cala consente. A mulher mais velha entrou e sentou-se ao lado de seu “bebê”. Alisou suas costas numa tentativa de conforto ao que recebeu como resposta o corpo angustiado em convulsão pelo choro dofrido.
-- Me ajuda, mãe! Me ajuda...
--- Shhhh... Vai ficar tudo bem, amorzinho... Eu te amo muito, minha filha... Fale comigo, por favor... Diga tudo o que está sentindo...
Depois de alguns minutos de soluços e fungados, Sarah finalmente conseguiu falar...
-- Eu não sei o que sinto, mãe... Eu não entendo... É tudo tão confuso... Quando ela está perto tenho uma necessidade tão grande de provocá-la, de agredi-la... Mas quando ela se vai, eu morro... Eu estou machucando ela, mãe... E isso tá acabando comigo...
O choro voltou mais forte. Shanti entendia a filha e chorou com ela. Seu “bebê” estava apaixonado e tinha medo de se entregar. Lutava contra o amor que nutria pela amiga quase irmã, talvez achando que não fosse assim tão normal, mesmo tendo o exemplo das mães e tias.
-- Precisa dizer a ela, meu amor... Talvez esteja na mesma situação que a sua... Mas, o que importa, é que não pode continuar assim... A amizade pode não suportar tanta confusão... -- Pegou o rosto da menina e dentro de seus olhos falou. -- Estou do seu lado para o que der e vier... Sei que temos discutido de maneira não muito agradável... Você me faz lembrar de mim na sua idade...
-- Mãe... O que eu faço?
Nessa hora, Lessandra entra no quarto e bota sua filha no colo.
-- Você vai saber, minha vidinha... Vai saber... Débora está lá embaixo esperando por você... Falei com ela... Resolva isso, minha delicinha... -- beijou a testa da moça com muito carinho. -- Vai... O lago espera por vocês...
Na margem do lago onde o sol tentava se por, duas adolescentes descobriam o amor, como há trinta e sete anos.

FIM

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